Minha recente matéria sobre os supercaças a pistão da Segunda Guerra Mundial acabou gerando uma acalorada e saudável discussão entre o Bob e eu sobre o rendimento e a densidade de potência e peso dos motores aeronáuticos a pistão, tanto os antigos quanto os atuais, empregados na aviação, numa discussão que em muitos aspectos, pode ser extrapolada até para o segmento automobilístico, uma vez que engloba também motores de ciclo Otto e Diesel!
Extrair maior desempenho
Extrair desempenho de motores sempre foi uma constante na indústria, em especial nos tempos de guerra: maior potência, (empuxo, se forem motores a reação), melhor rendimento térmico e consumo de combustível, um diferenciador em relação ao concorrente/inimigo, em especial em épocas de escassez.
Citei, na matéria anterior, o projeto Hyper, um conjunto de diretivas colocadas pelo Corpo Aéreo do Exercito dos Estados Unidos no início dos anos 1930, cujo objetivo era altamente ambicioso para a época: extrair 1 hp de potência em uma polegada cubica de cilindrada. Trocando por unidades métricas, um motor Hyper teria que produzir 1,013 cv a cada 16,387 cm³ de cilindrada, (densidade de potência 61,8 cv/L)! O conjunto, numa relação final, deveria ter uma relação potência-peso próximo a 1 hp por lb (2,23 cv/kg).
Naquela época o rendimento dos motores era extremamente baixo, com motores radiais gerando cerca de 30 hp/L. Falo de um tempo em que a matriz energética mundial para motores a combustão se resumia aos derivados do petróleo (foto de abertura) como a gasolina e o diesel.
Na aviação, peso é tão relevante quanto potência, então foi enorme o desafio de criar motores a pistão de movimento recíproco confiáveis (dentro do possível), compactos e potentes. Mas, seja como for, na segunda metade da década de 1940 tal objetivo foi atingido naturalmente com as demandas da guerra.
Todavia, como tudo na engenharia existe o que os americanos chamam de “drawback”, troca, que são os efeitos colaterais, há a penalização. Nos motores aeronáuticos, a extração de potência dos motores a pistão levou à criação de verdadeiros “monstros” como o enorme Pratt & Whitney R-4360 de 28 cilindros e 71,5 litros de cilindrada, um motor que em versões experimentais produziu 4.300 hp, mas a um custo alto: superaquecimento, excesso de consumo de combustível, confiabilidade extremamente baixa, o que inviabilizou operações comerciais de aeronaves com essa motorização. A Pan American só operou o Boeing 337 em várias rotas porque os voos eram subsidiados.
É nesse contexto que as turbinas a gás, onde o ar é comprimido e expulso, se valendo da Terceira Lei de Newton da Ação e Reação (dai o termo “motor a reação), onde o gás quente é expelido gerando um movimento em sentido oposto.
Antes que alguém questione que ouviu que não existe turbina e sim motor, é necessário explicar que aqui é turbina: Como já explicado na matéria de motores a reação falamos em turbinas porque ela (ou elas, se for mais de uma) que transformarão a energia térmica contida no fluido quente em energia cinética.
No caso dos motores a reação, a compressão do ar, ignição do combustível e a saída do ar quente, num turbojato gera um empuxo e a turbina é o componente que alimentará o sistema, girando os compressores que continuarão admitindo ar para continuar o ciclo. Se for um turboeixo, além do compressor, as turbinas absorverão a energia térmica do ar quente, convertendo em potência no eixo (os turboeixos). se for um turbofan, girando o fan que deslocará uma massa maior de ar, gerando empuxo).
Se analisarmos friamente, as turbinas a gás e os motores a reação são o éden da propulsão aeronáutica: poucas peças móveis (não tem válvulas, molas, comandos, árvores de comando, distribuição, engrenagens de comando, velas, pistões, bronzinas, bielas, etc.).
Leveza e compacidade são atingidos com esse tipo de propulsão, mesmo que ela sirva para movimentar uma árvore e fazer girar uma hélice, afinal, temos só o(s) conjunto(s) de compressor(es), queimadores e turbina(s) que se movimentam sobre um eixo, formando um carretel, eventualmente até 3 carretéis). E com mais uma vantagem: Pode queimar de tudo, sem a necessidade de um combustível especial, como era nos últimos motores a pistão.
Para se ter uma ideia, o motor Pratt & Whitney PT6, empregado em aeronaves como Super Tucano, Cessna Caravan, Air Tractor prevê, em seu manual, o uso normal de querosene aeronáutico (Jet-A/Jet-A1/Jet-B), de especificação militar e sob condições restritas e em emergências, gasolina aeronáutica e algumas especificações de óleo diesel!
Motores a reação funcionam no ciclo Brayton, com fases como a de um ciclo Otto: (admissão/compressão/combustão/escapamento). Entretanto, nas turbinas a gás funcionam esses ciclos ocorrem de maneira contínua, sem “pulsos” como num motor recíproco, cujo ciclo de 4 tempos necessita de 720 graus (duas voltas) do virabrequim.
À guisa de curiosidade, os “pulsos” de um motor recíproco são perfeitamente audíveis com exemplos do nosso dia a dia. Quem nunca ouviu o ruído de “chocalho” de folga do comando de válvulas de um motor VW arrefecido a ar? E na linha Chevrolet/Opel de motor transversal? O famigerado chocalho no transeixo quando em marcha-lenta e ponto morto? São os pulsos gerados a cada 180 graus gerando o leve entrechoques das engrenagens da transmissão em condição sem carga.
Mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha Nacional-Socialista (o único país naquele momento que produziu motores a reação de maneira expressiva em quantidade), o custo de produção de um motor a reação era pelo menos 1/4 de um Junkers Jumo V-12 ou de um Daimler-Benz 605!
As vantagens das turbinas a gás vão além disso: são mais compactas e leves. Os primeiros motores Rolls-Royce Dart empregados no Vickers Viscount, o primeiro turbo-hélice de largo sucesso comercial, apresentava uma relação potencia-peso superior a 1hp/lb.
Mas qual a contrapartida? Simples, a necessidade de um processo metalúrgico muito mais refinado e materiais muito mais nobres do que os até então empregados. Os primeiros motores a reação alemães duravam, com alguma sorte umas 15 horas — o que não era necessariamente um problema. pois a expectativa de vida de um piloto de guerra alemão, naquela altura do combate, não era muito diferente disso.
O consumo também era bastante alto se comparado a um motor convencional: Muito combustível por unidade de tempo queimado e embora esse combustível possa ser menos “nobre”, na aviação peso é sempre peso, seja ele carregado na mais pura Avgas ou algo próximo do diesel, como era nos primeiros motores a reação alemães. Por outro lado, os aviões a reação voavam muito mais rapidamente que as aeronaves a pistão, entrando ai, a variável velocidade na historia.
Novamente cairemos na questão peso (antes que corrijam. sei que é massa, mas falaremos peso porque aqui não estamos dissertando em uma tese de pós-doutorado do MIT): se de um lado os motores a reação representaram um excelente incremento na relação peso-potência/empuxo, do outro esbarramos na questão peso do combustível.
Combustível, densidade energética e rendimento térmico
Muito se fala do rendimento térmico dos motores de combustão interna. Num mundo onde existe uma verdadeira histeria sobre emissões, mudanças climáticas, aquecimento global, fundamentados sim, mas cujas origens são difíceis se atribuir com clareza.
Por conta disso, o grande alvo foram os motores de combustão interna queimando combustíveis de origem fóssil. O argumento contra eles é sempre o mesmo: baixo rendimento energético, emissões de gases poluentes (leia-se NOx, CO,, HC, aldeídos, materiais particulados, etc.) e atualmente, emissões de CO2 (dióxido de carbono) e por isso, um dos caminhos indicados seja o da eletrificação nos transportes.
Sem dúvida, o rendimento energético obtido por um motor elétrico é absurdamente superior ao obtido por um motor de combustão interna: enquanto um motor de ciclo Otto atinge, quando muito eficiente, uma relação de 40% (ou seja, a cada joule (J) colocado de energia para movimentá-lo, ele produz 0,4 J de energia mecânica), um motor elétrico de baixa eficiência tem uma relação de 75%, ou seja, cada joule de energia colocado nele, ele transforma em 0,75 joule de energia mecânica.
Isso explica o porquê de temos tantos equipamentos elétricos em casa: refrigeradores, furadeiras, lavadoras de roupas ede pratos, ar-condicionado, liquidificadores, ferramentas elétricas, enfim, tudo transformando energia elétrica em energia mecânica para alguma finalidade, de maneira eficiente e o melhor de tudo, com só uma peça móvel, o rotor do motor eletrico, e sem cheiro, nem sujeira!
O próprio trolebus é o exemplo vivo, que sobreviveu ao tempo, transportando milhões de pessoas ao longo de décadas: a energia está lá, disponível na rede elétrica aérea, enquanto o veículo só precisa do motor para convertê-la em energia mecânica e por o veículo em movimento. O mesmo vale para o metrô!
Mas vamos ver aqui novamente no “drawback”. Tudo isso é um mundo perfeito quando a energia elétrica esta lá, disponível para uso a qualquer instante. A energia está sendo permanentemente gerada em uma usina e transportada, esperando apenas para ser empregada. Mas e quando ela tem que ser armazenada, como fazer?
Ai caímos naquela máxima das baterias: elas feitas ou de materiais altamente poluentes e tóxicos (chumbo-ácidas) ou feita com metais oriundos das chamadas “terras raras” (lítio, níquel, cádmio, etc.), cuja densidade energética está bem longe de valores razoáveis em relação aos hidrocarbonetos, atualmente derivados de petróleo (para não falarmos de combustíveis sintéticos e entrarmos em outra seara)
Por densidade energética entendemos sobre o quanto de energia é armazenada por um X de volume e um Y de peso. E é aí que os combustíveis líquidos derivados de petróleo são imbatíveis até hoje e nas universidades, se discutem até hoje, essa questão das baterias.
Embora dificilmente se vá ler em algum órgão da imprensa comum ou livro científico escolar, ainda não há nada com densidade energética elevada (e com segurança) do que os hidrocarbonetos na forma líquida. No gráfico acima, vemos o quão superior são esses valores na gasolina e no diesel vs, nas baterias de lítio, cujo peso é bastante expressivo por MJ de energia armazenada.
Um kg de gasolina com 27% de álcool armazena 38,4 MJ de energia por quilograma, o que em volume corresponde a 52,6 MJ/L, considerando uma densidade de 0,73 kg/L. Se considerarmos um motor de combustão interna de rendimento térmico bem baixo (25%), chegaremos a conclusão que apenas 13,15 MJ se transformarão em energia mecânica.
No caso dos elétricos, segundo algumas fontes, modernas baterias de íons de lítio são capazes de armazenar 2,3 MJ/L em volume. Mesmo que um motor elétrico consiga converter 100% desses 2,3 MJ de energia armazenada em energia mecânica, ainda assim teremos um rendimento que é um quinto do observado na gasolina, ou seja, precisaríamos do espaço equivalente ao volume de 5 litros de baterias para equivaler à conversão de 1 litro de gasolina.
Cito um exemplo aeronáutico ocorrido em maio de 2020: A AeroTEC americana fez o primeiro voo bem-sucedido de um Cessna Grand Caravan 100% elétrico. Dotado de um motor elétrico de 750 hp, a aeronave tinha alcance de 100 milhas náuticas, ou seja, 185 km + 200 m! Perfeito para a rota Congonhas-Sorocaba!
O Grand Caravan é uma aeronave para 8.020 lb de peso máximo de decolagem (3.641 kg) e um peso vazio de 5.320 lb (cerca de 2.410 kg). O máximo de passageiros permitido para o nosso E-Caravan é 5 pessoas, ou seja, um valor ínfimo (350 kg), considerando que, o Caravan convencional, com capacidade total de combustível, pode transportar tranquilamente 7 passageiros de 190 lb (86,2 kg, passageiro-padrão, conforme norma FAA) por longos 1.600 km….
Interessante que na época, muito pouco sobre dados técnicos foi divulgado, assim como ocorreu com o Embraer Ipanema elétrico, cuja única notícia que se deu foi que no hopper (local onde vão os insumos de pulverização) foram colocada as baterias….]
Outra falácia que tem mais efeito de marketing do que prático: caminhões a álcool!
Na década de 1980 o hype do Proálcool criou máquinas agrícolas e caminhões movidos a “combustível completão”: a densidade energética do diesel é de 38,6 MJ/L enquanto do álcool é de 24 MJ/L.
No ciclo Diesel, 38 MJ se transformam em 15,4 MJ de energia mecânica, isso considerando um motor Diesel de rendimento térmico normal (40%), enquanto num motor a álcool de rendimento térmico razoável temos 31% de eficiência, ou seja dos 24 MJ, 7,4 MJ serão energia mecânica. Ou seja, espere mais que o dobro de consumo de um motor pesado a álcool em substituição ao Diesel, pois além da substancial diferença térmica do diesel em relação ao álcool, ainda temos o maior rendimento do ciclo diesel em relação ao ciclo Otto.
Agora, supondo que o carro elétrico fosse, do ponto de vista de armazenamento energético viável, uma outra pergunta que ninguém respondeu: de onde virá a energia elétrica para abastecê-los? No Brasil, a maior parte da energia elétrica vem de fontes renováveis, mas, e outros países? Na maior parte do mundo ainda há uma dependência do petróleo para produção de energia elétrica.
No Brasil mesmo, durante os últimos 20 anos, muitas termoelétricas foram construídas como forma de complementar a demanda por energia elétrica quando dos períodos do estiagem. E a demanda por energia elétrica crescerá a ponto que a única maneira de suprir rapidamente será com termoelétricas, neste caso, estaremos apenas jogando a “sujeira” de um lado para o outro.
Agora vem a pergunta: até que ponto tudo isso é viável? Falamos de carros elétricos mas não pensamos como vamos “abastecê-los. A sustentabilidade fictícia dos caminhões a álcool cai por terra quando se lembra dos experimentos da década de 1980. E não adianta falar que faz 40 anos isso: densidade energética não muda e se os motores de ciclo Otto ficaram mais eficientes, os de ciclo diesel ficaram iguais ou até superiores em termos de rendimento térmico.
Tudo isso tem que ser levado em consideração antes de iniciarmos as defesas apaixonadas dos veículos elétricos, afinal, quando a eletricidade está lá, disponível 24 horas como ocorre em nossas casas, tudo vai bem e a eletricidade é e será sempre imbatível. Agora quando o assunto é armazenagem de energia para consumo futuro, ai é onde a coisa pega.
DA