Quando vislumbramos o passado pelos espelhos da vida nos vêm as recordações, os sentimentos, as emoções e experiências vividas solo ou acompanhado por aqueles que também participaram da mesma situação, embora cada um tenha seu próprio ponto de vista. O que desejamos na verdade é um reencontro com nós mesmos.
Saudosismo barato? Não, caras lembranças. Caras no sentido de preciosas e revigoradoras e que nos ajudam a agradecer e preparar um futuro lastreado num presente sólido.
O templo do automobilismo, participou, continua e seguirá sendo parte importante da vida pessoal e profissional de inúmeras pessoas. Comigo não é diferente e o mesmo ocorre com muitos dos leitores.
Ele já era maior de idade quando eu nasci. E para mim só demorou até à minha adolescência, deslumbrado pelas corridas de carros, para visitá-lo e dizer que vinha para participar e não apenas assistir.
Futuro incerto que deu certo
Os anos 1920 e 1930 não foram os mais propícios para os audaciosos planos imobiliários em que estava incluído aquele autódromo praticamente no meio do nada.
Demorou até 1940 para que a ideia de um traçado fechado viesse a substituir corridas de rua que vez por outra acabavam em acidentes, e com mortes. Mas foi inaugurado incompleto.
No conceito que se segue até os dias de hoje, em que grupos empresariais investem em campos de prova, onde a repetibilidade e a segurança também estejam cercadas, pistas fechadas tinham futuro numa época de paixão pelas corridas em que já havia pilotos brasileiros se aventurando pelo mundo.
Não tínhamos indústria nacional, e o projeto não deslanchou tanto assim. Com o Geia – Grupo Executivo da Indústria Automobilística e a chegada das fábricas é que as corridas nacionais tomaram o ritmo de crescimento e colaboração no desenvolvimento de veículos. Sim, Interlagos é muito importante não só para as pessoas envolvidas com ele, mas também por aquilo que suas pistas ainda propiciam aos veículos.
De meados dos anos 1950, e principalmente dos anos 1960 em diante, foram promovidas importantes provas de longa duração e resistência, tais como Mil Milhas, 500 Quilômetros, 24 Horas, 12 Horas, 1500 Quilômetros, 100 Milhas, 1000 Quilômetros, 250 Milhas, 6 Horas, 25 Horas, e sempre com o sufixo “de Interlagos”. A participação das equipes oficiais de fábrica trazia respaldo técnico e rendimento superior muitas vezes aproveitados depois nos veículos.
Foi neste contexto que surgiram outros grandes nomes do automobilismo brasileiro; alguns tentaram a carreira no exterior e trouxeram-nos grandes alegrias.
Apesar disto, e por conta da segurança (integridade física) rudimentar, ele foi fechado em 1968, reaberto em 1970, mas ainda não atendendo protocolos internacionais. Só em 1972 recebeu status de autódromo internacional visando promover provas da então em grande evidência Fórmula 1.
A televisão já tinha dados largos passos no Brasil e ele não podia ficar de fora. Participou de episódio do seriado “Vigilante Rodoviário”. Em filmes como o de Roberto Carlos, com os protótipos da Divisão 4, a participação viria em seguida. Até em novelas, décadas depois! Corridas ao vivo passavam pela extinta TV Tupi, canal 4 de São Paulo, e no programa “Grand Prix” (produzido e apresentado pelo Fernando Calmon), nesse mesmo canal na mesma época. Assisti várias e isso só aguçava a vontade de ir lá para ver ao vivo.
Longo caminho na busca do melhor lugar
Nos anos 1970, além das corridas de longa duração, os racing days (dias com várias corridas e várias categorias) se tornaram comuns. E o sucesso da Fórmula 1 incentivou muito também as provas curtas das Divisões 1, 2, 3 e 4, bem como as de monopostos das Fórmulas Ford, Vê e Super Vê, por exemplo. Íamos ver todas que conseguíamos.
O caminho era longo até lá, mas valia à pena. Morávamos na zona norte e percorríamos os quase 40 quilômetros de distância até a Zona Sul em ônibus e a pé com as mochilas abastecidas de sanduíches. O dia (sábado de treinos e domingo de provas) começava bem cedo e terminava bem tarde.
Interessante era a precariedade da segurança, desta vez a patrimonial. Era muito fácil adentrar pelos muros — por cima, por baixo ou pelos buracos que apareciam de um dia para outro — ou até por alambrados já parcialmente removidos por alguém que havia chegado ainda antes de nós.
De quando em quando tínhamos que correr da segurança particular e da polícia e não demorou a descobrir que o melhor lugar para se esconder era justamente no tumulto dos agitados boxes. Era o paraíso.
Apenas para constar, até tentamos assistir das arquibancadas (80% de visão das pistas), mas era tedioso. O que víamos além da corrida (óbvio!) era, em algumas ocasiões, a neblina chegando da represa Billings enquanto o sol trincava as telhas nas curvas 1 e 2. Acertar um motor e suspensão no relevo e clima de Interlagos era, e ainda é, a kind of magic (um tipo de mágica).
Logo ficou claro para nós que o segundo melhor lugar para acompanhar corridas é no que hoje se chama de padock, pits e pitlane; resumindo, é onde ficamos sabendo aquilo que os narradores não têm a menor ideia que está acontecendo na pista. O primeiro melhor lugar? O banco do piloto, ora!?
Quem te viu e quem te vê
Tivemos oportunidades e causos ótimos como o do dia em que Nélson Piquet conquistou em Interlagos o campeonato brasileiro de Fórmula Super Vê. A festa de comemoração corria solta em frente ao pódio. Nessas horas quase ninguém ficava na parte de trás dos antigos boxes, mas nós sim. E acredite no que o pessoal da equipe dele abandonou lá; isso mesmo o carro campeão. Para nós garotos não podia ser melhor; fuçamos em tudo que podíamos (podíamos?) e só não nos sentamos nele porque o medo de represálias (leia-se da polícia e seus cassetetes) era maior. Hoje, situações como esta são praticamente impossíveis.
Só que o desejo mesmo era ver de perto carros da F-1, ao menos nos treinos livres ou naqueles chamados de testes de pneus que ocorriam no verão brasileiro para fugir do inverno europeu. Histórias como a de Gilles Villeneuve derrapando nas quatro entre as curvas 1 e 2, com carro de efeito solo, alinhando-o para o retão, ou a vitória do Moco pela Brabham (foto abaixo) em 1975, ou ainda os testes dos primeiros Copersucar ferviam em nossas mentes. Treinos até conseguimos…pulando muros.
Vimos de perto o Copersucar pilotado pelo Emerson parar na curva do Café, Ingo vir até ali de moto, e a equipe levar o carro até os boxes para reparos. Aproveitamos a bagunça que se formou para ir até…os boxes, claro. Desta vez tivemos que correr da polícia (de Veraneio e seus cassetetes), mas nos misturamos aos diversos “integrantes” da equipe e ficou por isso mesmo; acho que os policiais desistiram de tantos que tinham para tirar de lá.
Se você tem dúvidas da balburdia que era nessa época, convido a assistir o vídeo abaixo, narrado pelo Leo Batista. Com certeza não estou nessas imagens, mas em outras ocasiões estava e foi igualzinho.
Noutra oportunidade, pudemos ver de perto o treino de alguns carros, entre eles a “chaleira”, apelido carinhoso (?) dado à Ligier Gitanes (foto abaixo). Ou ainda, em primeira mão pela fresta das portas da garagem, vimos que a Brabham daquele ano ostentaria o vermelho da Alfa Romeo com o mesmo patrocínio Martini de anos anteriores.
Mas corrida mesmo, nunca conseguimos assistir; ou invadir, como preferem alguns. A que tentamos foi a de 1977. Bem de madrugada fomos para um dos pontos mais frágeis, o final do retão. Havia tanta gente acampada nos arredores, no gramado da própria pista e tantos policiais (eles de novo) desta vez a cavalo e “gentilmente” retirando de lá os que já tinham conseguido entrar, que decidimos acabar com o sonho e voltar para casa. E assistimos pela TV um dos maiores fiascos de recapeamento asfáltico. Lá mesmo na curva 3, onde tentamos entrar. Foi um “bafafá” danado. Pela bagunça? Não só, mas também pelo acúmulo de pessoas e de carros para retirar de lá.
Hoje, não só na Fórmula 1, mas em qualquer categoria está bem melhor em termos de integridade física; entretanto, é capaz de algum piloto não conseguir entrar para correr tamanha a engenhosidade da segurança patrimonial.
A evolução
Chegaram os anos 1980 e com eles a possibilidade de aplicar o aprendizado teórico da faculdade de Engenharia em algumas provas de kart e depois de turismo (veja aqui no Carro do Leitor). Considero-me entre os felizardos que puderam pilotar no circuito antigo e, depois da reforma que encurtou o traçado, no atual. Os dois são excepcionais.
A experiência de ver de fora algo como uns vinte e tantos carros descendo aquele retão após a largada e depois, noutra ocasião, estar no meio deles, era de arrepiar… nas duas situações. Mas o retão virou linha de teste de monotrilho do prefeito Pitta. Pena.
Ainda em meados dos anos 1980 tínhamos as provas do Campeonato Brasileiro de Marcas e Pilotos, muitas delas de longa duração. Já formado e atuando pela Cofap, eu era responsável técnico pelo acompanhamento dos amortecedores de competição. Foi onde evolui, conheci a aprendi a respeitar nomes famosos, mas que talvez sejam desconhecidos do público que focava muito mais no sucesso dos brasileiros na Fórmula 1. Alguns ainda atuam nos bastidores da Stock Car, categoria cuja primeira prova em Interlagos nós vimos de perto…pelos muros e dos boxes, como sempre.
Também pude trabalhar nos boxes de algumas Mil Milhas e ver de perto o que a resistência, a experiência e a capacidade de profissionais fazem consigo mesmo e com veículos de competição (veja aqui o exemplo do Chepalett da GM); um evolutivo progresso pessoal e técnico constante.
Vivendo e aprendendo
“Ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo. Por isso, aprendemos sempre” (Paulo Freire). Daí que considero de suma importância a existência das escolas de pilotagem. Mas o contexto mudou muito.
Escola de Pilotagem de Interlagos, Marazzi, Alpi, Manzini, Safe D, Berti (desculpem se esqueci alguma) unânimes na função de lapidar diamantes ou ao menos preparar motoristas para controlar melhor um veículo. Mesmo que não seja para competições, o que se tornou mais usual e atual pelos cursos de direção defensiva e preventiva. E tudo isso lá dentro, no lugar apropriado.
A era moderna
Quando a Fórmula 1 assumiu de vez Interlagos, a Bridgestone fornecia pneus para algumas equipes. Todo ano vinham ao Brasil, bem antes da prova, alguns engenheiros da matriz com equipamentos para medir os coeficientes de atrito e rugosidade do asfalto. Eu servia como elo, então aproveitava para dar mais umas voltas na pista. Elementar.
Em outra ocasião, uma nipônica que iniciaria a fabricação local de seu veículo, recorreu aos pneus da Bridgestone. Seus executivos e engenheiros queriam conhecer o templo e dirigir lá. Acionei meus contatos e alugamos a pista, com exclusividade. Mais algumas voltas, como não podia deixar de ser.
A ligação comercial da Bridgestone com a Fórmula Truck possibilitou-me acompanhá-la mais de perto nos últimos anos da categoria, mesmo que extraoficialmente em umas poucas provas e alguns autódromos. Mas era na de Interlagos que a “coisa fervia”. Vencer corridas é bom, mas lá é muito melhor.
Ao longo da carreira e por conta das as atividades, principalmente as técnicas, tive a oportunidade de visitar e até dirigir em outros autódromos nacionais, mas nada se compara a Interlagos.
Sempre que posso, volto lá; afinal, esse vivido senhor (velho não) sempre tem algo que posso recordar ou ainda para ensinar.
MP