Os engenheiros, pessoas que por vocação rezam ao altar da lógica, são sujeitos bem estranhos. São extremamente úteis para planejar, fazer cálculos e desvendar as 325 mil maneiras diferentes que uma coisa pode dar errado. Mas por outro lado, tendem a buscar na mesma lógica um norte para absolutamente tudo, procurando uma previsibilidade calculada que apesar de funcionar muito bem com máquinas, falha miseravelmente em todo resto. Acreditam, piamente, que a sua vida pode ser controlada como uma planilha de Excel, como um cálculo de rejeição térmica, como um projeto de engrenagem. Que o Senhor tenha piedade de suas pobres almas bem-intencionadas, mas profundamente pecadoras.
Uma prova clara disso é um gênero de automóvel conhecido como “urbano”. Os nossos amigos engenheiros olham as estatísticas: se 90% das pessoas, 90% do tempo, andam sozinhas em seus carros, porque quatro portas e cinco lugares? Deve existir uma enorme demanda para veículos reduzidos, para um ou dois ocupantes, pensam nossos lógicos amigos. E se a 90% deste uso é também dentro da cidade, para que vastos porta-malas? Os carros resultantes seriam menores, mais econômicos, menos poluentes, mais fáceis de estacionar, qualidades que, logicamente, todos querem!
Mas então por que nunca algo desde tipo deu certo? Sim existe o smart, um urbano de sucesso relativo, mas que tem sucesso apesar de sua condição de urbano, e não por causa dela. É apenas como segundo ou terceiro carro, e por ter o estilo bem cuidado para chamar a atenção do público-alvo (“ai, não é uma gracinha?”), que se conseguem vendê-los. Uma exceção, portanto, que serve, apenas proverbialmente, para comprovar a regra.
A primeira das razões para existirem pouquíssimos deles é a seguinte: apesar das pessoas usarem os lugares extras apenas muito raramente, não poder levar mais que duas pessoas em seu carro é chato pacas. Os engenheiros raramente vão almoçar fora da empresa, e portanto não sentem a necessidade de continuar conversas profanas com mais de dois amigos no caminho do restaurante (gastando mais tempo para almoçar do que o permitido no contrato de trabalho, sacrilégio), então não conseguem entender isso, mas para o resto das pessoas normais, o problema é óbvio, sério e auto-evidente. Uma família pode viajar apenas uma vez por ano para a praia, mas como fazê-lo sem mais lugares e vasto porta-malas para carregar toda a “farofa”? Os solteiros, que podiam usar bem carros assim, não seriam pegos nem mortos em caixotes ambulantes deste tipo, preferindo coisas que propagandeiem sua posição social (algo caro na moda), espírito aventureiro (jipes), ou sua total falta de medo de morrer (esportivos). Nosso amigo engenheiro, de novo, com seus vários problemas para entender os ilógicos rituais de acasalamento da espécie humana (e portanto, ainda tentando se reproduzir sem muito sucesso), fica boiando sem saber o porquê da recusa de seu lógico urbano.
Não, senhores, os carros de dois lugares só tem aceitação geral se oferecem vantagens bem mais palpáveis em troca: ou capacidade de carga gigante (picapes), ou desempenho muito superior e desenho arrojado (carros esporte). As várias vantagens teóricas do urbano se mostram apenas incrementais na realidade: um pouco mais econômico, um pouco mais barato, um pouco menos poluente. E isso tudo, claro, mantendo-se todos ou outros parâmetros iguais; não é difícil aparecer um concorrente com 4 lugares que custe o mesmo (ou pouco a mais), com outro motor mais eficiente, mais econômico e menos poluente.
Mas ainda assim, carros são criados por engenheiros, que seduzidos pela lógica e eficiência dos urbanos, garantem que eles reapareçam de tempos em tempos. Não podia ser diferente aqui no Brasil, onde vários nasceram e morreram imediatamente, mas alguns chegaram a ser produzidos em série. E, apesar de tudo que disse aqui, não há como não admirar a pureza lógica que transpira de todos os poros dessas incríveis e pequenas criações de nosso lógico amigo engenheiro.
São eles, em ordem cronológica:
Romi-Isetta (1956)
OK, esta lista é de carros criados por brasileiros, e a Isetta é de projeto italiano, fabricada aqui sob licença pela indústria de tornos Romi, de Santa Bárbara D’Oeste, no interior paulista. Mas não podia ficar de fora por alguns motivos importantes: para começar, foi o primeiro automóvel a ser produzido em nosso país. E, sendo esta uma lista de criações lógicas de engenheiros, nenhum melhor para exemplificar isso, ao mesmo tempo que explica muito da criação do conceito, do que o carrinho de um italiano chamado Ermenegildo Preti.
Preti era engenheiro aeronáutico de profissão e vocação, mas como todo engenheiro de verdade, gostava de entender todo tipo de máquina. Depois de carreira brilhante na indústria aeronáutica, se tornara um influente professor na mais famosa escola de engenharia da Itália: a Politécnica de Milão. No pós-guerra, incomodado como só um engenheiro poderia ficar com o desperdício de espaço, material e energia dos automóveis de seu tempo, cria com alguns alunos um conceito teoricamente muito melhor: um pequeno carro de dois lugares e três rodas, com mecânica de scooter, e apenas uma porta na dianteira. A idéia era que se estacionasse o carro de frente para a calçada, e se sairia andando pelo porta dianteira. Um carro mínimo, que poderia ser usado como uma moto, sem as desvantagens climáticas desta.
Ali perto, em Bresso, Renzo Rivolta produzia então motocicletas pequenas e scooters com o nome “Iso”, que vinha de seu empreendimento anterior, equipamentos de refrigeração “Isothermos”. Renzo ficaria famoso no futuro com seus GT de alto preço e motor V-8 americano, os Iso Rivolta, mas até ali, seus produtos eram bem mais modestos.
Recrutando engenheiros na Politécnica, acabou por conhecer Preti, que percebeu imediatamente uma grande possibilidade de vender sua idéia. Marcou uma reunião na Iso para mostrar seu projeto. Renzo Rivolta contaria depois que, quando Preti entrou em seu escritório, ele não entendeu nada: o Ingeniere trazia debaixo do braço algo que parecia uma grande melancia marrom!
Era na realidade um modelo de madeira do que viria a ser o futuro Isetta. Rivolta logo se animou pelo projeto, e o resto é história: o carrinho ganharia mais uma roda atrás (mas bem perto da outra para continuar dispensando um diferencial) para melhorar a estabilidade, e o desenho evoluiu bastante, mas o Isetta de 1953 era obviamente a melancia de Preti.
O carro foi um fracasso na Itália, principalmente depois do lançamento do novo Fiat 500. Mas licenças foram vendidas para todo mundo (entre elas, para a BMW em Munique, e para a Romi em Santa Bárbara D’oeste), o que providenciou uma boa renda para Rivolta. Logo, o público percebia que carros de 4 lugares e porta-malas (VW, 2CV, Fiat 600 etc) custavam pouca coisa a mais, e aliavam economia com praticidade e usabilidade muito maior. Logo os Isettas eram relegados ao passado…
Aruanda (1963)
A história do Aruanda é incrível, um carro que nunca foi produzido, mas se tornou famoso e influente. E mais incrível: não foi criado por um engenheiro.
Ari Antônio da Rocha era, em 1963, um estudante de Arquitetura na USP. Numa época em que a indústria queria tudo maior e mais potente, criou um minúsculo urbano que, como disse o sempre ótimo José Rezende Mahar em seu blog (veja aqui), tinha “…espaço para até 3 ocupantes, pára-brisa panorâmico, espaço para carga na parte traseira, bancos deslocáveis, volante regulável, ventilação controlada, portas de abertura lateral, painel acolchoado, anel de proteção, peso estimado em 330 kg e dimensões reduzidas (2,40 x 1,70 x 1,40 metro)”. Devia usar um monocilíndrico de 28 cv e chegar a 100 km/h.
O carrinho ganhou o Prêmio Lúcio Meira no Salão do Automóvel de São Paulo em 1964 e o jovem Ari, então estagiário da Vemag, ganhou convite da Fissore para criar um protótipo na Itália. O Aruanda foi exposto pela Fissore (e por Ari, claro) no Salão de Turim de 1965, no qual foi premiado pela proposta mais inovadora, além de ter saído na capa na influente revista Il Carrozziere italiano (abaixo).
Apesar de ser um desenho inovador e influente, as tentativas de colocá-lo em produção no Brasil não deram em nada. Algo comum, veremos, na história dos carros urbanos.
Mini-Puma (1974)
Foi preciso que a crise do petróleo de 1973 chegasse para que o urbano tivesse mais um impulso. Milton Masteguin, uma das grandes forças da Puma, o maior fabricante nacional de carros esportivos, apostou no gênero com o ambicioso e arrojado projeto do Mini-Puma, mostrado no salão de São Paulo de 1974.
O carro tinha um desenho agradabilíssimo e atemporal, e era totalmente moderno. O motor viria de uma parceria com a DAF holandesa, um bicilíndrico oposto (boxer) de 760 cm³ e 30 cv, o que o levaria até 120 km/h. Mas o projeto carecia de incentivo oficial do governo para que pudesse decolar, o que não aconteceu, infelizmente. Uma pena. Os brasileiros perderam uma grande chance de ter uma indústria realmente local de massa. Pela primeira vez.
Gurgel Itaipu E-400 (1974)
Outra estrela do Salão de 1974, o primeiro Itaipu elétrico do onipresente Gurgel, era também um urbano. Mas juntando as dificuldades de venda de um urbano com as dificuldades perenes dos elétricos, o carro, infelizmente, não passou de um protótipo. Mais adiante, Gurgel sabiamente acabou por vender um elétrico em sua melhor missão: um furgão de entregas urbanas.
Dacon 828 (1981)
No início dos anos 80, aparecia a linhagem de urbanos de maior sucesso já produzida no Brasil. Com desenho original de Anísio Campos, Paulo Goulart da Dacon criava um urbano diferente de todos os outros.
A Dacon era uma concessionária VW e Porsche, acostumada a fazer carros especiais para clientes abastados da cidade mais rica do país. Assim, o 828 era um carro para ser vendido para estes clientes: urbano, sim, pelas suas reduzidas dimensões, mas com ótimo desempenho, acabamento primoroso, e exclusividade impulsionada pelo alto preço.
O pequeno Dacon podia vir com mecânica VW 1600 original, ou várias opções de veneno. Nelson Piquet reportaria para revista Quatro Rodas na época que seu 828, com motor VW de 2,1 litros, “é um verdadeiro foguete”’. Ar-condicionado e teto solar chegaram a ser oferecidos.
Apenas 48 veículos foram produzidos, mas abriu caminho para outras investidas da Dacon no nicho, que veremos mais adiante.
Gurgel XEF (1982)
Gurgel criou o XEF com o mesmo espírito que a Dacon criou o 828: um carro urbano para executivos. O nome XEF (derivado de “chefe”) vinha do fato de que Gurgel usou o protótipo como seu carro particular por muito tempo.
Mas ao contrário do esportivo 828, o XEF era mais voltado ao conforto e não apresentava um desempenho muito maior do que o VW Brasília de quem herdara a mecânica. Sua mais interessante característica era o fato de ter três lugares, todos na mesma e única fileira de bancos. Foi um relativo sucesso, com algo em torno de 200 unidade vendidas.
Emis Art (1986)
Uma tentativa bem menos ambiciosa que as da Dacon e da Gurgel de fazer-se um urbano diferente, que apelasse aos compradores em busca de status em vez de economia, o Art foi criado por uma indústria de bugues, a Emis (ver quarta parte desta série).
Um carro bem mais simples, era também mais barato que seus inspiradores paulistas, e portanto vendeu relativamente bem, 161 unidades. Tinha como grande vantagem o baixo peso, 730 kg, o que o fazia bem rápido, mesmo usando a onipresente mecânica VW 1600 arrefecida a ar, e um chassi espinha dorsal próprio.
PAG (Dacon) Nick (1988)
Após o sucesso limitado do 828 por seu alto preço, Paulo Goulart e Anísio Campos tiveram uma idéia genial: fazer seu novo urbano de luxo/esportivo baseando-o na picape VW Saveiro.
A idéia era realmente boa: usavam-se a estrutura e a ótima base e mecânica do VW Gol, barateando sobremaneira o projeto. Os Nick eram caros, mas com motores 2-L de Santana e baixo peso, tinham um desempenho e comportamento muito superiores ao 828. Fez bastante sucesso e gerou versões de 4 lugares mais tarde, sendo produzido até 1991.
Gurgel Motomachine (1990)
Baseado no seu carro barato que pretendia ser vendido aos milhares, o BR-800, a Gurgel volta em 1990 ao mercado dos urbanos “chiques” com o Motomachine. O carro de dois lugares tinha estrutura exposta e painéis de vidro por toda lateral, fazendo o motorista se sentir um peixe num aquário. Original como tudo que vinha de Gurgel, mas de vida curta e pouco sucesso.
Gurgel Supermíni (1992)
Com o fracasso de seu BR-800, Gurgel tentava outra estratégia: criava o Supermíni para ser um “Urbano Chique”, segundo ou terceiro carro da casa, ao mesmo tempo que tentava criar uma versão ainda mais espartana do BR-800 para alavancar volume, que não chegou a ser lançada.
O último suspiro da última grande tentativa nacional de uma indústria realmente local, e uma boa maneira de terminar esta longa e triste história da indústria nacional dividida em listas. Espero que tenham gostado, e mais: que os inspirem a pensar um pouco nesta grande deficiência nossa como nação, que apesar de tanta criatividade, não conseguiu até hoje o que até a Índia conseguiu. Uma indústria de automóveis forte, e genuinamente nacional.
MAO