Por várias vezes mencionei neste espaço a paixão que os argentinos têm(os) por automobilismo. E aqui já vai a primeira digressão. Às vezes me refiro a mim como argentina, às vezes como brasileira. Não é por nenhum motivo em especial, é um pouco aleatório — escolhi por livre e espontânea vontade morar no Brasil, gosto dos dois países e me sinto confortável em elogiar e criticar ambos.
Mas confesso que quando estou no exterior e vejo argentinos ou brasileiros se comportando de maneira inadequada me finjo de morta e nem abro a boca. Se já tiver dito algo em espanhol, direi que sou uruguaia para não passar vergonha. Se for em português sei lá, inventarei que sou caboverdiana, embora qualquer um que saiba um pouco da língua de Camões perceba que meu sotaque não tem nada a ver. Mas, vai que passa? E aí sim, sou da nacionalidade que não estiver passando vergonha. Sem pudor algum em renegar a outra.
Bem, voltemos ao assunto de hoje. Na Argentina há muitas modalidades de automobilismo e a paixão por carros é enorme, embora há muito tempo não haja um piloto no grid da Fórmula 1 (o último foi Gastón Mazzacane, em 2001), nem uma corrida num autódromo (o último GP foi o de 1998, no circuito de Oscar e Juan Gálvez, em Buenos Aires), os cinco títulos de Juan Manuel Fangio foram há muito, muito tempo, exatamente em 1951, 1954, 1955, 1956 e 1957.
Desde sempre, a principal é o Turismo Carretera, (Turismo de Estrada), provas de velocidade em estrada fechada ao trânsito que pouco tivemos aqui. É tão tradicional que este ano se comemoram os 85 anos da categoria. Pessoalmente, lembro que aos domingos, nos almoços na casa da minha avó, era comum se discutir sobre os resultados da categoria tanto quanto os resultados dos jogos de futebol. Até hoje sei os nomes de alguns pilotod daquela época, de tanto que os ouvia.
O que poucas pessoas sabem aqui no Brasil, e meu fidelíssimo leitor Hernán Saavedra me sugeriu como pauta, foi que eu escrevesse sobre a participação feminina nessas modalidades, como a Copa Damas a Copa Bora Feminina – duas provas de Turismo Carretera exclusivas para mulheres.
A primeira prova da Copa Damas de Turismo de Carretera foi no dia 26 de junho de 1994. Tinha o apoio da Nissan e era monomarca, corriam apenas modelos Sentra de 1.600 cm³ 16 válvulas e 90 cv. A competição era chamada “sulamericana”, mas era corrida apenas em território argentino, em diversas províncias.
As inscrições foram um sucesso em termos de números de interessadas: 200 mulheres. Mas muitas delas não tinham experiência em carros de corrida. Uma delas era motorista de táxi especial e quatro vinham do kart, a chilena Shantal Kazazían e as argentinas Roxana Tardito, María de los Ángeles Hanhcik e Marisa Panagópulo — Marisa venceu a primeira Copa Damas, seguida de Roxana, e a até então modelo Delfina Frers, que acabou trocando as passarelas pelas pistas. María de Los Ángeles acabou em quarto lugar.
Marisa depois foi participar da modalidade junto com os homens, mesmo. Logo ela, que numas férias no Egito passou por uma situação não tão rara, mas que ela contava com bom humor. Ofereceram ao namorado trocá-la por quatro camelos e US$ 200.
E aqui vai a segunda digressão. Marisa também era piloto de avião, paraquedista, mergulhadora e instrutora de natação. Treinava automobilismo contra dois irmãos e eu pai mandava que eles a fechassem, para que ela aprendesse a se defender. Marisa sempre detestou ser símbolo de feminismo e fez questão de ser chamada de “piloto”: “Uma palavra que não tem feminino”. Seu pai era apaixonado por carros e lhe ensinou algo extremamente estranho: treine para largar não em primeiro lugar, mas em terceiro. “E esse foi um ótimo conselho. Para mim é muito mais fácil ultrapassar desde posições retardatárias do que aguentar a pressão de largar em primeiro lugar”.
Até a Copa Damas, algumas mulheres haviam participado de provas de Turismo Carretera, mas apenas como acompanhantes. Tenho uma prima que chegou a participar de uma prova em outra categoria, mas a brincadeira na família era que ela ia mais como lastro do que qualquer outra coisa, pois não entendia absolutamente nada de carros e era apenas para completar a dupla (piloto e acompanhante era obrigatório). A vantagem era que por ser magrinha ainda ajudava no peso final do veículo. Bem, essa era mais ou menos a finalidade das mulheres nas provas.
Oscar Alfredo Gálvez, o ex-piloto de Fórmula 1 (uma lenda do automobilismo argentino, que disputou um único GP de Fórmula 1, em 1953 pela Maserati, mas ganhou cinco campeonatos de Turismo Carretera e junto com seu irmão Juan dá nome ao autódromo de Buenos Aires) correu acompanhado por Elsa Perrone, e José Lecont disputou uma prova em 1949 acompanhado pela própria esposa. Dois anos depois, Delia Borges disputou pela primeira vez ao volante de um Chevrolet uma prova junto com os homens. Relatos da época dizem que ela foi páreo para eles, mas não consegui descobrir como se saiu.
Foi somente em 1970 que houve outra mulher piloto na Turismo Carretera correu junto com os homens, “Dorita” Bavio, mas que abandonou a prova já no Sul do país, já na província de Rio Negro. O título de um jornal da época? “Mulheres com muitas curvas”, de onde copiei o título desta coluna. No total, até agora, apenas três mulheres disputaram a TC regular: Dorita, Delia e Marisa.
A maioria das primeiras mulheres a disputar estas provas era de esposas, filhas, irmãs ou namoradas de pilotos de provas, como Andrea Di Palma, filha de Rubén Luis di Palma (campeão de Turismo Carretera, Fórmula 1 argentina, campeão de Turismo Carretera 2000, bicampeão de Esporte-Protótipo e participante do lendário time da 24 Horas de Nürburgring de Torinos argentinos, cuja história já contei, ou Alejandra Bessone (que correu a primeira Copa Damas e terminou em 15º lugar), esposa de Tito Bessone, outra lenda do automobilismo argentino por ser, até agora o único piloto argentino a ganhar pelo menos um campeonato em cada uma das principais categorias do automobilismo nacional: Turismo Carretera, TC 2000, Top Race, Turismo Nacional, Supercart e Clube Argentino de Pilotos. Claudia Arias, que correu na primeira Copa Damas e terminou em 12º lugar, conta que chegou a disputar três provas sem saber que estava grávida.
Desde então, não houve um campeonato exclusivamente feminino, mas algumas iniciativas isoladas. Em 1995 houve a Copa de Damas Corsa (foto de abertura). Em vez de patrocínio da Nissan, eram carros Opel Corsa. Mas foram quase todos casos isolados, sem um calendário regular.
Em fevereiro deste ano, o governo da província de Rio Negro organizou uma prova apenas para mulheres —coincidência ou não, a governadora da província é uma mulher. Participaram 18 pilotos femininas, algumas já consagradas e outras vindas de outras categorias, como Aixa Franke, que vem da Top Race. A vencedora foi Valentina Funes.
Mudando de assunto: ao contrário da sprint race de Fórmula 2, em Zandvoort, que foi um comboio de carros de dar sono até em mim, a da Fórmula 1 foi superemocionante. Mais uma vez, muitas alternativas. Mais uma vez, um festival de erros da Ferrari, mais uma vez erros da Mercedes com estratégia de pneus e momentos errados de parada e palmas para George Russell que soube se impor quanto à hora de parar e ao tipo de pneu, apesar da pouca idade e de ser novo na equipe e, claro, palmas para minha “ídala”, Hannah Schmitz e sua visão única de pista, dos concorrentes, de mudar o que for necessário e de acertar a estratégia. A moça é um gênio — e não merece o massacre misógino, injusto e preconceituoso de que está sendo vítima nas redes (anti) sociais pelos fãs da Mercedes. Aliás, os mesmos que têm levantado as teorias da conspiração mais estapafúrdias que se possam imaginar. São hilariantes e não resistem à menor lógica. Questionam o abandono da Alpha Tauri (que tem um índice de 33,3% de corridas não terminadas) como sendo proposital e que provocou um safety car virtual (que manteve a diferença de tempo entre os pilotos e durou pouco tempo), para favorecer a Red Bull, mas nem mencionam o do Bottas logo depois de ter passado a entrada do boxe, que provocou um safety car verdadeiro e engoliu os mais de 10 segundos de vantagem que Verstappen (líder) tinha sobre Hamilton (segundo). Ninguém pensa na amizade que dois companheiros de equipe durante cinco anos possam ter, de alguma lealdade com a ex-equipe, algum salário atrasado — vejam, estou sendo adepta da teoria da conspiração e não acredito em nada disso, só estou entrando na mesma paranoia. Tem gente dizendo que se Hamilton conseguiu terminar uma corrida com três pneus, Tsunoda poderia ter dado uma volta com um pneu solto! Juro que li isso. O pessoal nem sabe que uma coisa é andar com pneu furado, mas com a roda, e outra é sem sequer a roda, que seria o caso do japonês. Aliás, tem material para um programa de humor inteiro, de umas duas horas, pelo menos. Ah, me poupem. Esse pessoal deve estar usando chapéus cônicos de papel alumínio na cabeça para evitar ser atingido pelos raios gama emitidos por naves espaciais. Para um terminei respondendo com aquela frase do Arquivo X: “a verdade está lá fora”.
NG