Os soviéticos sempre foram superlativos quando falamos em aeronaves: Tamanho, desempenho, consumo, nível de ruído, fatores que sempre foram particulares as aeronaves da chamada “Cortina de Ferro” e perduram até hoje.
Não poderia ser diferente com o motor turbo-hélice Kuznetsov NK-12, um motor concebido há 64 anos e até hoje detentor do título de mais potente do mundo, gerando nada menos que 15.000 hp (ou 15.208,5 cv) de potência no eixo, girando a mais de 8.000 rpm!
O projeto desse motor vem do final da Segunda Guerra Mundial, quando o know-how dos motores a reação alemães caíram nas mãos aliadas. Nesta época, diversos profissionais que trabalharam no projeto de motores a jato foram capturados e feitos prisioneiros e nada mais natural que os militares fossem buscar o conhecimento com essas pessoas.
Ferdinand Brandner, diretor de técnico da Fábrica de Motores Junkers, era um desses prisioneiros: Embora tenha passado todas as informações técnicas que dispunha aos soviéticos, em maio de 1945, prestando consultoria inclusive como contrapartida pela sua libertação, foi encaminhado a um campo de prisioneiros próximo a Moscou.
No inicio, os soviéticos planejavam desenvolver versões modernizadas dos motores Junkers Jumo 004, motor que equipou o caça Messerschmitt Me-262, e o BMW 003 do caça Heinkel He-162. Entretanto, no final de 1946, o Governo Central solicitou o desenvolvimento de novos motores turbo-hélice para o desenvolvimento de um bombardeiro pesado, de longo alcance, capaz de ter uma alta velocidade de cruzeiro.
Dessa maneira, Ferdinand Brandner acabou sendo “pinçado” junto com outros profissionais e, numa equipe composta por 2.500 pessoas, sendo 600 delas profissionais alemães, passaram a trabalhar sob a batuta do Engenheiro Nikolai Dmitriyevich Kuznetsov no desenvolvimento desses novos motores.
O projeto inicial foi o prosseguimento e o aperfeiçoamento de um conceito de um motor turbo-hélice construído a partir do turbojato Junkers Jumo 012, um projeto iniciado na Alemanha nacional-socialista em 1944 a partir do motor Jumo 004. Com a reativação do projeto, o motor “Jumo 022” teve diversos componentes reprojetados e se tornou um motor de 4,2 m de comprimento e 1,08 m de diâmetro.
Pesando cerca de 1.700 kg, o Jumo 022 é um turbo-hélice de acionamento direto, ou seja, o carretel onde estão compressores e turbinas é o mesmo que aciona a árvore da caixa de redução.
Possuia compressor de árvores simples e 11 estágios, apresentava razão compressão de 5,0:1, todo esse conjunto tocado por turbinas de 3 estágios. A potência produzida foi de 5.000 eshp (exhaust-shaft horsepower – medida que considera a potência na árvore de saída do escapamento e o empuxo estático convertido em potência à razão de 2,5 lbf/hp (0,343 m·kgf/cv)..
Três protótipos foram construídos e seus testes, bem-sucedidos, o que levou a autorização por parte do governo soviético para ser produzido recebendo a denominação de TW-2 (Turb-hoélice 2). Entretanto, os aprimoramentos dessa nova safra de motores continuou com os testes em um Tupolev Tu-4 (conforme veremos maiores detalhes adiante) adaptado com dois TW-2 nos motores externos, além de incrementos de potência com o aprimoramento do projeto.
O TW-2 foi cotado para equipar o quadrimotor Antonov An-8, entretanto, possivelmente devido a um incêndio que culminou na queda do banco de provas Tupolev Tu-4, bem como a existência de algumas deficiências no projeto, o TW-2 acabou preterido em favor do turbo-hélice Ivchenko AI-20. Paralelamente a esses eventos, o escritório de projetos de Kuznetsov aprimorava o TW-2, chegando extrair uma potência de 7.650 hp (7.756,3 cv), girando um conjunto de hélices contrarrotativas acopladas.
Nesta mesma época, os soviéticos dispunham dos bombardeiros Tupolev Tu-4, um clone construído em unidades de medida métricas (no lugar do sistema imperial) do Boeing B-29. Entretanto quando realizou seu primeiro voo, em 1947, a aeronave já era obsoleta frente aos projetos americanos (Boeing B-47 e mesmo o pesado e complexo Convair B-36) e os “pais da criança” já sabiam disso, por isso buscavam desenvolver motores aptos para tracionar uma nova geração de aeronaves.
A resposta soviética aos Boeings B-47 e B-52 se deu na forma de projeto por parte dos escritórios liderados por Andrei Tupolev, num enorme bombardeiro, de grande autonomia, velocidade e capacidade de carga. Como os motores turbojato da época eram extremamente ineficientes e gastadores, o Comitê Central da União Soviética considerou adequado o emprego de motores turbo-hélice de grande potência, e assim Tupolev propôs avião um quadrimotor turbo-hélice, de grande desempenho e autonomia, um projeto que culminou naquele que se tornou o símbolo da Guerra Fria e da União Soviética: O Tupolev Tu-95 “Bear” (Urso).
Para tracionar o “Bear”, foi inicialmente testado um par de motores Kuznetsov TW-2 acoplados a cada conjunto de hélices (num total de 8 motores e 4 pares de hélices contrarrotativas), necessários para produzir os 12.000 hp (12.166,8 cv) por conjunto para impulsionar o “Urso”. O conjunto denominado 2TW-2F foi colocado no primeiro protótipo do Tu-95 e fez seu primeiro voo em novembro de 1952.
Entretanto, esse arranjo na motorização desde o início se mostrara inconfiável, levando a equipe de projetos de Kuznetsov a trabalhar em um motor único para produzir os 12.000 hp. Apesar disso os testes com o Tu-95 continuaram e seis meses depois do primeiro voo, em um voo de testes, houve a quebra de uma caixa de engrenagens de um dos pares de motor 2TW-2F, culminando com a queda do primeiro protótipo do Tu-95.
Assim, surge o motor TW-12, posteriormente Kuznetsov NK-12, um TW-2 evoluído, dispondo de um compressor de 14 estágios (no projeto inicial do Jumo 022 eram apenas 11), turbinas de 5 estágios e uma razão de compressão de 9,5:1 (o 2TW-2 do protótipo do Tu-95 era 6:1). Possuía estatores variáveis para dirigir o fluxo de ar pelos compressores, tinha 4,7 m de comprimento por 1,2 m de diâmetro e pesava apenas 2.900 kg na versão MV de 15.000 hp! (15.208,5 cv)
As hélices contrarrotativas acopladas a esse motor, tinham 5,6 m de diâmetro e embora sua velocidade de rotação fosse reduzida es 9.250 rpm no árvores para 850 rpm na saída da hélice, por meio de engrenagens planetárias e solares, o seu grande diâmetro não impedia que as pontas da hélice girassem em velocidades superiores à do som, produzindo um ruído que se tornou marca registrada dos Tu-95.
O uso de hélices contrarotativas, em tese, apresenta diversas vantagens, como o melhor aproveitamento da massa de ar tracionada pela hélice. Anula o efeito torque do motor (o jogo de forças envolvida no funcionamento da árvore do motor em tese são anuladas), o chamado “fator p” (linhas gerais, a assimetria na tração da hélice em relação ao seu centro) em caso de perda de motor, além do desempenho de tração, incrementado em até 15%.
Essas vantagens, no entanto, são fortemente contrabalançadas pelo acréscimo de peso e complexidade das caixas de redução necessárias para o referido conjunto. O incremento do nível de ruído também é outro fator que pesa contra este tipo de solução.
Entretanto, contrabalançado prós e contras, ainda assim foi escolhido o arranjo de hélices contrarotativas, que combinado com o motor TW-12 disponível para uso, permitiu que Andrei Tupolev terminasse seu bombardeiro, colocando-o em produção seriada.
O Tupolev Tu-95 foi projetado como bombardeiro de longo alcance (autonomia de mais de 14.000 km ou 8.000 milhas náuticas) e de grande capacidade de carga, apto para transportar cargas nucleares e mísseis com ogivas nucleares. O projeto esguio de aeronave, de grande potência tracionando hélices contrarrotativas combinada com asas de 35º de enflechamento (mesmo ângulo do Boeing 707) garantia ao Tu-95 um desempenho próximo ao de muitas aeronaves a reação, com velocidades de cruzeiro próximas a 800 km/h.
A tripulação era composta de 6 a 8 membros — piloto, copiloto, engenheiro de voo, navegador (2, em alguns casos), operador de armas e operador de comunicações.
O sistema de defesa do Tu 95 inicialmente era composto de 6 pares de canhões de 23 mm, um na cauda e dois outros em torres, na parte superior e inferior da fuselagem. Com o advento dos mísseis ar-ar, os dois canhões de fuselagem foram removidos nas ultimas versões do Tu-95, permanecendo apenas o da cauda.
A ideia inicial era dos Tu-95 representarem a força de ataque soviética aos Estados Unidos em caso de recrudescimento da Guerra Fria. Como estratégia, dezenas de “Bears” seriam enviados, via Oceano Ártico, para alvos nos Estados Unidos. Mas com o advento dos mísseis balísticos, a função dos Tu-95 foram sendo alteradas e as bombas cederam lugar para o lançamento de mísseis teleguiados, com ogivas nuclear inclusive.
Um Tu-95 foi especialmente adaptado para o lançamento da primeira bomba de hidrogênio soviética. Especialmente adaptado para o transporte da pesada e mais forte bomba já detonada pelo Homem, a missão foi desempenhada com sucesso, apesar de a tripulação das aeronaves envolvidas estarem cientes que a chance de sobrevivência estimada seria de 50%.
Naturalmente devido ao bom desempenho do Tu-95, cuja produção se iniciou em 1956 e se estendeu até 1994 com mais de 500 unidades fabricadas, propiciou o desenvolvimento de modelos variantes da aeronave como a de patrulhamento marítimo Tu-142 e o quadrimotor civil Tu-114.
O Tu-142 era essencialmente um bombardeiro Tu-95 alongado e adaptado para o transporte de equipamentos de vigilância marítima e guerra antissubmarina. Assim, na década de 1960 foram realizadas modificações no Tu-95, com o acréscimo de sensores e radares para reconhecimento marítimo. Para tal, a fuselagem foi acrescida inicialmente em 1,7 m para a acomodação dos radares e sensores e a tripulação aumentada para até 13 pessoas. Em 1968, o agora rebatizado Tu-142 realiza seu primeiro voo, iniciando uma carreira bem-sucedida em sua missão de patrulha marítima.
Do ponto de vista operacional, o raio de ação da aeronave, velocidade e autonomia do Tu-142 é semelhante a do Tu-95, permitindo que os soviéticos (e agora os russos) realizem missões de patrulha marítima de longo alcance.
O Tupolev Tu-114 por sua vez, pode ser considerado a variante civil do “Bear”: construído a partir do conceito do Tu-95, ffoi um quadrimotor turbo-hélice surgido a partir de uma solicitação governamental para uma aeronave de passageiros de alto desempenho e autonomia baseado no Tu-95.
Assim, em 1957, surge o Tu-114, na época, o maior avião comercial de passageiros produzido, com grande capacidade de passageiros e autonomia somente suplantados pelos concorrentes ocidentais a partir de meados da década de 1960.
Capaz de transportar até 224 passageiros, possuía uma configuração para 170 pessoas dentro de padrões de conforto elevados. Sua velocidade máxima era próxima ao das aeronaves de motor a jato ocidentais, entretanto em termos de velocidade média, o Tu-114 era ligeiramente mais lento, mas que era compensada pela maior eficiência dos motores Kuznetsov NK-12 em relação aos motores turbojato da época, e se traduzia numa autonomia superior a 10.000 km!
Apesar de somente ter entrado em operação em 1961, os protótipos do Tu-114 fizeram diversas aparições publicas no ocidente a partir de 1958. Em setembro de 1959, o premiiê soviético Nikita Khrushchev fez sua primeira visita aos Estados Unidos a bordo de um Tu-114, ainda uma aeronave não homologada.
Khrushchev fora alertado que a aeronave ainda estava em caráter de testes mas mesmo assim insistiu em viajar no grande turbo-hélice, talvez, até uma forma de exibir a capacidade soviética no ocidente. Andrei Tupolev estava tão confiante no seu projeto e na aeronave, ainda que em testes, que enviou seu filho Alexei Tupolev (e criador do Tu-144 – o equivalente soviético do Concorde) na viagem, considerada de risco pelo piloto de Khrushchev e pelo Comitê Central do Partido Comunista.
Uma das peculiaridades dessa viagem foi que, no desembarque nos Estados Unidos, não havia escadas com altura suficiente para atingir as portas da aeronave. Os enormes trens de pouso, projetados para dar o espaço suficiente para as enormes hélices do 114, eram singulares, não havendo nada semelhante no ocidente, obrigando os passageiros a saírem pelas escadas de emergência da aeronave!
Entre 1960 e 1962, o Tupolev Tu-114 estabeleceu uma série de recordes para sua categoria de aeronave, sua grande maioria, recordes de velocidade média em um determinado trajeto. Foram produzidas 32 aeronaves que operaram de 1961 até 1991, sendo que nesse período, ocorreu apenas um acidente com vítimas!
O escritório de projetos Antonov também se beneficiou dos motores Kuznetsov: encarregado de projetar uma aeronave complementar ao An-8 e An-10, ambos quadrimotores turbo-hélice de transporte.
Todavia, como tudo que se refere a projetos soviéticos de então eram verdadeiros superlativos, a aeronave concebida foi o An-22. Apelidado de “Cock” no ocidente (Galo), o An-22 era um quadrimotor de transporte pesado, com carga útil de 136.000 kg (carga útil é a diferença entre o peso máximo de decolagem e o peso vazio — a guisa de comparação, um Boeing 707-320 possuía 84.200 kg).
A cauda dupla tinha dupla razão de existir: além de permitir um melhor comportamento da aeronave em caso de perda de um motor, formava um conjunto mais compacto para hangaragem, dispensando os enormes lemes de direção únicos de grande altura.
Os Kuznetsov NK-12 foram ajustados para produzirem 15.000 hp e as hélices contrarrotativas puderam ser aumentadas em 60 cm, passando de 5,6 m no “Bear” para de 6,2 m de diâmetro, já que as asas altas do cargueiro possibilitavam mais distância do solo para os motores. E apesar de uma aeronave singular no tamanho, a maior aeronave tracionada por hélices produzida, tinha uma distância de pouso e decolagem curtas, inferior a 1.500 m, além de serem aptas a operar em pistas de terra e não preparadas.
Uma das características curiosas que permitiu o An-22 ter grande capacidade de carga foi a sua estrutura: com pressurização em toda a aeronave, o compartimento de carga apresentava um diferencial de pressurização menor do que a cabine principal, permitindo o emprego de uma estrutura mais leve por ter que suportar um diferencial de pressurização menor.
O primeiro protótipo voou em 1965 e entrou em operação em 1967, estando em operação nas forças armadas soviéticas desde então, sendo produzidos 68 aeronaves.
Atualmente restam poucos Antonov An-22 em operação, com seis a serviço da Força Aérea da Rússia e um único civil, pertencente a Antonov Airliners, uma empresa cargueira da Ucrânia, conhecida por ser igualmente proprietária do maior (e único!) avião já construído no mundo, o Antonov An-225 “Mriya”.
Assista a esses vídeos:
https://www.youtube.com/watch?v=_G3q8BgzQAA
DA