O problema dos carros sem condição de trafegar que acabam encostados em pátios onde apenas servem como criadouros de mosquitos, focos de proliferação de dengue, abrigo para insetos e outros fins menos nobres, é algo que de tempos em tempos vira promessa de campanha de alguém. Pode ser candidato a vereador ou deputado ou mesmo algum novo secretário da administração municipal ou estadual. E isso serve para todos os Estados
Lembro-me claramente de ver e ouvir Guilherme Afif Domingos prometer acabar com o problema na cidade de São Paulo. Ele disse que aceleraria a retirada dos veículos por quem pagasse as despesas e multas, e quem assim não o fizesse teria seu veículo leiloado em, sei lá, algo assim como 45 dias. Se não fosse possível, o veículo seria esmagado para ser vendido como sucata. Parece uma ótima ideia, não?
Pessoalmente, acho absurdo os municípios gastarem o que gastam com aluguel de terrenos apenas para empilhar carros que ninguém quer. Isso foi lá nos idos de 2012, quando Afif era vice-governador de São Paulo e presidente do Conselho Gestor de Parcerias Público-Privadas (PPP). Chegou a ser anunciado o objetivo de criação de 350 pátios para acomodar os veículos a partir de onde seriam destinados para desmanches legais ou sucata. O triste desta história é que não encontrei mais nenhuma notícia depois do lançamento da ideia — como sói acontecer, a imprensa parece ter dado espaço somente ao anúncio sem acompanhar, se resultou em medida concreta ou não. Somente alguns textos que falam do problema da falta de pátios e do excesso de veículos nos pátios das delegacias,que chegam a ocupar a rua, calçada e qualquer outro espaço que deveria ter outra finalidade.
Lembro que quando eu trabalhava em jornal diário — algo que aconteceu a maior parte da minha vida profissional — eu mesma tinha uma agenda na qual anotava coisas deste tipo. Assim, se uma autoridade dizia no dia 15 de agosto que em 30 dias estaria pronto o laudo que apontaria os motivos da queda de um viaduto, na minha agenda eu anotava no dia 15 de setembro que deveria cobrar da autoridade a divulgação do laudo. E assim sempre. Isso em épocas pré-internet e sem os recursos do Outlook ou do calendário de um celular, já que as redações de jornal começaram a informatização por sistemas próprios e específicos. Na Gazeta Mercantil, provavelmente o último grande jornal a aderir ao uso de computadores, somente abandonamos as máquinas de escrever lá por 1994. E em já ultrapassados sistemas DOS com computadores “ocos” nos quais não se podia inserir disquete porque não havia unidade de leitura. Obviamente, tudo isto era mais um obstáculo ao bom trabalho do que um incentivo, e no entanto, conseguíamos entregar um excelente resultado. Bom, deixa para lá. Tenho saudades dos tempos dos bons profissionais, hoje tão raros entre meus coleguinhas. Existem, é claro, mas são cada vez mais raros.
Como não lembrar de inúmeros filmes nos quais vemos aqueles guindastes tipo personagem do filme “Transformers” agarrando com suas terríveis pinças os carros e jogando-os numa geringonça que ora parece o triturador de um caminhão de lixo, ora um outro personagem de “Transformers” faz com que o carrinho vire algo assim como um personagem de desenho animado depois de ter sido esmagado por um rodo compressor. Claro que nos desenhos ele volta à vida são e salvo e, depois de uma leve sacudidela, recupera o volume que havia perdido depois de ser reduzido a algo mais do que um papel, mas… Confesso que me contentaria com um simples guindaste com alguma garrinha mequetrefe se o resultado fosse minimamente semelhante, como é feito em alguns lugares nestas paragens, como em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul
Fuçando nos meus alfarrábios de coisas interessantes de autoentusiasta, encontrei uma reportagem de O Globo, do ano passado, que dizia que Fortaleza já havia começado a recolher e leiloar carros largados nas ruas da cidade. Bem, com a onda de violência das últimas semanas espero que tenham conseguido bons resultados, mas temo dizer que depois de tanto veículo incendiado recentemente esse volume deve ter aumentado bastante.
Sei perfeitamente que o Brasil é o paraíso das leis e de suas interpretações. Nada aqui é como foi escrito, mas como pode (e é) interpretado. Poucas coisas me irritam mais do que isso, mas o federalismo que quase nunca aparece quando seria benéfico surge nessas horas. Cada Estado, e em muitos casos cada município, tem legislação específica sobre quase tudo. Provavelmente por isso é que já houve alguns projetos para incluir o assunto no Código de Trânsito Brasileiro, mas nada foi concluído ainda.
O fato é que a legislação de trânsito é omissa quanto a este problema. A única previsão legal é a Resolução do Conselho Nacional de Trânsito nº 371/10 que consta do Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito, que estabelece que “o simples abandono de veículo em via pública, estacionado em local não proibido pela sinalização, não caracteriza infração de trânsito, assim, não há previsão para sua remoção por parte do órgão ou entidade executivo de trânsito com circunscrição sobre a via”. Mesmo em tempos de pouca interpretação de texto como os atuais, culpa das mídias sociais e da preguiça de muitos usuários, percebe-se que a autoridade reconhece e aponta o problema, mas no melhor estilo Keanu Reeves em “Matrix”, esquiva-se de oferecer qualquer solução.
Assim, na teoria, as autoridades somente têm clara e específica autorização para remover o veículo se ele for fruto de delito (roubo, furto, por exemplo), justamente com o objetivo de reintegrá-lo a seu legítimo dono. De resto, pode-se fazer como era comum até recentemente na linda cidade de Colônia do Sacramento, no Uruguai, onde carros velhos ficavam estacionados nas ruas, às vezes cheios de plantas – bem cuidadas, diga-se, e viravam objeto de lindas fotos como a de abertura.
Devo dizer que quando estive lá pela última vez, em agosto passado, eles haviam sido removidos. A explicação que me deram era que algum vereador havia dito que podiam atrair insetos e propagar doenças e usou-se de uma lei que impedia que carros ficassem parados nas vias, constituindo abandono. Enfim, uma pena, pois eles estavam normalmente bem cuidados, alguns eram antigos e charmosos e eram um marco da cidade. Outros apenas velhos, mas ainda assim encantadores. Almocei no restaurante Drugstore, cujo dono tem mais de duas dezenas desses carros, e me disseram que ele os recolheu a uma garagem própria. Pena, mesmo.
Como tudo neste País, há um emaranhado de leis que protegem ou não qualquer coisa. E a conclusão à qual chego é … nenhuma. Pesquisando, encontrei que o Código Civil diz, no Artigo 1275, inciso III, que abandono de algum bem é motivo suficiente para a perda de propriedade. Logo, deduzo que se o carro está abandonado em via pública, seu dono pode perder a propriedade e o poder público deveria liberar o espaço ocupado indevidamente, ainda que não haja legislação de trânsito específica para isso.
Mas novamente, deparamo-nos (olha a ênclise aí, gente!!!, comentário a ser lido em ritmo de pré-carnaval) com as peculiaridades municipais. Cada cidade tem seus próprios critérios para dizer qual é o tempo de “abandono”. Como curiosidade, vão aí alguns exemplos: em Campinas (SP) e Belo Horizonte, consideram-se 10 dias; Vitória acha que devem se passar pelo menos 15 dias; Natal, Porto Alegre, Curitiba são mais benevolentes — somente a partir de 30 dias é que estaria caracterizado o abandono. Muitos sequer estabelecem um prazo mínimo e adotam como parâmetro o que seria “sinais de abandono”. É o caso de Recife, Maringá (PR), e Rio de Janeiro, entre outros. Sem querer desanimar meus caros leitores a continuar lendo esta minha escrevinhação, lembro-os de que o Brasil tem 5.570 municípios, dos quais uma parte considerável sequer tem arrecadação mínima para se sustentar. E certamente menos ainda tem equipamentos para fazer a prensagem dos veículos — sejam eles quais forem. Ou seja, tudo fica ao alvedrio das autoridades locais. Comentário desta escriba: adoro a palavra alvedrio, que considero esquecida injustamente. É linda, soa bem e deveria ser um dos pilares da civilização — bem, talvez não de todos, já que alguns fazem mal juízo de muita coisa, mas…
Mudando de assunto: totalmente outro assunto. Tenho sido acometida de ataques de caspa com mensagens de voz no WhatsApp. OK, às vezes é necessário, embora prefira o uso de dispositivos que escrevem o que você diz e o transformam em mensagem digitada. Justamente o bom do zapzap é que você responde quando pode, desde qualquer lugar. Se estou numa reunião, sou obrigada a sair para escutar o áudio. Se fosse mensagem digitada, bastaria olhar e responder discretamente numa hora em que a conversa da reunião não me diz respeito. Colocar fone de ouvido para isso e evitar o constrangimento de todos ouvirem o recado, então, é dar a maior bandeira, tipo “não estou nem aí para a reunião’. O mesmo se estou num lugar barulhento, que não permite que seja claramente ouvido o recado. Recentemente me vi no meio de uma “conversa” entre a pessoa que estava me atendendo num comércio e seu fornecedor. Ambos gravavam mensagem de áudio um para o outro. Aí, a pessoa que estava me atendendo usava o viva-voz para continuar me atendendo enquanto escutava a mensagem. Eu e todos ao redor ouvindo tudo. E vai mensagem de áudio. E volta mensagem de áudio. E vai mensagem de áudio. E volta mensagem de áudio. Isto durou mais de 20 minutos. Certamente se um dos dois tivesse pegado o celular e telefonado para o outro o assunto teria se encerrado em 5 minutos e com mais privacidade. OK, pode usar o WhatsApp se a questão é o custo da ligação, isso não é desculpa se a criatura não sabe escrever. Assim eu e as outras pessoas somente escutaríamos metade da conversa em vez de 100%, não?
NG
Foto de abertura: borala.blog.br