É pouco comum encontrar alguém muito jovem e que goste de coisas de antigamente. E quando alguém gosta de corridas de carros, acha as antigas mais legais, sabe-se lá por quê. E isso tendo nascido 11 anos depois do acidente fatal de Ayrton Senna, e sem nunca ter visto Nélson Piquet ou Emerson Fittipaldi vencendo nas provas de F-1. Pois bem, essa pessoa é meu filho.
Pensando nessa Fórmula 1 “antiga”, me coloquei a ler o livro “Foi Divertido!” (“It was fun”), que havia comprado há pelo menos três anos (sim, a fila é grande), de autoria do engenheiro inglês Tony Rudd (Anthony Cyril Rudd, 1923-2003), um dos vários personagens que construíram a Fórmula 1 desde seus primeiros tijolos. Uma fase que pode ser considerada como finalizada quando da chegada de eletrônica embarcada de maneira massiva, e de regulamentos muito cheios de restrições e detalhes, fase que muitos julgam ter sido a verdadeira Fórmula 1.
Rudd, nascido entre as duas guerras mundiais, sempre teve uma atração por mecânica, e seu primeiro trabalho antes mesmo da educação técnica formal foi como assistente do piloto tailandês Príncipe Bira (Birabongse Bhanutej Bhanubandh), da equipe White Mouse Garage. Essa equipe foi formada na Inglaterra, e era de propriedade de do também príncipe tailandês Chula Chakrabongse, primo de Bira.
Rudd chegou aos dois através de uma tia, que trabalhava com a família Hunter, de Londres. O príncipe Chula havia emigrado para a Inglaterra para estudar, e havia se casado com Elizabeth Hunter. Devido ao seu gosto por tudo que tivesse rodas e mecanismos desde os quatro anos, tia Jess não perdeu a oportunidade de apresentar o sobrinho ao príncipe, e estava traçada a carreira de Rudd.
Com uma educação técnica iniciada como aprendiz na Rolls-Royce, divisão de motores aeronáuticos, tinha aulas e trabalho somados, algo de valor inestimável naquela época em que se desenvolviam motores para aviões civis e militares, e que realmente cresceria demais com o começo da Segunda Guerra Mundial em setembro de 1939.
Durante a guerra Tony Rudd trabalhou com identificação e solução de problemas que ocorriam em motores militares em uso. A junção da experiência com a equipe White Mouse e com a Rolls-Royce o fez ser escolhido para auxiliar a equipe BRM por um período, pois esta estava utilizando um compressor centrífugo fabricado pela Rolls-Royce no motor V-16 que estava sendo desenvolvido para o ano de 1951, e que vinha apresentando problemas de falta de confiabilidade. Isso em finais de 1950, justamente o primeiro ano em que a Fórmula 1 havia sido criada, e a BRM (British Racing Motors) trabalhava para estrear no ano seguinte.
E o que era para ser alguns meses se tornou 17 anos dentro da equipe, que teve altos e baixos, muitas vezes sendo em boa parte responsabilidade de Rudd, que não tem nenhuma restrição em escrever sobre vários erros cometidos em seus projetos e desenhos, um deles uma falha em aceleração em saídas de curva e outro as constantes quebras de molas de válvulas, esses não sendo filhotes seus, mas de difícil diagnóstico, mesmo com toda sua experiência.
O livro é completamente espetacular, principalmente para quem sente arrepios com carros de corrida, e Tony Rudd descreve sua vida ao redor de carros e pessoas de forma simples e detalhada. A história é absolutamente fantástica e provoca um apetite de leitura gigantesco. Imagine alguns exemplos, como as dificuldades de levar carros, ferramentas e pessoas da sede inglesa até a Itália, na década de 1950, com uma Europa com fronteiras muitas vezes de difícil passagem, ter que fazer tudo isso em pouco tempo, chegar a uma pista desconhecida, colocar seus carros para andar, descobrir problemas, ter que voltar à Inglaterra para buscar algo modificado às pressas nas instalações da BRM em Bourne, e trazer de volta para o dia de classificação.
Desde o início da equipe Lotus, Rudd se tornou um amigo de Colin Chapman, o fundador da Lotus, e conta sobre as trocas de informações em conversas que tinham em dias em pistas e mesmo fora delas. Os pilotos também tinham em sua maioria um bom relacionamento, conversavam e aprendiam uns com os outros, mesmo sendo de equipes rivais, como Jim Clark e Graham Hill, Lotus e BRM, na ordem. O clima de camaradagem era algo impensável hoje, e a perda dessa característica foi uma das razões da categoria encolher muito na preferência de fãs de automóveis e mesmo de corridas.
O auge da equipe BRM foi em 1962, quando os títulos de pilotos com Graham Hill, e o de construtores, foram conquistados. Após a morte dos fundadores da British Racing Motors, Raymond Mays e Peter Berthon, Rudd passou pela fase de administrar praticamente todos os trabalhos da equipe, como fazia na prática há algum tempo, já que os conflitos com Mays eram constantes. Isso deu-lhe a fama de alguém capaz de enfrentar qualquer situação complexa, e sua imagem diante do circo cresceu a ponto de ser convidado por Chapman algumas vezes para ir para a Lotus. Era engenheiro-chefe nas instalações da BRM e chefe de equipe também nas pistas, uma jornada dupla intensa.
Com a capacidade de ter feito cadernos de anotações todo tempo de Fórmula 1, Rudd fala sobre várias corridas ao longo dos anos, com tempos de classificação e de volta de sua equipe e dos competidores, mostrando muitas vezes as diferenças entre uns e outros. Exemplos:
Jackie Stewart sempre foi constante, não mais rápido de Jochen Rindt, por exemplo, e sempre detalhista ao extremo. Graham Hill rápido e camarada com todos, talvez o mais querido por Rudd, que sentiu muito sua morte em acidente de avião. Mike Spence, uma grande ajuda técnica para ajustes, embora não fosse dos mais rápidos todo o tempo. Outro que impressionava era Dan Gurney, pessoa de grande simplicidade que disse certa vez para Rudd que o que ele mais gostava de fazer era assistir filmes de faroeste na tranquilidade de casa, mas que foi o único americano a montar uma equipe, construir um carro e vencer uma prova na Fórmula 1, com o Eagle-Gurney, em 1967 na Bélgica.
Após problemas crescentes, e a morte também de Sir Alfred Owen, dono do grupo Rubery-Owen, já há algum tempo proprietário da BRM, Tony Rudd viu seu caminho na Lotus, e para lá se foi em 1969, ajudar nas conquistas daquela equipe, criada por um dos maiores e mais complicados personagens do mundo das corridas, Chapman.
Chapman tinha ideias em maior quantidade do que seus funcionários conseguiam desenvolver, e elas eram abundantes, indo dos carros de corrida, para os de rua, para motores de aviões ultraleves, barcos, veículos especiais como caminhões de combate a incêndio em aeroportos, e tudo ao mesmo tempo. Panorama perfeito para Rudd enfrentar, e que num crescendo levou à formação da Lotus Engineering, empresa ainda muito ativa e que teve participação grande em desenvolvimentos de algumas coisas que nós brasileiros, conhecemos bem, como a modernização do motor Opala 4,1-litros de seis cilindros substituindo o carburador por injeção eletrônica e projetando novo cabeçote de dutos de admissão individuais em vez de geminados, unidade aplicada no Omega e na picape Silverado.
O Lotus Esprit, de estilo definido por Giorgetto Giugiaro, foi o primeiro projeto de grande porte na Lotus sob o comando de Rudd. Até mesmo no nome do carro ele teve influência, pois a fábrica já tinha criado Esprit, mas Giugiaro queria que o carro fosse batizado Kiwi. Rudd, no seu bom humor constante, conta que precisou usar todo o seu vocabulário em francês — Giugiaro não falava inglês — para apagar essa ideia da cabeça do gênio italiano.
Sobre Colin Chapman o livro tem grandes explicações, como a que Rudd não achava que Colin fosse um gênio, mas sim alguém com uma determinação enorme, que pegava uma teoria ou ideia que julgasse boa e a trabalhava até fazer funcionar, como as carrocerias em compósito de fibra de vidro e o monobloco. Nesse último Chapman muitas vezes leva a fama de ter sido o primeiro a usar, mas Rudd diz que 18 anos antes, em 1952, Tom Kileen já havia feito um — que é patenteado, inclusive —e que na BRM ele mesmo tinha tido o Type 27 com esse tipo de construção. O que Tony Rudd afirma é que Chapman era um grande e veloz absorvedor de conhecimento, e que pesquisava todo o material já existente sobre um assunto, até juntar todas as informações e chegar em sua solução para a coisa funcionar. Daí para frente, era pressão total sobre seu time, até a materialização de sua solução.
Isso não diminui a amizade sincera que ambos tinham, e o respeito de quem é amigo de verdade. Na aventura de Chapman em fabricar barcos, do qual Rudd também participou muito em projeto e construção, Rudd disse certa vez que ele, Chapman, era o problema com seus barcos, já que antes de ter um projeto pronto, ele ordenava o início de outro, tirando o foco do time.
Mas foi nos Estados Unidos que a Lotus, sob a maestria de Rudd, foi capaz de fazer algo que ficou marcado como uma revolução no mundo dos V-8 tradicionais americanos, o motor de quatro válvulas por cilindro e quatro comandos nos cabeçotes instalado no Chevrolet Corvette, e batizado com a sigla ZR-1. Rudd conta em detalhes tanto as soluções técnicas quanto as relações com as pessoas na General Motors, e deixa o leitor atônito com suas descrições de deslocamentos ao redor do planeta, atendendo a clientes como a Toyota no Japão, Chrysler e GM nos Estados Unidos, e idas e vindas à Hethel, sede da Lotus na Inglaterra, isso em ritmo direto, por meses a fio, para depois de alguma pausa curta de algumas semanas, voltar a acontecer.
Em todas as fases, ele conta casos engraçados e dramáticos, como sempre é o mundo da engenharia dedicada aos carros, e faz um livro bem grande ser lido sem perceber o volume de informações e páginas que nos aguardam. Logo na introdução, diz que foram uns 20 dias de trabalho os que ele se lembra como não divertidos, dos 15 mil aproximados que trabalhou, em quase 50 anos de carreira. Uma boa média, sem dúvida.
Publicado em 1993, um ano depois da aposentadoria de Rudd, tem 352 páginas, 32 de fotos e desenhos, muitas não disponíveis na internet, e pode ser encontrado facilmente na Amazon, tanto usado como exemplares novos ainda, esses de preço elevado.
Fotos: GrandPrixHistory; Amazon; PlanetF1
Na foto de abertura Tony Rudd está ao volante do BRM P25
JJ