Na semana passada minha companhia automobilística foi um simpático Fiat Uno Way 2014 com apenas 26 mil quilômetros rodados. Fiquei quatro dias com o carro e rodei cerca de 200 quilõmetros, numa experiência bem interessante em que deu para ver o hiato que separa o primeiro contato com um veículo da marca (um Uno Mille 1993, na época do carro) e este Novo Uno, 21 anos mais novo.
Apesar da abissal diferença entre os dois carros (a começar pela suavidade no engate das marchas, em nada lembrando o Mille de 1993), a essência da Fiat permanece lá, viva. O ruído produzido pelas engrenagens do câmbio, o ronco do motor…E a disposição dos pedais? Perfeita para punta-tacco e alegria do Bob Sharp!
O estilo do painel, dotado de um grande marcador de temperatura do líquido de arrefecimento em detrimento do indicador do nível de combustível (digital, de difícil leitura) lembrou alguns outros Fiats com que tive contato, como uma Fiat Strada que experimentei muitos anos atrás.
Para mim, que na minha vida de motorista teve a esmagadora maioria dos veículos da Volkswagen, ficam muito nítidas a experiência e as características de uma marca, em especial quando testamos veículos com outra filosofia construtiva.
O caso dos Fords Ranger e F-1000
Para quem saiu de Gol, Golf, e Saveiro (tive duas seguidas!), ir para o Ford Ranger Diesel que adquiri zero-quilômetro em 2006 foi uma interessante experiência.
Já na chave, a experiência de uma chave de ignição pequena que destrava o miolo, rodando as abas, como no Opala, e paralelamente tendo que destravar uma pequena aba com o indicador, virando simultaneamente as abas com o anular e o polegar demonstram o DNA americano do carro, facilmente observável em filmes e mesmo em outros modelos de carros vendidos naquele país.
O sinal sonoro ao ligar a ignição estando sem os cintos de segurança denunciam o padrão norte-americano, aliás, característica essa presente no Golf GLX 1997 que tive, fabricado no México para o mercado americano.
O painel de iluminação verde escuro (eu gosto! Como no Golf…seria algo para o mercado americano?), o confuso sistema de comando de ventilação/ar-condicionado, pequenos detalhes demonstrando o padrão americano que norteou o projeto e a concepção do carro.
Também tive uma Ford F-1000 4×4 1998 e a presença do DNA americano na picape também é patente. Exceto pequenos detalhes herdados da Autolatina (como os botões dos vidros elétricos e regulagem dos espelhos idênticos ao do Gol G2), o resto é idêntico a F-150, começando pelos robustos e pesados eixos dianteiros Dana 44 TTB permitindo suspensão dianteira independente do tipo Twin-I-Beam mesmo sendo um eixo motriz, e tal qual a Ranger, com para-choques e grade dianteira abusando dos cromados mostram bem o tipo de público-alvo que a Ford pretendia atacar.
O sistema de ar-condicionado da F-1000 também carregava a herança da marca: Comando via alavanca deslizante, parece ter sido herdado do Del Rey e é extremamente confuso, alternando posições em que o compressor está acoplado com posições onde somente a ventilação está ativa. E não adianta querer se valer do esquema “ah, se pesar o motor, o compressor está ativo”. O enorme, pesado (e gastador também) MWM 4.10T produz 133 cv a ínfimas 2.600 rpm; o compressor, quando ligado, nem muda o ruído do motor…
E já que falamos na linha Del Rey…o Corcel II/Belina também tinha, em seu DNA, características dos seu genitores: Por fora, um clássico descendente do Renault 12, começando pelos 3 elementos de fixação da roda e o ruído do motor. Por dentro, instrumentos circulares, num painel de ferro pintado de preto, ou então, monocromático, parecendo coisa herdada do Maverick.
Autolatina
Por mais que se tente colocar a “assinatura” da marca num modelo concebido por outro fabricante, fica difícil esconder as raízes do projeto.
O Volkswagen Apollo é um bom exemplo disso: mesmo com todos os emblemas Volkswagen, era impossível esconder a sua origem Ford, mal disfarçada com a manopla do câmbio, idêntica à do Ford Escort e do seu irmão gêmeo, o Verona.
Por outro lado, entrar em um Ford Versailles tinha-se a impressão de estar em um legítimo Ford. Acabamento caprichado, tecido dos bancos mais espessos e e todo um ar de Ford, praticamente um herdeiro do Del Rey Ghia. Só que era virar a chave e se sentir numa espécie de Volkswagen Santana vestido de Ford, da “chacoalhadinha” na partida passando pelo ronco do motor, pedal do acelerador com fim de curso seco (o batente e o “toc” quando chega no final — até a Kombi e o Fusca tem isso) e a firmeza no rodar, característica alemã, bem diferente da maciez e a grande rolagem de carroceria associada à linha Ford até então! Aliás, essa “indecisão” sobre a origem do carro me motivou a elegê-lo como imagem de abertura.
A dupla Logus/Pointer também não escondia a origem Ford. Quem viu um Logus com motor CHT (ops, “AE1600”) sabe bem do que falo. Isso sem falar que atrás da portinhola de abastecimento desses modelos, escondia uma tampa do reservatório idêntica ao do Escort!
E já que falamos no CHT, descendente direto do motor Renault Sierra, também é outro caso curioso. Sua concepção diametralmente oposta ao EA827/AP, o CHT era um “estranho no cofre” dos Volkswagens, ainda que, apesar disso a marca tenha vendido muitos carros com essa motorização.
Aliás, o ruído do CHT creio ser tipicamente francês: Quando minha mulher tinha o Peugeot 207 de 1,4 L, certa vez ao levar meu pai no carro, o primeiro comentário dele foi: “Filho, esse carro tem motor de Escort?”
Escute alguns motores “Sierra”
Fiat com alma de GM?
Para quem gosta e aprecia os carros da Fiat, certamente falarão dos motores “giradores” e suaves da marca italiana.
Entretanto, o período da primeira década de 2000, a união com a General Motors criou um tipo estranho: os Fiats com motor GM!.
E por que um tipo estranho? Porque o motor GM escolhido foi nada menos que o Família 1, 1,8-L, de curso longo, abundante de potência disponível em baixas rotações (bem ao gosto americano) mas áspero em altos giros, exatamente o inverso daquilo que se espera em um Fiat.
Os detalhes
São exatamente nos pequenos detalhes que a gente consegue perceber se está a bordo de uma marca ou outra de veículo. Que faz a gente se sentir “em casa” ou como um estranho.
Passei por essa experiência em 2006: Naquela época, eu usava uma Saveiro Supersurf 2003, adquirida de segunda mão e estava extremamente satisfeito com o desempenho global do veículo. A satisfação era tanta que, certo dia, de posse de uma cota contemplada de consórcio, resolvi ir ao concessionário local e trocar a Saveiro por outra, do mesmo modelo só que mais completa (bolsa inflável, freios ABS, motor 1,8-L).
Desisti quando entrei na infame “Geração 4” do modelo. Não era o carro que eu esperava, embora mecanicamente fosse idêntico. Da instrumentação ao revestimento de portas, não “vesti” o carro. Resultado, parti para a Ford e acabei adquirindo a Ranger, quase duas vezes mais cara.
Neste quesito, a Fiat com a Strada merece todos os aplausos. Além de ser um excelente veículo, as alterações de modelo não desapontam nem fazem o consumidor estranhar ao entrar num modelo mais recente. Conheço pessoas que estão na décima Strada e não pretendem abrir mão do modelo enquanto estiver em produção.
Quinze anos atrás, um amigo teve a oportunidade de estar em uma dessas “clínicas-conceito” em um local de São Paulo. Lá havia diversos carros devidamente descaracterizados, veículos estes que deveriam ser avaliados de acordo com os atributos questionados.
O consumidor comum passaria despercebido em qual veículo estaria avaliando (os emblemas foram devidamente ocultados/retirados) entretanto um entusiasta, através de certos detalhes, facilmente adivinharia a marca e até mesmo o modelo, baseado exclusivamente nos detalhes de acabamento, posição dos botões e mesmo na ergonomia. Esse meu amigo comentou comigo que dos diversos carros a serem avaliados, ele conseguiu “adivinhar” praticamente todos os veículos avaliados.
Para quem realmente é um entusiasta (é isso que o difere do consumidor comum), a preocupação está justamente esses detalhes, que muitas vezes tornam o processo de escolha de um automóvel uma atividade que envolve muito mais que a aparência ou a imagem que o veículo passa para terceiros. Ela passa por aquele bem estar (empatia?) do carro com seu dono, quando ele deixa de ser a máquina para se tornar uma extensão do corpo.
DA