Sim, sei que já escrevi sobre isto outras vezes, mas ter leitores tão antenados e bem-informados é um privilégio que tenho e não canso de falar sobre isso. Eis porque hoje dou um tempo no automobilismo argentino e, a pedido do Hernán Saavedra, vou tecer algumas escrevinhações sobre um projeto que é algo assim como Plano 9 do Espaço Sideral — uma unanimidade em qualquer lista dos piores filmes de todos os tempos. Bem, é o caso do Aurora Safety Car. Vejam vocês a foto de abertura e tirem suas próprias conclusões. Pessoalmente, não consigo lembrar de algo tão feio sobre quatro rodas.
E vamos logo à primeira digressão: o projeto ficou conhecido como Aurora Safety Car, mas nunca andou na frente de nenhum carro de competição em pistas, não serviu para resgates, sequer para fazer carros de competição diminuírem a velocidade, nadinha, portanto, nem é um “safety car” no sentido que damos à palavra hoje em dia. Foi assim batizado (eis um trocadilho que ficará claro mais adiante, péssimo, mas, por isso mesmo, irresistível para mim) por que deveria ser um veículo seguríssimo.
Esta geringonça, com todo respeito, foi fruto do sonho de um padre católico de Nova York que queria, vejam só, evangelizar as grandes fábricas de carros sobre segurança. Sim, trocadilho infame número dois, mas ainda podem aparecer outros se eu não me policiar. Não percam a conta.
É fato que o carro incluía itens de segurança ainda pouco frequentes nos anos 1950, quando foi idealizado – exatamente, em 1957 ele foi apresentado como protótipo. Entre os itens pouco convencionais, o Aurora incluía cintos de segurança nos quatro bancos, que os então fabricantes de veículos relutavam em colocar porque acreditavam que somente o fato de existirem faria com que os compradores os achassem inseguros — afinal, se precisa de cinto… Disclêimer: era a crença na época, não a desta escriba, OK?
No protótipo foram colocadas barras laterais de proteção em caso de capotagem, coluna de direção telescópica e deformável (colocada mais ao centro do carro, pois isso mitigaria os impactos de colisões laterais), painel com acolchoamento e sem ângulos que pudessem cortar ou machucar, e para-choque dianteiro feito para absorver impactos.
Assim como o horroroso para-choque, a frente havia sido projetada em formato de pá para “jogar” os pedestres por cima do capô em caso de atropelamento em baixa velocidade, aumentando suas chances de sobrevida ao contrário do que aconteceria se o carro passasse por cima deles Tudo isto só faz com que cada vez mais o Aurora me lembre um carro de desenho animado.
Em toda a volta do veículo havia uma saia preta de espuma sintética — talvez um precursor do para-choque emborrachado? Lembrando que naquela época eles eram de aço, rígidos. A espuma daria mais proteção a pedestres em caso de atropelamento.
O para-brisa havia sido desenhado em forma de bolha para evitar o impacto da cabeça contra ele em caso de colisão, mas como é facilmente visível nas fotos, ele deformava a visão do motorista e distorcia tudo o que, paradoxalmente, poderia provocar acidentes — nos quais, claro, a cabeça do motorista não impactaria tanto a resina de plástico da qual eram feitos no lugar de vidro, mas deixa para lá essa incoerência…
Estranhamente, não havia limpador de para-brisa porque, segundo previa o padre, dado o desenho tão aerodinâmico do carro a água não pararia no para-brisa.
Outra raridade das muitas do Aurora era que os bancos estavam afastados das laterais do veículo e os dianteiros viravam 180 graus sobre o próprio eixo para, hipoteticamente, impactar de costas e não de frente seus ocupantes em caso de uma colisão frontal. E não, não me perguntem como seria no caso de um impacto traseiro, pois prefiro não imaginar que os assentos poderiam virar para receber o impacto de frente, mas reconheço que tenho muitas ressalvas a este projeto.
Também inusual foi a colocação de uma “gaiola” no habitáculo, de forma a proteger melhor seus ocupantes — lembrando que o modelo era conversível e a carroceria era toda de compósito de fibra de vidro… O estepe podia ser colocado em caso de furo de pneu sem contato manual, pois um sistema hidráulico permitia que o carro fosse erguido sem esforço algum. Finalmente, um ponto para o Aurora, pois eu não gosto de trocar pneu já que sempre quebro alguma unha e, não raro, sofro com as horrorosas chaves de roda que vêm nos carro.s
Mas não é apenas nas questões mecânicas e, digamos, estilísticas, que este carro é inusual. Toda sua história é. O padre Alfred A. Juliano nascera em 1919 e sempre demonstrou vocação religiosa e gosto pelo design de automóveis, tanto que chegou a se candidatar a uma vaga num programa de estudos sobre Design Automobilístico na General Motors, em Detroit, mas acabou estrando num curso de Aerodinâmica na Universidade de Yale, quando já havia sido ordenado padre e atuava na paróquia de Branford, em Connecticut. Em 1953 começou a desenvolver o que ele queria que fosse um carro à prova de acidentes fatais, projeto que consumiria seus quatro anos seguintes — dois anos nas pranchetas e outros dois sendo produzido.
O protótipo foi fabricado sobre o chassi de um Buick 1953 novo e tinha 5,49 metros de comprimento, mas, aparentemente, a preocupação do padre era com a segurança e, vá lá, com o design do carro e muito pouco com a mecânica. Tanto é que mesmo durante os quatro anos de desenvolvimento e produção, ele simplesmente deixou o motor de Cadillac parado. Adivinhem? O sistema de combustível entupiu completamente e desde a garagem do padre até o local onde foi feito o lançamento, em Nova York a apenas 137 quilômetros, o carro quebrou não uma nem duas vezes, mas exatamente quinze. Com isto, ele chegou mais de três horas atrasado ao evento (mais do que eu mesma no meu casamento, com intermináveis 60 minutos de atraso) e guinchado – supremo toque anti-marketing.
Não é de estranhar, então, que depois desse lançamento o padre tenha voltado para sua igreja sem nenhuma encomenda do carro que, aliás, também era caríssimo para a época: US$ 12.000, muito perto do modelo mais caro daquela época, o Cadillac Eldorado, que custava US$ 13.000. Sem encomendas e com as dívidas de US$ 30.000 contraídas para financiar o projeto, o padre decretou a falência de sua Aurora Motor Company em 1958.
Padre Juliano enfrentou acusações de que teria malversado fundos da própria igreja — que mais tarde reconheceu que os recursos foram entregues para o projeto voluntariamente e com conhecimento de seus objetivos —e foi expulso da Ordem dos Cavaleiros do Espírito Santo, pela qual havia sido ordenado.
O único protótipo do Aurora foi vendido a uma oficina mecânica em pagamento de parte das dívidas que o padre tinha com o mecânico de lá. Padre Juliano nunca mais trabalhou com carros e morreu em 1989, vítima de um derrame cerebral. Sempre acusou a General Motors de boicotar o Aurora. A única unidade jamais produzida ficou desaparecida até que em 1993 Andy Saunders a encontrou e restaurou. O trabalho durou 12 anos e o carro está hoje em exibição no Museu do Automóvel de Beaulieu, no Reino Unido.
Mudando de assunto: estou adorando ver outras escuderias, principalmente a Ferrari (qual autoentusiasta não se emociona com essa marca?) que parecem vir competitivas para o campeonato de F-1 deste ano. Mas não resisto a uma piada infame. Então, lá vai:
NG