Está no site da Trident Sports Cars: o Iceni, um grã-turismo com motor V-8 turbodiesel de 6,6 litros, uma evolução do modelo nascido por volta de 2008, quando ocorreu a ressurreição da marca que nasceu de um modelo da TVR na década de 60, quando esta faliu e trocou de administração.
Para essa volta, que esperamos, seja real, a marca decidiu chamar atenção de uma forma não muito comum. Um supercarro com motor diesel, que pela cilindrada enorme, garante torque de caminhão em um carro pequeno, receita de puro delírio e poder mecânico ao se pisar no acelerador em qualquer marcha. Além de andar com 100% de biodiesel, o motor funciona também com parafina e querosene. Com a transmissão projetada pela empresa, acelera de 0 a 60 mph (96,5 km/h) em 3,7 segundos.
O motor é da General Motors, família Duramax. Se ou quando ele será produzido em números consideráveis, é especulação, e como muita coisa que está em sites, precisamos ter nossas reservas e verificações em várias fontes, fazer a famosa “verificação cruzada”, cross-check em inglês, uma língua fácil de conviver com termos técnicos que resumem idéias.
Trata-se de uma proposta interessante, utilizar um motor de alta potência a rotações relativamente baixas, já que o torque máximo está a 1.800 rpm, e chega a 131 m·kgf, mas muita gente só de ouvir ou ler a palavra “Diesel” já se contorce de asco. Eu me contorço de prazer!
Voltando à origem da Trident, precisamos explicar onde a TVR entra. Já falamos um bocado sobre os TVRs no Ae, e o modelo Trident é um dos que não deram certo, muito mais devido à situação da empresa do que ao carro em si.
Foi em 1964 que Trevor Wilkinson, o dono da TVR, decidiu que para conquistar um cliente de maiores verbas disponíveis — e assim ganhar mais dinheiro — deveria ter um carro dentro da receita da moda à época, desenhado em algum estúdio italiano de renome. Outras marcas britânicas de pequena produção já faziam isso e era notável que se podia cobrar mais caro por um carro estilizado na Itália.
O inglês de origem italiana Trevor Frost, conhecido muito mais pelo italianamento de seu sobrenome para Fiore, trabalhava na Fissore, estúdio de estilo e fabricante de carrocerias que ficou conhecido no Brasil pelo DKW-Vemag Fissore, elegante modelo da década de 1960 que era muito desejado e hoje é bem raro.
Depois de fazer seus desenhos iniciais, levou a idéia a seu empregador, que concordou em construir dois carros, um conversível e um cupê, dentro do valor disponibilizado por Wilkinson, para que o carro surgisse ao público em 1965 no importantíssimo Salão de Genebra, na Suíça.
A receita padrão de rodas raiadas com fixação central foi adotada, de fabricação da Dunlop, bem como os pneus de mesma marca. As luzes, faróis e peças cromadas eram italianas também, algumas já usadas em outros modelos existentes.
Seis meses depois dessa apresentação, e quando já haviam mais dois carros quase prontos, a TVR foi liquidada e comprada por Martin Lilley, um de seus maiores concessionários. Como o Trident não era ainda um modelo em produção, ficou fora da negociação, e atraiu a atenção de outro revendedor da marca, a Viking Performance, de W.J. (Bill) Last. Ele rapidamente adquiriu os direitos sobre o modelo Trident, culminando na formação da Trident Car Company. Os quatro primeiros carros ainda existem, com motores Ford V-8 de 289 polegadas cúbicas (4,7 litros).
Para não ficar empresa e modelo do primeiro carro com o mesmo nome, foi escolhido Clipper para batizar a receita básica de estilo e tamanho europeus com motor e câmbio americanos. Depois de um número incerto de unidades com a borda do capô e sua união com o pára-lama interrompida pelo alojamento dos faróis de gosto bem duvidoso, esse detalhe foi alterado, e a maioria dos carros que foram feitos são bem mais harmoniosos e sem esse problema.
Os seis primeiros carros tinham capô em concha (clamshell), cobrindo as rodas também, permitindo ótimo acesso mecânico.
O primeiro de todos foi o conversível, apresentado em Londres em janeiro de 1966, numa exposição chamada Racing Car Show. O motor Ford 289 pol³ tinha 275 cv brutos a 6.000 rpm e torque máximo de 43,1 m·kgf a 3.400 rpm. Esse motor acoplado ao câmbio de quatro marchas de relações próximas (close ratio) permitia um desempenho ótimo hoje, e muito muito bom mesmo para meio século atrás. Nessa data falou-se em aceleração de zero a 100 km/h em cerca de cinco segundos com velocidade máxima de 240 km/h, e atingindo 160 km/h partindo da imobilidade em 14 segundos.
Poderia ser adquirido tanto pronto para rodar quanto em forma de kit para montagem pelo interessado, ao preço bem alto de 1.923 libras esterlinas. O carro tinha chassis e suspensões que eram do Austin-Healey 3000.
O segundo modelo, de 1969, foi chamado de Venturer, que dá para ser confundido com o primeiro se não verificarmos detalhes, por ser bem semelhante, mas o peso é menor, principalmente pelo motor escolhido, o Ford 3-litros V-6 batizado de Essex, mesmo usado por exemplo no Zodiac, aquele grande Ford inglês engraçado, com capô longo e traseira curta. A outra grande diferença é o chassis utilizado, agora o do Triumph TR6 alongado em 127 mm, simplesmente por soldar um espaçador, trabalho não lá muito correto ou elegante dentro das boas práticas da engenharia mecânica.
O chassis e do TR6 trouxe a suspensão traseira independente com molas helicoidais, diferente dos primeiros carros que tinham molas em feixe de lâminas para o eixo rígido. Ou seja, era parecido só para quem o olhava de fora, mas um bocado diferente ao dirigir ou ao se olhar a parte mais interessante para quem gosta de mecânica, a inferior. Esse tipo de coisa deve ficar escondido da maioria, mas os mais adeptos das partes baixas poderiam ficar preocupados devido à emenda no chassis.
A velocidade máxima era de 190 km/h, menor que antes com o V-8, mas pesava cerca de 30 kg a menos em ordem de marcha, 1.170 kg, e a aceleração 0-100 km/h era na casa de 8 segundos.
Era um carro bem dotado de acessórios, com vidros e antena de rádio elétricas, pisca-alerta quando isso era raridade, bancos reclináveis e vidros com tratamento anti-reflexo. Já era possível ter toca-fitas e até um sistema de televisão, que deveria ser de funcionamento interessante.
Como era de praxe com muitas fábrica pequenas, utilizar mais de uma marca de motor era comum, e com a Trident não foi diferente. Numa época de greves longas e abrangentes iniciadas no final da década de 1960, a Ford deixou de fornecer as unidades necessárias, e a mecânica americana da Chrysler, os deliciosos V-8 5,4-litros foram usados no Clipper em 1971, mesmo ano em que foi adotado o vigia traseiro com abertura, como em um hatch. Antes era fixo e muito pouco prático para utilização do porta-malas.
Houve também uma unidade montada com o 360 Hemi, mas um ex-funcionário disse que esse foi apenas um motor de amostra que veio para avaliação e foi usado para fazer um carro normal e vendido, não se perdendo a oportunidade de gerar lucro com o carro exclusivo.
O terceiro modelo da curta existência da marca, o Tycoon, foi fabricado com o motor Triumph PI de 2,5 litros e seis cilindros em linha, alimentado pelo sistema de injeção Lucas, acoplado a um câmbio automático.
Todos os três modelos tinham a carroceria saídas dos mesmo moldes de manufatura do compósito de fibra de vidro, daí a semelhança entre eles, já que as alterações eram feitas artesanalmente a partir da “casca” básica. Uma das diferenças entre eles é que havia pára-choques que pegavam toda a largura, e depois, apenas os cantos, tornando o visual do carro mais ousado.
Analisando as fotos desse exemplar 1967 vermelho, vemos que o carro era mais bem planejado do que se pensa à primeira vista, com elementos práticos não comuns em carros especiais. Um deles é o encosto do banco do passageiro sendo basculado totalmente, dobrando e ficando plano (fold-flat no jargão dos engenheiros de bancos), permitindo transporte de cargas compridas.
Quase todos não tinham estepe, para aproveitar melhor o espaço do porta-bagagens.
Mas a situação só foi piorando, e o fechamento da empresa aconteceu em 1974, ano que mudou muita coisa no mundo com a primeira crise do petróleo, em 1973.
Dois anos mais à frente, o Clipper voltou a ser fabricado, dessa vez com pára-choques de borracha, e as rodas raiadas saíram para dar lugar às muito mais modernas Wolfrace, de desenho muito parecido com americanas usadas em muitos carros preparados, acabando com o pesadelo da lavagem dos raios. As maçanetas também foram trocadas, por uma de aparência mais lisa, usadas no pouco querido Morris Marina.
Houve alguma retomada de atividade dois anos depois, para finalmente parar em 1977.
Não mais que 130 carros foram fabricados ao todo, de todos os modelos, Clipper (39) Venturer (84) e Tycoon, desse, só 7.
Mesmo tendo sido feito em volumes tão baixos, há carros também com volante do lado esquerdo, que foram exportados principalmente para os Estados Unidos.
O clube do Trident tem registro de números entre 19 a 22 carros que ainda andam, mas é claro que de vez em quando surge algum restaurado, já que a dificuldade maior é apenas acabamento interno, sendo os chassis provenientes de modelos de outras marcas que são bastante comuns relativamente falando, e trabalhar com compósito de fibra de vidro também tem muitas vantagens quando se trata de criar peças novas copiando antigas.
É de se louvar e seguir com curiosidade o que pode acontecer com uma marca que nunca teve dias de glória, já que trancos e barrancos sempre estiveram pela frente.
JJ