Há seis ou sete anos, estando numa coleção particular de clássicos, onde eu levara um amigo para ver um reluzente Ferrari 365 vermelho que estava à venda, vi a um canto, ao lado de um Lola T210, um discreto cupê de quatro lugares. Uma fina camada de pó tirava o brilho do azul de suas linhas curvas e assim, quieto, ele parecia se esconder na escuridão daquela garagem. Eu estava num momento de furor provocado pela estonteante extravagância do 365, pois acabáramos de funcionar seus 12 cilindros e o urro daquele motor entre paredes é de deixar a gente meio desbaratinado, meio zoado. Dizem que o urro do leão, propositalmente, tem uma freqüência que, quando perto, deixa a presa paralisada, estática. O urro do 365 deve ter lá alguma coisa a ver com isso, pelo menos para mim, que sou presa fácil dos V-12.
Além do motor, aquela alavanca de câmbio com 1ª em perna de cachorro — dog leg, onde a 1ª é para trás junto ao motorista —, e aquela frente longa, tornam o 365 um dos Ferrari mais fascinantes; carro de velocidade sem fim. Ele vai a 280 km/h ou pouco mais e ainda é da época em que os esportivos mais fortes afastavam quem não fosse um verdadeiro autoentusiasta, pois ele não o saberia guiar e nem gostaria de fazê-lo. E estava à venda por R$ 350.000.
Passado o furor, enquanto meu amigo conversava sobre o 365 com o dono dos carros, fui ver que carro azul era aquele. Logo percebi que nunca o vira ao vivo, então fui xeretando. Pelo símbolo vi que era um Lancia. Pelas linhas presumi ser do início da década de 1950. Quatro lugares, amplos, com banco de assento inteiriço na frente (diferente do da foto acima), assentos com molas, confortável. Alavanca de câmbio na coluna de direção, com desenho que indicava ter quatro marchas. Painel completo, com grandes mostradores de rotação do motor e velocidade.
E daí, como sempre, tratei de me agachar para ver as suspensões. A dianteira era parecida com a dos antigos Morgan 3-rodas, sliding pillar (coluna deslizante), um sistema antigo e há muito não mais usado. E aí fui olhar a da traseira e então vi que a coisa era séria de verdade. A suspensão traseira era independente, o que eu nunca havia visto num carro dessa época, e com um sistema parecido com o dos BMW da década de 70, geometria de braço semi-arrastado, e para complicar a coisa vi que o câmbio estava lá atrás. Era um transeixo, que agregava embreagem e diferencial. Junto a ela iam os grandes tambores de freio, os chamados freios inboard (internos), isso para aliviar o peso não suspenso, deixar mais leve o conjunto de suspensão e roda. Assim, mais leve, a suspensão pode atingir uma freqüência maior e acompanhar melhor o solo, sem pular. Os tambores eram aletados para melhor dissipação do calor. O Jaguar E-type também os têm inboard, que surgiram pela primeira vez, num carro de produção, e já a disco, no Citroën DS 19 em 1955.
Junto ao dono eu tinha a liberdade de mexer nos carros. Eles lá conversando e eu cá na sombra com o Lancia, abismado com o que via. Abri. Era um compacto V-6. Ele estava posicionado atrás do eixo dianteiro, isso certamente para trazer seu peso mais para o centro do carro. Assim já era demais! Então aquele era o famoso Lancia Aurelia B20 GT? Esse era o carro que o genial engenheiro Vittorio Jano projetou sem restrições e Gianni Lancia topou fazer? Foi o carro, a meu ver, mais avançado de sua época. Tudo que melhor funcionava nas pistas havia sido colocado em um cupê de rua de quatro espaçosos lugares. E deu certo, certíssimo.
Eu sabia que em 1952, na época em que corria na Fórmula 1, o futuro pentacampeão Fangio alugara um desses para ir de Paris a Monza, após perder o vôo, e dizem que ele tinha pressa, pois a corrida era no dia seguinte. Varou a noite guiando e dizem que essa viagem foi num racha de lascar. Nessa corrida, para a qual chegou em cima da hora e cansado da longa viagem de mais de 850 quilômetros, ele pilotaria um Alfetta e teria o grave acidente que o manteve engessado feito uma múmia. Foi o pior acidente dele.
Fiquei lá ao lado do B20 GT, pensando em como seria fazer essa viagem com o Fangio nesse carro, e melhor, naquela época ainda desradarizada. Sei que ele não gostava de ficar falando muito enquanto dirigia. Ao menos é o que um amigo dele, Don Barragán, diretor do Museo Fangio, me disse. Fangio gostava de guiar e gostava de se concentrar ao volante. Ele levava a sério dirigir, seja na pista ou onde fosse, mesmo sabendo tudo. Talvez ele, de tanto saber, sabia que não sabia tudo. Além do mais, ele gostava de dirigir e boa.
Em 1953 Fangio ganhou a Carrera Panamericana pilotando um Lancia D24, uma barchetta. Esse carro nasceu após o ânimo injetado pelas inúmeras conquistas do B20 GT nas pistas, dentre elas, pilotado por Giovanni Bracco, o 2º lugar na Mille Miglia de 1951, só chegando atrás de um Ferrari America, um spider que, assim como o D24, era específico para corridas e passava fácil dos 270 km/h. E o B20 GT era somente um lindo cupê de rua desenhado por Pininfarina, um carro para levar com conforto uma bela e perfumada italiana ao restaurante, e com espaço de sobra para levar outro casal atrás, ou mais duas lindas e falantes italianas. Na época, 1951, o V-6 do B20 GT tinha 2 litros e produzia pouco mais de 80 cv a 4.500 rpm. Conquistava impressionantes resultados nas pistas e ralis de velocidade a troco de sua estabilidade superior; não devido à potência, que, apesar de para a época não ser pouca, não era grande coisa. Em 1953 aumentaram o motor para 2,5 litros e a potência subiu para 118 cv a 5.000 rpm e o torque foi para 17,4 m·kgf a 3.500 rpm. Aí sua velocidade máxima já passava um pouco dos 180 km/h, o que para a época era estonteante. Quem o dirigiu diz que ele mantinha tranquilamente 160 km/h em velocidade de cruzeiro, algo em torno do dobro da velocidade com se costumava viajar.
Em 1954, pilotado por Louis Chiron, venceu o Rali de Monte Carlo. O campeão de F-1, Mike Hawthorn, tinha um; Jean Behra também.
Vicenzo Lancia, fundador da marca, não acreditava muito em obter resultados nas vendas a partir do sucesso nas pistas. Ele faleceu em 1937. Seu filho, Gianni Lancia, sim, acreditava, e logo que assumiu a presidência, em 1947, trouxe o genial Vittorio Jano para a fábrica. Ao assumir, Jano viu que o jovem engenheiro Francesco de Virgilio desde 1943 vinha desenvolvendo um motor V-6, uma proposta do já então falecido Vicenzo Lancia. Francesco descobrira que o motor V-6, com bancadas em ângulo de 60°, e com certa configuração do virabrequim, passava a ter um funcionamento suave, sem vibrações. Jano elegeu o V-6 para a linha Aurelia que nascia. Cabeçotes com câmaras hemisféricas mas com comando no bloco.
Foi fabricado de 1951 a 1958. Ao todo, 3.121 foram produzidos. Era caro. Custava um Cadillac e meio. Foi um carro feito, sem restrições, para os autoentusiastas, esses seres que ficam extasiados diante de máquinas automobilísticas.
E o Ferrari 365? Que fim levou?, me perguntaria o leitor. Só rindo mesmo… Meu amigo rico achou que seria gastar muito num carro. Considerou uma imprudência. Só que hoje esse impecável 365 deve estar valendo mais de R$ 1 milhão e meio, e pior, muito pior, ele deixou a grana aplicada em ações da Petrobrás…
AK