Esse livro é muito mais do que especial. É um resumo da vida pessoal e profissional de um dos grandes iniciadores do estudo matemático dos movimentos de aviões e carros, grande parte do trabalho nesses dois tipos de veículos simultaneamente, e participando de corridas para entender melhor os limites.
Não há como tentar resumir a obra pois ela é grande demais, mas apenas em tamanho – quase 700 páginas – não em cansaço de leitura, pois isso não acontece. Pelo contrário, dá uma tristeza quando o final vai se aproximando. Se algo colocado no papel pode inspirar mais alguém a ter vontade de se tornar um engenheiro, está para ser escrito.
O título em inglês é “Equations of Motion – Adventure, Risk and Inovation – an engineering autobiography” – William Franklin Milliken Jr. (1911-2012), e tem o prefácio escrito pelo piloto e construtor Dan Gurney e a edição de Beverly Rae Kimes, conhecida como “Primeira Dama da História Automobilística”, de habilidades literárias incontestáveis. Só esses dois nomes capitaneando Bill Miliken em sua história já seria notável, mas há muita substância no livro.
Como acontece com muitos, William Milliken começou a se interessar por carros muito jovem, com nove anos, quando ficava fascinado com as dezenas de fotos que seu primo mais velho colava nas paredes do quarto, retiradas de jornais ou das revistas que cobriam as corridas, tanto americanas quanto as vindas também da Europa.
Construir carros de madeira com a ajuda dos primos para dirigir nas ruas de Old Town, cidade do Maine onde nasceu, foi passo normal, e fazê-los cada vez mais completos foi natural. A presença do pai, que depois de deixar seu emprego em que ficava muito tempo longe de casa abriu uma fábrica de maçanetas e puxadores de madeira, e a formação deste, engenheiro especializado em estradas de ferro, só ajudou Bill a entender e gostar cada vez mais da ordem lógica do processo criativo. Sua mãe também o apoiava nas invenções.
Os carros de madeira evoluíram para a compra de uma moto, uma Excelsior 1914, depois de muitas brigas em casa. Como também natural nesses casos, a moto foi vítima do aprendizado de Milliken, que obviamente sofreu um belo acidente com ela. Como o que sobrou de substancial foi apenas o motor, instalou-o um carro de três rodas com estrutura de madeira, duas rodas na frente e uma atrás. Depois, adaptou uma hélice de avião ao motor, fazendo o carro andar movido dessa forma, quase um avião sem asas.
Inspirado pelo voo de Charles Lindbergh em 1927 e energizado pela sua enorme curiosidade, foi estudar engenharia aeronáutica no Massachusetts Institute of Technology (MIT), e durante algumas férias de verão construiu um avião no andar de cima da garagem de um casal vizinho. Como queria algo que fosse mesmo considerado um avião, e não apenas uma avioneta — não existia a categorização “ultraleve” naquele tempo — revestiu-o de tecido costurado com a ajuda fundamental da mãe.
Transportou o avião até uma praia a algumas centenas de quilômetros de Old Town, e o fez voar. A falta de estabilidade causou uma pilonagem (capotagem de frente) no pouso, e isso o levou a se interessar cada vez mais pelas leis que regem os movimentos dos aviões para entender o que havia acontecido. O voo foi em 5 de setembro de 1933.
O avião, batizado de M-1, tinha motor de moto Heath-Henderson de quatro cilindros arrefecido a água de 27 cv, e depois de muitos anos foi recuperado e está exposto atualmente no Owl’s Head Transportation Museum, em Rockland, Estado do Maine.
No ano seguinte, 1934, graduou-se no MIT. Todo seu aprendizado prático foi formado por uma mistura de carros e aviões como muitos autoentusiastas gostam, buscando conhecimento em ambos os tipos de veículos, e sempre acompanhando o que acontecia em corridas.
Após formado, foi trabalhar na Boeing, e passou muitas horas em voos de teste de grande altitude naquele que seria um dos mais importantes bombardeiros, o B-17, sem pressurização e voando a cerca de 10 mil metros. Depois desse, o B-29, primeiro bombardeiro pressurizado do mundo, que inicialmente tinha problemas de estabilidade que levaram à queda de um protótipo com perda de vários engenheiros, incluindo o diretor de ensaios em voo. Milliken voara várias vezes nesse avião, mas ele e seu gerente — por problemas desse último com o diretor de ensaios de voo — foram removidos da equipe alguns dias antes da fatalidade.
Ainda durante a Segunda Guerra Mundial uma boa oportunidade de trabalho o levou à Curtiss-Wright, que fechou após o final do conflito, sem novos contratos de aviões militares para manter a lucratividade. Milliken se viu sendo absorvido pela Universidade Cornell, de Buffalo, Nova York, que ganhou de presente o laboratório aeronáutico (Cornell Aeronautical Laboratory, famoso na aviação daqueles tempos pela sigla CAL) para desenvolver a dinâmica de aeronaves, tendo feito dezenas de trabalhos publicados sobre o assunto e se tornado o gerente do laboratório.
Mas os carros de corrida eram também sua paixão, e o aprendizado de um setor o levou ao outro, tendo surgido depois da visão e compra em poucos minutos de um MG TC em 1946 em uma de suas viagens a trabalho. Depois, esse carro foi trocado por um Bugatti T35A e mais um pouco de dinheiro, e a participação em corridas começou, só parando depois de 15 anos e 115 provas em alguns carros bem diferentes, como o único Miller de tração nas quatro rodas, retirado de dentro da empresa Four Wheel Drive por desejo de Milliken, que havia corrido em vários tipos de traçados e precisava entender melhor o que era um carro que tem todas as rodas tracionando.
Entre provas como a subida de montanha de Pikes Peak e outras menos conhecidas, um dos locais mais usuais que passou a frequentar foi o vilarejo de Watkins Glen, que promovia uma corrida que passava pela rua principal e se estendia a pequenas estradas próximas. Organização e sucesso das provas levaram MIlliken a sugerir um traçado permanente e seu desenho foi aprovado pouco tempo depois.
Assim, se tornou um dos criadores do autódromo de Watkins Glen, Estado de Nova York (veja o vídeo ao final). Em 1948, capotou com seu Bugatti em uma curva de alta velocidade que era conhecida como Thrill Corner (Curva da Emoção), escapando de forma milagrosa. Dali para frente, a curva passou a se chamar Milliken.
O carro era mantido por Milliken e seu time do laboratório, trabalhando à noite e em finais de semana. Com a proximidades das provas, às vezes o trabalho formal tinha o seu tempo desviado para preparação dos carros, fato que o diretor C.C. Furnas educadamente fingia não ver. Sábio homem, entendia que o entusiasmo da equipe era fator motivador também do trabalho com as aeronaves, e que um nutre o outro com informações e habilidades desenvolvidas. Em 1956 foi oficialmente criado um departamento para pesquisas sobre dinâmica de veículos terrestres.
Outros três carros foram usados nessa fase, um Bugatti maior, o Type 54 que era bastante instável, um carro batido e dividido ao meio comprado de Archie Butterworth, um S.2 com motor V-8 Steyr arrefecido a ar e oito carburadores de moto, e o Miller FWD, carro com tração nas quatro rodas, sistema que Milliken considerava ser o futuro, após participar pela primeira vez de Pikes Peak e sentir as dificuldades de tração em apenas duas rodas.
Em todos foram feitas modificações importantes para que fossem melhor nas provas, algumas delas sendo um sistema para evitar torção da suspensão dianteira do Type 54, que fazia uma roda ficar muito leve e pular em frenagens, o alongamento do entreeixos do 35, e a reconstrução do S.2, batizando-o de Butterball, com muitas alterações, como freios de Cadillac na frente e carenagem desenhada para melhorar o arrefecimento do motor.
Cabe a Milliken e sua equipe a primeira instalação registrada na história de um câmbio automático em um carro de corrida, uma caixa Dynaflow da General Motors colocada no Bugatti Type 54.
Essa filosofia de fazer a equipe trabalhar também com veículos terrestres se desenvolveu durante e depois da presença de Milliken — que foi compulsoriamente aposentado em 1976 — e hoje o CAL é a Calspan Corporation, sendo uma empresa independente da Universidade Cornell, tendo sede exatamente no mesmo endereço onde Milliken trabalhou.
Sua absoluta fome de conhecimento foi o que lhe impulsionou por todo tempo, e em todo o livro isso está sempre muito claro, ilustrado por centenas de fotos e ilustrações ótimas.
Ao longo de toda sua vida foi rodeado por profissionais de enorme capacidade, em que a troca de experiência engrandeceu a todos. Há dezenas de nomes que Milliken comenta e enaltece, em uma simplicidade honesta e emocionante. Um de seus associados foi o responsável pelo primeiro programa de computador do mundo a permitir simulações de movimento (HVOSM) a ponto de planejar com precisão a acrobacia de saltar entre rampas torcidas, com o carro concluindo um parafuso no ar. Milliken foi a fonte de informações para que Raymond McHenry, o criador do programa escrito na linguagem FORTRAN chegasse a um resultado confiável.
A demonstração feita em Houston em 15 de janeiro de 1972 atraiu a atenção dos produtores dos filmes de James Bond, e a mesma acrobacia apareceu no filme “The Man With The Golden Gun”, onde todo o equipamento foi transportado para a Tailândia. Veja vídeo a seguir.
Foi fechado um contrato com a GM para desenvolver de forma mais geral e com mais velocidade, várias ideias sobre dinâmica. Em 1956 foi modificado um Buick com vários sistemas de direção e suspensão com válvulas hidráulicas e sensores elétricos, comandados por computadores primitivos, que permitia a desconexão entre volante e caixa de direção. Dessa forma, o carro era dirigido por pulsos elétricos, exatamente o mesmo princípio do fly-by-wire que já havia sido testado em aviões e que hoje é regra geral na aviação. Imaginem isso há 70 anos!
Muitos anos depois, na década de 1970, a Lotus trabalhou com a CAL de Milliken para projetar uma suspensão ativa, sistema instalado num modelo Excel e testado por muito tempo.
Depois de forçosamente se aposentar os 65 anos do CAL, abriu sua empresa, Milliken Research Associates e adquiriu vários contratos para atividades diversas e clientes variados, até mesmo a marinha americana em um trabalho com submarinos.
Após formados, seus filhos Doug e Peter se juntaram a ele, ambos engenheiros, o primeiro mecânico e o segundo, eletricista. Doug ajudou o pai na obra-referência sobre dinâmica de veículos de competição, Race Car Vehicle Dynamics, publicada em 1994. O grande historiador Karl Ludvigsen publicou em 2004 um texto contando um pouco de sua vida e obra na revista Automobile Quarterly, e lembrou que pouco antes dessa data um levantamento do inventário do departamento de projetos de competição da Ferrari registrou 14 exemplares do livro de Milliken pai e filho.
Quando abriu sua empresa resolveu fazer algo que sempre quis mas não tinha tempo, construir seu próprio carro. Mas claro que não era um carro qualquer, tinha que ser algo que o ajudasse a demonstrar na prática algo de importante que tinha aprendido. Partiu para fazer um monoposto do tipo fórmula, com suspensões com grande amplitude de regulagens de câmber, a inclinação vertical das rodas. Era o MX-1, chamado de camber car, que aparece na foto de abertura dessa matéria. A meta com esse carro era obter estabilidade superior a carros com pneus de grande área de contato com o solo compensando os pneus estreitos de moto com uma cambagem elevada, de até 25° negativos. De quebra, menor área frontal que num fórmula similar, pela menor área frontal devido aos pneus estreitos.
No livro está detalhado muita coisa desse curioso carro, e há vários desenhos de projeto, além de esquemas mostrando as posições de fixação dos braços das suspensões para alguns ângulos. As suspensões e suas fixações são quase inacreditáveis, algo lindo de se ver.
Do trabalho com a GM veio o relacionamento de toda vida de Milliken com Maurice Olley, o primeiro ser humano a escrever um texto técnico sobre dinâmica de automóveis, o Road Manners of the Modern Car, de 1946. Milliken também se dedicou junto com o filho, a organizar as notas do britânico Olley. Seu material foi publicado em 1996, 24 anos após a morte de Olley, e se trata da base teórica que qualquer profissional — ou apaixonado — de Dinâmica precisa estudar. O título do livro é Chassis Design.
A lista dos trabalhos de Milliken e seus associados é extensa, e formam uma boa parte da base de entendimento da dinâmica veicular, tanto do que voa quanto do que anda no solo. Seu livro é um documento de importância imensurável, e que permite aprender muito, além da diversão com algumas passagens hilárias. Deveria ser obrigatório em qualquer curso de engenharia veicular.
JJ
P,S.: Escrever é sempre muito bom, com algumas surpresas de vez em quando. Na pesquisa para imagens dessa matéria, encontrei uma pérola. Um documentário de 1972 contando a história de Watkins Glen, apresentado por Brock Yates, editor da revista Car and Driver e criador da corrida Cannonball Run. Bill Miliken aparece a partir dos 12 minutos. Vale lembrar que foi nessa pista — com traçado diferente do original — que Emerson Fittipaldi obteve sua primeira vitória na Fórmula 1, no Grande Prêmio dos Estados Unidos.
Assista ao vídeo: