Um avião não muito propagandeado pela máquina americana patriótica, mas que foi muito importante, é o A-5 Vigilante, do fabricante North American, hoje absorvido pela Boeing, quando comprou a McDonnell Douglas, que já havia englobado a North American. Sim, as empresas gloriosas do passado da aviação também desaparecem, como acontece com as de carros.
Inicialmente desenvolvido como um bombardeiro médio de alta velocidade, supersônico, não se mostrou muito eficiente nesse papel, mas foi inteligentemente convertido para uma aeronave de reconhecimento que, quis o destino, fosse um dos principais responsáveis pela mui importante libertação de prisioneiros de guerra durante o conflito do Vietnã.
Essa missão entrou para a história dos combates aéreos, mesmo com o Vigilante não tendo disparado um único tiro ou míssil. Voou baixo e rápido até o centro de Hanói, a capital do Vietnã, onde em uma área não muito grande, os norte-vietnamitas mantinham em prisão dezenas de militares americanos. Apesar da situação torturante, muito bem detalhada no maravilhoso diário do Coronel Larry Guarino, A P.O.W’s Story: 2801 Days in Hanoi, sem tradução em português, os gozadores apelidaram a prisão de “ Hanoi Hilton”, como se aquilo fosse um hotel. Guarino faleceu recentemente, em 18 de agosto deste ano, o que me entristece, já que seu livro foi o primeiro que li em língua inglesa, além daqueles obrigatórios das aulas. Marcou definitivamente minha independência da literatura em português. P.O.W. é abreviatura de prisioner of war (prisioneiro de guerra). Esta sigla aparece muitas vezes junto com M.I.A. , missing in action (desaparecido em ação).
Após o nascimento do projeto como NAGPAW – North American General Purpose Attack Weapon, a meta do avião era ser um bombardeiro de grande velocidade e altitude, duas vezes a velocidade do som e teto de serviço de 52.500 pés (16.000 metros). O projeto básico foi exposto para a Marinha americana em 1954, e depois de algumas alterações, re-submetido e aprovado em abril de 1955. O contrato para construção das aeronaves foi assinado em 29 de junho de 1956, e o primeiro vôo foi em 31 de agosto de 1958.
A North American Aviation foi uma das forças gigantes da engenharia à fabricação aeronáuticas dos Estados Unidos. Depois de aprovado, projeto, construção e primeiro vôo em dois anos e dois dias. E hoje ficamos extasiados quando descobrimos que o projeto de um carro foi feito em dois anos!
As guerras sempre aceleram o conhecimento e a tecnologia, muito mais do que as leis e normas que tolhem a criatividade cada vez mais, e fazem os projetos de quase qualquer artefato humano ser feito dentro de uma caixinha politicamente correta. E tudo vai piorar ainda mais para nós que dirigimos automóveis, pois o depressivo carro autônomo logo estará nos mercados de Primeiro Mundo. Aqui vai demorar mais, já que nem sinalização de solo decente temos na maioria das vias. O carro autônomo ficaria maluquinho, travando como um computador velho, tentando descobrir os limites da faixa em que deveria trafegar.
Mas há pelo menos uma diferença básica no desenvolvimento de um avião militar de cinco décadas atrás e um automóvel de hoje. Os testes e o tempo necessário para realizá-los. Num avião militar, depois de muitas avaliações por pilotos de prova e ensaios de laboratório, ainda é absolutamente normal que problemas até mesmo sérios sejam encontrados em serviço normal.
Num carro, pelos usuários formarem um universo muito maior e mais variado, defeitos pequenos podem ser notados por uma boa parte de usuários, o que os torna altamente indesejáveis. Toma-se então, muito mais tempo tentando reproduzir problemas que, muitas vezes, nem mesmo existirão na vida real. E mesmo assim, jamais se cobrem todas as possibilidades de problemas. Nenhum fabricante consegue isso, provando que a perfeição não existe.
Como a North American nunca foi burra, os motores escolhidos foram os mesmos do McDonnell Douglas F-4 Phantom II, os General Electric J79, turbojatos bastante potentes, 48.000 newtons (10.800 libras-força) de empuxo normal, 76.000 newtons (17.000 libras-força) de empuxo para decolagem e emergências, com afterburner, a pós-combustão, sistema que injeta combustível na saída da câmara de combustão, para aumentar ainda mais a potência. Como o Phantom era a linha de frente dos caças embarcados, a simplicidade de manutenção ao menos do sistema de propulsão era assim muito melhorada dentro dos porta-aviões.
O peso máximo chegando a 28.615 kg era algo bastante alto, mas não novidade absoluta, já que a Marinha havia alterado muita coisa nos porta-aviões quando entrou em operação o A-3 Skywarrior. No Vigilante, a potência dos dois motores era suficiente para permitir uma razão de subida bastante forte, 8.000 pés por minuto, o que dá 40,6 m/s, ou 146 km/h medidos na vertical, e chegando à velocidade máxima de Mach 2, duas vezes a velocidade do som, 2.123 km/h a 40.000 pés (12.200 metros) de altitude.
Ponto mestre do projeto foi a redução de arrasto aerodinâmico, seja por superfícies bem tratadas, seja por área frontal. O compartimento de bombas abarcando todo o armamento, sem que nada fosse admitido como carga externa, presa aos cabides nas asas, fez o Vigilante bastante limpo aerodinamicamente, o que trouxe a necessidade de flapes com mais autoridade do que os usuais. O avião era bastante limpo de aerodinâmica, e isso trazia uma velocidade de aproximação para pouso bastante alta, item absolutamente crítico nas operações embarcadas. Utilizou-se flapes conhecidos como soprados (blown flaps) que se deslocam para baixo e para trás, aumentando muito a área de asa e a sustentação, baixando a velocidade mínima de controle de vôo, a velocidade de estol.
E foi essa característica das cargas todas dentro da fuselagem para que a bomba nuclear pudesse ser lançada a velocidade supersônica, que acabaram por ajudar na sobrevida do avião como plataforma de reconhecimento, onde sempre se precisa do máximo de velocidade e de altitude. A bomba era fixada a dois tanques descartáveis extras, os três itens sendo armazenados no grande compartimento, de onde o combustível era consumido até o ponto de ataque. Eram soltos todos ao mesmo tempo, fazendo o avião ficar mais leve para a escapada de território inimigo. Mas nada é simples, e nunca houve armamento levado ali dentro em uma missão, dada a falta de confiabilidade do sistema. Por três vezes, a aceleração da catapulta dos porta-aviões fez os tanques se soltarem e causarem incêndios.
Os materiais de construção para essa aeronave eram algo bem moderno, com alguns componentes estruturais importantes feitos em liga de titânio, e o revestimento das asas com lítio adicionado à liga de alumínio. Ambas soluções para poupar massa, já que o avião era bem grande para os navios da Marinha, que foram modificados anteriormente para acomodar e operar o A-3 Skywarrior.
Mas a parte que mais complicou a vida do Vigilante foi a eletrônica, e fez com que o Vigilante não fosse muito bem recebido na frota. Muito provavelmente foi o primeiro avião 100% operacional com comandos de superfícies de controle funcionando pelo sistema fly-by-wire (literalmente , vôo por fios), trabalhando com o back-up do sistema hidráulico tradicional. Se hoje temos o acelerador eletrônico em praticamente todos os carros, devemos essa tecnologia à aviação. E como nada é mesmo perfeito, há muito carro por aí que não acelera o que o seu pé manda, já que há um computador entre sua vontade e seu prazer.
Além do fly-by-wire, contava também com um dos primeiros head-up display (HUD), aquela tela transparente sobre o painel que virou moda em filmes onde aviões militares aparecem, e que serve para o piloto ter informações de vôo e da aeronave sem baixar os olhos para o painel, daí o nome “tela cabeça erguida”. Junto com um sofisticado computador de navegação e ataque, mais câmera infravermelha no nariz para mostrar solo abaixo e à frente, um outro computador para controlar o radar, e um computador de controle geral, o VERDAN – Versatile Digital Analyzer, fazia do A-5 uma complicação voadora embarcada.
Apesar de tudo isso, as equipes de manutenção conseguiam manter uma boa operacionalidade, mas não como deveria ser. Para ajudar a atrapalhar, como se diz por aí, os novos submarinos americanos estavam sendo projetados e fabricados como plataforma para os mísseis nucleares Polaris, e as armas terra-ar do inimigo estavam se desenvolvendo cada vez mais, com o medo tomando conta após o abate do U-2 de Francis Gary Powers sobre a Rússia, em 1960. Esses dois fatores principais fizeram o Vigilante ser colocado de lado para as missões de ataque nuclear. Isso fez o avião passar por um período de desprezo, até que algum gênio teve a idéia de aproveitá-lo para reconhecimento a baixa altitude, pois o compartimento interno serviria perfeitamente à instalação das câmeras fotográficas, e a velocidade seria um grande fator de penetração rápida e surpreendente ao território inimigo.
Como acontece com quase todos os veículos, sejam aéreos, terrestres ou marítimos, durante a evolução do Vigilante muita coisa foi modificada, uma delas sendo o trem de pouso, que foi reforçado para suportar com mais durabilidade as pancadas enormes resultantes do pouso em porta-aviões, e tanques internos foram adicionados, gerando a corcova acima da fuselagem. Esse é o A-5B, que daria origem direta à verdadeira e mais eficiente versão do Vigilante, o RA-5C. Nesse, haviam também pontos de fixação de carga nas asas, raramente usados.
O avião de reconhecimento tinha também uma área alar um pouco maior, para compensar a maior massa transportada, cerca de cinco toneladas, proveniente das câmeras. Mesmo com o compartimento interno ocupado, uma adição abaixo da fuselagem foi feita para acomodar os sensores de infravermelho, luminosidade e outros. Lembre-se que estamos falando da década de 1960, onde a eletrônica ocupava muito mais espaço do que hoje.
Havia também um radar de vigilância lateral, apontado para o lado, num campo que formava um cone, um scanner de infravermelho para detectar seres vivos. Os radares laterais são necessários para evitar ao máximo o sobrevôo de áreas inimigas, com o avião podendo passar nas bordas do perigo, e não diretamente sobre ele.
Os reconhecedores RA-5C vieram em junho de 1964, efetuando um tipo de missão que é a verdadeira inteligência militar. Nada deve ser definido como alvo antes dos “recce”, como dizem os americanos fazerem seu serviço. Foram dez os esquadrões da marinha equipados com o belo Vigilante e dois meses depois oito desses grupos estavam no Vietnã. As primeiras missões eram fotografar alvos antes e depois dos ataques, voando a cerca de 2.400 m, muito baixo, e com alto risco. A única proteção era a velocidade. Vários foram derrubados, com logo dezoito deles perdidos, mais de 10% dos 156 construídos. Mas não era nem mesmo fácil conseguir escolta para eles, pois a velocidade era superior à dos caças-bombardeiros (Crusader principalmente). Para se ter uma idéia, os Vigilantes saíam depois dos aviões de ataque, e conseguiam ultrapassá-los.
Numa das missões em dezembro de 1967 foi determinado que a um RA-5C de matrícula 149299 fosse verificar o centro de Hanói, em busca da localização do campo de prisioneiros onde estavam os americanos. Voando baixo e rápido, fotografaram pela primeira vez com exatidão e certeza, a prisão Hoa Lo, apelidada de Hanoi Hilton. Com a localização exata, a pressão política contra o Vietnã aumentou, e como a guerra estava em situação indefinida há tanto tempo, os fatores se somaram para resultar na libertação gradativa de todos.
Dessa forma, mesmo inicialmente considerado um peixe fora d’água, o Vigilante teve seu perfil de missão alterado para o melhor que poderia fazer, e chegou ao auge com essa missão definitiva para auxiliar o final da guerra.
JJ