Como comentei neste espaço na semana passada, a Argentina teve um período pródigo no lançamento de carros-conceito. Alguns nem saíram dos protótipos, mas outros tiveram uma curta vida pelas ruas do país vizinho. Em comum, estão hoje apenas na memória de alguns autoentusiastas mas, no geral, caíram no mais absoluto esquecimento.
Nas décadas de 1950 e 1960, provavelmente o período de maior efervescência da indústria automobilística argentina, muitas empresas produziram (ou talvez seja melhor dizer “tentaram produzir”) veículos sob licença de fabricantes tradicionais, mas outras se lançaram nessa aventura produzindo carros artesanalmente, com desenvolvimento nacional.
Nesta segunda categoria é onde se encontram os desenhos mais, digamos, peculiares e originais e, provavelmente, os mais interessantes para analisar. Mas vamos falar dos desenvolvidos localmente, onde estão alguns casos extremamente, digamos, únicos.
Dinarg D-200
Desta vez não tenho muito o que reclamar do nome da empresa, que acho até bacaninha: a Dinámica Industrial Argentina (Dinarg) nasceu da reunião de um grupo de engenheiros que queria produzir um carro pequeno e econômico para as faixas mais populares do mercado. O carro foi batizado com o nome da própria empresa: Dinarg D-200. Era uma microcupê com carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro que podia transportar até três pessoas, mas com uma espécie de bônus: no banco traseiro havia um degrau com tampa que podia armazenar ferramentas, alguma pequena bagagem ou, ainda, ser usado como banco para crianças. As portas, assim como nos DKW, abriam ao contrário — isto é, no sentido oposto ao convencional, e contavam com um ângulo de abertura de 90 graus. O conjunto mecânico era bastante comum para os carros da década de 1960: motor Sachs monocilindro de 10,2 cv e câmbio manual de quatro marchas. Chegava aos 75 km/h e tinha apenas 2,43 metros de comprimento.
O carro chegou a ser fabricado na província mais automobilística da Argentina: Córdoba. Os protótipos foram apresentados em 1960 e as primeiras unidades saíram ao mercado no ano seguinte. O plano era ambicioso e previa a produção de 200 unidades ao ano no lançamento; 2.000 em 1962, 2.500 em 1963, e 3.000 para 1964. Mas só foram fabricadas realmente 300 unidades.
Alcre 500 Susana e Alcre 700 Luis
Pois é, voltamos aos nomes pouco marqueteiros mas fazer o quê… Vamos logo desfazer o mistério sobre o nome: Susana e Luis eram os nomes dos filhos do dono da empresa que lançou estes modelos. A Alcre S.A. foi fundada por Alberto (AL) Credidio (CRE) e até 1959 produzia motores, dínamos, geradores, equipamentos para refrigeração e ar-condicionado. Foi naquele ano que “Don Credidio” assinou um acordo com as empresas alemãs Heinkel (para o fornecimento de motores) e Bellino (fabricante de carrocerias). Cada uma delas investiu US$ 1,2 milhão para a construção de uma fábrica em Bajada Grande, província de Entre Ríos. A previsão era produzir dois modelos: o Alcre Susana 500 e o Alcre 700 Luis.
O modelo Susana tinha, claro, motor Heinkel de 500 cm³, dois cilindros dois-tempos e potência de 22 cv que o levava a 95 km/h. O câmbio era manual, de quatro marchas. As dimensões eram realmente pequenas: comprimento de 3,42 metros; largura de 1,49 metro e altura de 1,395 metro.
Tanto o modelo Susana quanto o Luis tinham carroceria Bellino de aço, vidros de correr nas portas dianteiras e fixos nas traseiras. O modelo Susana tinha um design muito parecido com o do Auto Union – incluindo a abertura das portas ao contrário do convencional. Ambos tinham mecânica Heinkel instalado sobre o eixo traseiro.
O Alcre 700 Luis tinha tinha motor de 700 cm³ entregava 32 cv para uma velocidade máxima a 140 km/h.
Apesar de uma ampla campanha publicitária e até mesmo de uma tabela de preços, a produção em série dos Alcre nunca se concretizou e foram construídos somente alguns protótipos que foram exibidos promocionalmente.
IPAM Leeds
Como já disse, os carros-conceito puramente argentinos são os mais originais, mas este certamente ocupa um lugar de destaque nesse quesito. Não chega a ser exatamente um carro, mas é mais uma “autoneta”, como foi chamada na Argentina — um misto de carro com motocicleta. Havia sido desenhado pela Industrias Platenses Automotrices, uma empresa da cidade de La Plata (lá vem mais uma digressão: La Plata é a capital da província de Buenos Aires, e não a cidade de Buenos Aires, como muitos pensam). A empresa foi fundada por Guillermo Leeds, que havia desenhado três protótipos: os IPAM Leeds L1, L2 e L3. Os protótipos foram apresentados em dezembro de 1959. Foram testados durante cinco anos e mais de 80.000 quilômetros e foi a versão L3 que foi selecionada para produção. O carro era, mais uma vez, uma microcupê de quatro lugares. As portas eram uma parte deveras original do carro: havia uma na lateral esquerda e outra frontal.
O motor era Villiers, traseiro, arrefecido a ar forçado por turbina, de dois tempos, dois cilindros e 325 cm³ e entregava uma potência de 18 cv. A velocidade máxima anunciada era de 90 km/h. A caixa de câmbio era manual, de quatro marchas.
O design era, na minha opinião, pavoroso, mas concedo a ele uma vantagem — ou talvez seja apenas uma originalidade, sei lá: ele podia se transformar num veículo anfíbio, bastando acrescentar uma hélice de três pás que era oferecida como opcional na hora da venda. Com estas adaptações, o IPAM Leeds podia transportar, pela água, até 250 kg de carga a até 12 km/h. Mas o fato é que ele não entrou realmente em circulação nem na terra nem na água. Entre 1960 e 1961 forma produzidas algo como 10 ou 15 unidades, pois sequer os registros disto existem.
Isabelita
Mais um campeão no quesito esquisitice e mais um que não chega a ser exatamente um carro. Pode ser considerado mais um triciclo elétrico do que qualquer outra coisa. O projeto foi uma criação do engenheiro Werner Dura, que criou uma empresa com seu próprio nome na província de, claro, Córdoba. Pode não parecer, mais o Isabelita podia transportar quatro pessoas e tinha um espaço para carga mais do que razoável para seu tamanho. A carroceria era bastante alta, semiaberta e sem portas. Era considerado de fácil manobrabilidade pois tinha um pequeno diâmetro de giro, e teria sido bem prático pois podia recarregar a bateria em qualquer tomada. O protótipo foi apresentado em 1960 e no ano seguinte foi anunciada a produção, que deveria chegar a 100 unidades em 1961 e 500 no ano seguinte. Porém, nunca chegou a ser fabricado em série.
Zunder 1500
Agora voltamos aos carros de verdade. O Zunder 1500 (foto de abertura) foi criado pelo pessoal da empresa Industria del Transporte Automotor S.R.L, ou ITA. A ITA foi fundada por Eligio Oscar y Nilson José Bongiovanni e sim, também voltamos aos nomes pouco marqueteiros do lado das fábricas, mas legal do lado do carro: Zunder significa centelha em alemão. O Zunder era um carro de duas portas, com carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro. O motor era Porsche Tipo 616/620 de 1.488 cm³, 4 cilindros e 58 cv que atingia os 100 km/h. O câmbio era manual de 4 marchas. O carro tinha 4,32 metros de comprimento e 1,49 metro de altura. O modelo todo foi desenhado de forma a otimizar recursos: o motor, o câmbio e o diferencial eram um único bloco. O chassis tubular tinha reforço de duas travessas centrais de aço para sustentar melhor o teto; e a carroceria de plástico e fibra de vidro era montada camada por camada. Os faróis eram como os olhos de Capitu: oblíquos e, supremo requinte, as calotas tinham um Z gravado.
O slogan do carro era “O carro que não muda porque é sempre novo”. Segundo contou uma vez o próprio Eligio, o uso de carroceria de compósito de fibra de vidro criava algum receio quanto à sua resistência. Numa concessionária da marca na cidade de Pergamino, um vendedor, cansado de explicar as vantagens do material para um potencial cliente, teria sacado um revólver calibre .22 e atirado na carroceria. As balas teriam ricocheteado, sem provocar nenhum dano ao carro. Como dizem os italianos, “se não é verdade, está bem contado”.
A previsão era produzir 200 anos em 1960, com o aval da própria Porsche que havia destinado um lote inicial de motores e até mesmo chegou a mandar um representante para o lançamento, em setembro de 1960. Mesmo com todo esse apoio, a ITA só produziu 200 unidades do Zunder 1500 e algumas poucas de uma versão cupê derivada do sedã. Mas essas vendas não foram suficientes para que os Bongiovanni continuassem importando os motores necessários, as dívidas começaram a se acumular e em 1962 a empresa entrou em concordata e em 1963 fechou.
Mudando de assunto: tenho acompanhado os lançamentos dos carros de Fórmula 1 de 2022. Confesso que não sei como será o desempenho deles, mas no quesito design já são todos campeões. E adorei voltar a ver a Mercedes com as flechas de prata.
NG