Nossa história começa em 1971. O carro mais vendido do Brasil era também o mais barato: o VW 1300 sedã. A ditadura militar estava firme no poder, e o país vivia um paradoxo em que os horrores da falta de liberdade de expressão, tortura e imprensa amordaçada conviviam com uma explosão de desenvolvimento de infraestrutura que, infelizmente, nunca mais vimos acontecer. Apenas quatro fabricantes de automóveis se firmavam em nosso mercado hermeticamente fechado, produzindo pouquíssima variação de modelos. Ford, GM, VW e Chrysler eram eles; a Fiat ainda estava alguns anos no futuro, e a FNM/Alfa Romeo, bem como uma nascente indústria indígena, eram apenas coadjuvantes. Willys-Overland (produzindo veículos da marca Willys e Renault), DKW-Vemag e Simca, marcas pioneiras aqui, estavam de saída, absorvidas pela Ford, VW e Chrysler, respectivamente.
Telefones eram raros e caros. Falamos aqui de telefones ligados a cabos nas paredes, claro, porque celulares estavam restritos ao seriado de ficção científica Jornada nas Estrelas, que então lentamente se tornava um culto imortal. Se você fosse bem-sucedido o suficiente para ter um Fusca na garagem e um telefone em casa, era invejado pelos vizinhos. Dois carros era coisa de milionário com motorista particular, pois uma esposa que dirigisse ainda era algo incomum, e não era bem visto por todos. Mas mesmo se tivesse telefone em casa, se quisesse falar com alguém em outra cidade, você deveria ligar para a telefonista e agendar uma ligação de longa distância. Quarenta e quatro anos nos separam de 1971, mas era um mundo tão diferente do nosso que podiam bem ser três séculos.
Era também tempo de mudança. O automóvel enfrentava sua primeira grande crise, gerada por uma miríade de mudanças culturais desencadeadas nos anos 60, que em 1968 atingira o mundo todo como uma revolução. Legislações sobre emissões de poluentes apareceram, sucessivas crises de abastecimento de petróleo criavam uma crescente preocupação com economia de combustível. Legislações sobre proteção de ocupantes em acidentes se tornavam assunto da hora. Somado a isto, uma crescente cultura de proteção legal ao consumidor aparecia nos EUA, fomentada por um batalhão de advogados famintos por fama, glória e dinheiro tornava a vida de todo fabricante de qualquer produto bem mais complicada, tediosa e regulamentada. Os anos de criatividade completa, de liberdade de pensamento, de evolução do automóvel em sua essência, terminavam.
O automóvel como uma expressão de si mesmo, criado com a liberdade intelectual de evoluir apenas em sua função e uso, seria substituído por uma intromissão cada vez maior dos governos e legislações. Um medo angustiante, opressor e perene de ser culpado por tudo que aconteça com os usuários de suas criações, independentemente da eventual completa estupidez deste usuário, levaria em última instância os fabricantes de automóveis a matar a criatividade e se retrair na defensiva. Sucessivos processos litigiosos públicos e famosos acontecem nos EUA, colocando a indústria na berlinda, e na posição de inescrupulosas corporações que trocam centavos de lucro por vidas humanas, selando um futuro triste, em que o automóvel se transformou de supremo provedor de liberdade em cruel máquina egoísta, fonte de todas as mazelas da sociedade. De herói a vilão em pouquíssimo tempo.
A Porsche em 1971
Enquanto este cenário se desenrolava, a pequena empresa familiar produtora de carros esporte sediada no subúrbio Zuffenhausen, em Stuttgart, Alemanha continuava em um curso que parecia imutável.
A Porsche nasceu como produtora de carros esporte no pós-guerra (antes era apenas um escritório de engenharia). Fabricava um pequeno cupê aerodinâmico chamado 356, que apesar de ser claramente baseado no VW, se distanciava dele em preço e desempenho. Apesar de idêntico em configuração básica, o 356 era totalmente diferente em detalhe, e, perfeito oposto do Fusca, era um carro esporte caro, veloz, e feito em pequena série. A qualidade e o avanço técnico tornaram os Porsches famosos e desejados nas pistas e nas ruas, apesar de então serem equipados com pequenos motores de até 2 litros apenas.
O 356 teve longa vida, mas quando chegou a hora de criar um substituto no início dos anos 60, a Porsche apenas modernizou a mesma fórmula do 356, criando o 911 de seis cilindros contrapostos de 1963. Além do 911, o único outro carro vendido pela marca em 1971era o 914, na verdade uma joint-venture com a VW de motor central refrigerado a ar que dava um topo de gama à VW e um modelo de entrada à Porsche, mas que já naquele ano era entendido como um fracasso comercial.
Em 1971 o 911 não era o ícone imortal que conhecemos hoje. Na verdade era visto dentro e fora da empresa como uma continuação da tradicional fórmula da Porsche, vigente desde 1948, e, portanto, já em tempo de ser repensada.
E parecia que devia ser não somente repensada, mas radicalmente repensada. Como acabamos de contar, legislações de ruído externo e emissão de poluentes traziam barreiras aparentemente intransponíveis para a fórmula de motor traseiro arrefecido a ar dos Porsche. Tal motor é inerentemente mais barulhento (não há a parede dupla cheia de fluido dos arrefecidos a água para absorver som), e mais difícil de reduzir emissões de poluentes por sua câmara de combustão mais quente. Além disso, há pouquíssimo espaço para um escapamento que poderia remediar tanto ruído como emissão, na configuração de motor traseiro.
A empresa esperava resolver isso mantendo suas tradições. A engenharia da Porsche, liderada pelo hoje famoso Ferdinand Piëch, desenvolvia para VW um veículo que deveria substituir o Fusca em 1975: o projeto EA266 trazia um quatro em linha refrigerado a água deitado debaixo do banco traseiro em posição central-traseira, acoplado a um transeixo para tração traseira. Como o motor moderno arrefecido a água resolveria os problemas de ruído e emissões criados por legislação corrente e vindoura, e o esquema mecânico é perfeito para a distribuição de peso de um carro esporte e/ou competição, nada mais óbvio que usar esta base para os futuros Porsche. Assim, de quebra, se mantinha a tradição da intrínseca ligação entre as duas empresas.
Piëch planejava um Porsche de 4 cilindros para substituir o 914, apenas colocando um cabeçote DOHC (duplo comando de válvulas) no quatro-em-linha do VW (que era SOHC, monocomando), e um substituto do 911 que ainda hoje é sonho: um oito-cilindros contraposto de 3 litros e perto de 300 cv, adicionando uma segunda fileira de cilindros opostos no quatro em linha deitado. Seria o curso natural de evolução do 911, se o curso da evolução do automóvel não tivesse tomado outro rumo nos anos 1970. Já pensaram onde estaríamos hoje se desde 1975 tivéssemos um substituto do 911 com um oito cilindros contrapostos arrefecido a água, em posição central?
Mas não era para acontecer. Ao início de 1972 tudo tinha mudado. Em outubro de 1971, Kurt Lotz deixa a presidência da VW. Em seu lugar, Rudolf Leiding (antes na Audi-NSU) cria um problemão para a Porsche: cancela completamente o projeto EA266. No lugar do carro de motor central-traseiro da Porsche, o substituto do Fusca seria um carro de tração dianteira e motor transversal, mais ajustado aos tempos de então: o Golf. A Porsche fica então com dois problemas para resolver: de um lado um enorme time de engenheiros dedicados ao EA266 fica sem o que fazer de uma hora para outra.
De outro, a base de todos os modelos Porsche planejados para o futuro colapsa e desaparece como mágica. Piëch também se fora: depois de longa batalha pelo poder na empresa, os dois clãs donos da Porsche (Porsches e Piëchs, liderados pelos irmãos Ferry Porsche e Louise Piëch) resolvem a batalha proibindo qualquer membro da família de trabalhar na empresa. Em 1972, Ferdinand Piëch começava outra carreira, agora no grupo VW, na Audi em Ingolstadt. Em seu lugar na Porsche fica Ernst Fuhrmann, veterano que já era famoso pelo projeto do motor do Porsche Carrera original de 1955, o lendário quatro cilindros contraposto com duplo comando de válvulas no cabeçote conhecido como “quatro-comandos”.
Fuhrmann logo coloca o povo que trabalhava para a VW para trabalhar. Toda essa capacidade ociosa é posta rapidamente em duas frentes: um de estender a vida do 911 até que um substituto possa aparecer, o primeiro grande redesenho do 911, que seria lançado em 1974. O segundo, claro, é o de criar a partir do zero um novo substituto para o 911.
E é esta história conturbada que conto hoje: a do hoje quase completamente esquecido Porsche 928.
Um novo Porsche. De verdade.
O novo carro seria realmente novo. A ligação com a VW não parecia mais possível. O velho esquema de motor traseiro arrefecido a ar era mal ajustado às realidades dos anos 1970, e portanto, naquele momento, não podia ser repetido. Fuhrmann recebe então aquele que é o sonho dourado de qualquer engenheiro automobilístico: uma folha de papel completamente em branco para desenhar o futuro da Porsche.
O fato de que falhou completamente em sua missão não vem ao caso. Ele cometeu erros, sim, mas na maior parte seu fracasso é ligado muito mais às questões culturais, mercadológicas e sociais que a simples decisões lógicas de engenheiro. Outra coisa mudaria no futuro em decorrência desta linha histórica: até ali os carros da Porsche eram criados por engenheiros, na antiga lógica de que se você construir algo suficientemente bom, compradores aparecerão. O fracasso do 928 trouxe a imprecisa mas essencial ciência de análise mercadológica para a Porsche. De novo, emblemático de mudanças maiores que ocorriam durante os anos 1970 em toda a indústria.
A missão de Fuhrmann era complexa. A Porsche era uma empresa pequena, e literalmente o seu futuro estava sendo apostado em seu projeto. Ele não podia arriscar, naquela época de incertezas, que algum legislador, em algum mercado, pudesse criar normas que seu carro não pudesse passar. O carro devia ter vida longa também: o 356 durou 17 anos, e o 911 teria também 17 quando se lançasse o que seria o 928. Uma longa vida era essencial para a sobrevivência da pequena empresa.
A decisão de configuração básica ficou então bem diferente de um Porsche tradicional: motor dianteiro, arrefecido a água, e transeixo traseiro, para melhor distribuição de massas. Desta forma, todas as necessidades decorrentes de novas legislações seriam melhor gerenciadas, e de quebra se teria um carro extremamente equilibrado, e de vasto potencial para desenvolvimento. Piëch, agora na Audi, arquitetou uma saída para o problema de falta de um modelo de entrada da Porsche que acabou por ajudar a escolha da configuração básica: a Porsche comprava um projeto de cupê esporte abandonado pela Audi (o futuro Porsche 924), que usava motor de quatro cilindros em linha arrefecido a agua na dianteira e transeixo traseiro também. Com um modelo base nesta configuração, o futuro coerente da linha parecia assegurado. A VW, como se sabe, planejava mudança similar, abandonando a velha tradição compartilhada com a Porsche (motor traseiro arrefecido a ar), então a direção parecia segura.
O motor foi mais difícil de decidir. Desenvolvido em meio a uma longa crise de abastecimento, e preços do petróleo em crescimento, a escolha de um V-8 de cinco litros foi questionada constantemente durante todo o desenvolvimento. Quase virou um V-6 no meio do caminho, por algum tempo no seu desenvolvimento deslocou apenas 3,9 litros, mas acabou sendo lançado com 4,5 litros. Uma decisão corajosa de qualquer forma, mas tomada com base na necessidade de desenvolvimento futuro (aumento de potência) e no credo de que um motor com folga de torque poderia ser dirigido economicamente se necessário.
O motor resultante, todo em alumínio, era um V-8 com comando único no cabeçote (acionado por correia dentada), câmaras de combustão triangulares e apenas duas válvulas por cilindro. A câmara triangular era similar à usada tradicionalmente nos V-8 americanos, mas ao contrário destes, que inclinam suas válvulas em direção ao centro do “V” para melhorar o ângulo de trabalho das varetas de acionamento (conseqüência do comando único central), Fuhrmann inclinou-as para fora do motor. Desta forma, apesar de criar um motor mais largo, deixou as velas em posição mais acessível e mais frias, do lado da admissão e não do escapamento. As válvulas em si tinham diâmetro generoso, 43 mm na admissão e 38 mm no escapamento, possíveis usando o mesmo diâmetro de cilindros do 911 Turbo original (3 litros): 95 mm. O curso dos pistões, porém era maior que o do 911: 78,9 mm, para uma cilindrada total de 4.474 cm³.
O motor foi desenvolvido do início para usar injeção Bosch K-Jetronic, e portanto tinha coletores de alumínio fundido desenvolvidos em conjunto com o motor. Produzia, em seu lançamento, 240 cv a 5.250 rpm, e o limite de rotação era 6.600 rpm. A versão americana produzia apenas 210 cv, em razão legislação de emissões mais restrita.
O motor era montado na dianteira do carro, e depois da embreagem um cardã no interior de um tubo de torque levava a forca do motor para a traseira do carro, onde um transeixo desenhado exclusivamente para ele, com cinco marchas e o diferencial autobloqueante ZF como último componente (mantendo a massa entre os eixos do carro). A primeira marcha era para a esquerda e para baixo, fora do “H” principal, algo que gerou muita controvérsia. Opcionalmente um caixa Mercedes-Benz automática de três marchas era montada no mesmo local.
A suspensão também abandonaria tradição da marca. Na dianteira, triângulos superpostos com braços de alumínio, e direção de pinhão e cremalheira ZF, com assistência hidráulica variável com a velocidade (ainda uma novidade tecnológica). Na traseira, foi criada uma nova suspensão baseada na geometria básica do braço arrastado, mas com um engenhoso braço de controle que se movia na direção de marcha do carro sob carga, criando um esterçamento para dentro da curva. Foi chamada de “eixo Weissach”, nome do campo de provas onde foi desenvolvido. Quatro discos de freio ventilados fechavam o pacote.
Toda suspensão foi desenvolvida sobre os modernos Pirelli P7 já usados no 911 Turbo, uma verdadeira revolução de comportamento com seu perfil extra-baixo. No 928 eram 4 pneus 225/50 VR16, mesma medida da traseira do 911 Turbo. As rodas, porém, tinham novo desenho, as hoje famosas “telefone”. Um nome que data o carro também: um jovem hoje ia ter dificuldade de associar o desenho ao que conhece por telefone, precisamente a sua roda de discagem.
O carro lançado em 1977 tomou o mundo pela surpresa. Não somente pela novidade de um novo tipo de Porsche arrefecido a água (já anunciado pelo 924 de 1976), mas por ser incrivelmente avançado, e por seu desenho futurista. Criado por Anatole Lapine e Wolfgang Möbius, o 928 era algo tão alienígena num mundo ainda povoado por Corcel, Opala e Fusca quanto fora o 356 num mundo de barcas americanas gigantes dos anos 1950. Arredondado, mas baixo e largo, e sem pára-choques aparentes (eram integrados ao desenho da carroceria, e fabricados em espuma de PU-RIM, outra novidade), é um desenho que permanece original, e que pareceria atual mesmo se fosse lançado hoje. A carroceria em aço galvanizado era virtualmente imune à corrosão, outra coisa normal hoje mas novidade em 1977. O capô e os pára-lamas dianteiros eram em alumínio, para reduzir peso.
O espaço interno era similar ao do 911, mas o 928 era um carro grande, maior que e mais pesado (1.500 kg, o que parecia altíssimo em 1978, mas hoje nem tanto). Compensava isso com desempenho brilhante (0-100 km/h em 6,5 segundos e 240 km/h de máxima), muito mais conforto interno, e um comportamento em curvas extremamente benigno. Um 911 pedia habilidade e experiência para se explorar os seus limites, mas um 928 fazia um piloto hábil de qualquer um imediatamente.
A imprensa especializada da época não poupou elogios. O 928 foi recebido com pasmo total, um veiculo diferente de tudo que existia até ali, um exemplo de futuro entusiasmante para quem gostava de carros e então parecia acreditar que o futuro se resumiria a Golfs com motor Diesel e menos de 50 cv. Uma luz no fim do túnel, ainda que inatingível pela maioria por seu preço elevado. Ganhou o pr~emio de Carro do Ano da imprensa especializada internacional em 1978, um prêmio raramente dado a carros esporte de baixa produção. Um dos jurados disse que: “Faz todo carro em produção hoje, incluindo ai todos os Porsches já produzidos até hoje, parecerem relíquias antiquadas.” Outro jurado era o barbudo gentleman Inglês LJK Setright, que disse que o 928 “merece ser considerado o melhor carro do mundo.”
Evolução
Mas logo de cara ficava claro que o 928 não poderia substituir o 911. O 928 era um carro mais maduro, crescido, adulto. Além do desempenho brilhante, e um comportamento elogiável ausente no 911, era também mais confortável, silencioso e tranqüilo que o Porsche tradicional, mesmo andando às mesmas velocidades. O que devia ser uma vantagem se mostrou um problema: o 928 falhava em provocar emoções que eram fáceis no 911. Apesar de objetivamente melhor, era menos apaixonante e esportivo que o carro de motor traseiro.
A Porsche passaria a tentar colocar o 924 nesta função, a de substituir o 911, criando no processo sucessivas evoluções de seu carro mais barato, e posicionou o 928 acima dos dois, como um grã-turismo de alto preço e capacidade. Em 1980 aparece o 928S, onde o diâmetro dos cilindros aumentava para 97 mm, para um total de 4.664 cm³ de cilindrada. Com taxa aumentada, corpo de borboleta maior, e comando alterado, entregav 300 cv a 5.900 rpm. O efeito era convincente no carro; passava a empolgar bem mais que antes em acelerações, diminuído o efeito de seu peso e tamanho maiores. Fazia de 0-100 em 6 segundos cravados e chegava facilmente a 250 km/h.
A grande maioria dos 928 continuava a ser vendida com câmbio automático, o que mostrava bem o viés de grã-turismo do carro. Ninguém aceitaria então um 911 automático. Seu fracasso como carro esporte puro com certeza é um dos motivos que levaram Fuhrmann, que tinha sido promovido a presidente em 1972, a perder seu emprego em 1980.
Mas, como em todo Porsche, o desenvolvimento não parava. Buscando melhorar a potência da versão americana do carro, a Porsche resolve ao mesmo tempo melhorar a eficiência geral do motor adotando um novo cabeçote multiválvulas. O motor resultante era de 5 litros a partir de um diâmetro de cilindro de 100 mm e curso dos pistões de 78,9 mm. Os novos cabeçotes eram de desenho extremamente inteligente: a mesma correia dentada do motor antigo era usada, com o comando de escapamento posicionado onde estava o comando único da versão anterior, e dele partindo uma pequena corrente duplex para acionar o comando de admissão. As quatro válvulas por cilindro tinham ângulo estreito entre elas (28º), vela central, e um novo coletor de admissão fundido no levíssimo magnésio. A injeção agora era totalmente digital (LH-Jetronic, Bosch). Entregava 294 cv a 5.750rpm, apesar de ser bem mais econômico que o motor que substituía. Na Europa, porém, permanecia o bravo 4,7 litros SOHC do 928 S, agora com 310 cv.
No ano-modelo 1987, a confusão de motores acaba, com uma versão do motor DOHC unificada para todos os mercados, no novo 928 S4. Com o novo motor aparecia também uma reestilização suave nos pára-choques. O motor ganhava novo coletor de admissão em magnésio, e uma cuidadosa revisão de todos os seus componentes (inclusive um cabeçote ligeiramente diferente!), e crucialmente um sistema de gerenciamento mais moderno, com sensor de detonação e controle total da ignição, para lidar com variadas qualidades de combustível mundo afora. O resultado é um motor ainda mais eficiente e potente, com 320 cv a 6.000 rpm, e pelo menos 43 m·kgf de torque entre 2.700 e 4.750 rpm (o máximo, 44 m·kgf, ocorria a 3.000 rpm). Uma versão mais leve, menos equipada e mais potente do S4, chamada 928 GT aparece em 1989, com 330 cv.
O 928 se tornava progressivamente mais sofisticado, equipado, potente e como não podia deixar de ser, mais caro. Suas vendas entram em declínio, mas ainda assim permanece com uma clientela fiel, apaixonada por suas características esportivas, sua incrível capacidade de manter altas velocidades sem drama, e seu conforto e usabilidade. Ao mesmo tempo, porém, o 911 estava se tornando imortal. Suas vendas cresciam e a demanda parecia nunca esfriar, ao contrário do 924/944/968, que como o 928 estava fadado a permanecer também pouco amado. A Porsche decide então que seu futuro é ligado ao passado: novas versões seriam criadas para o 911, e os outros dois carros seriam deixado de lado para morrer.
Mas uma versão final faltava ainda para fechar a história do 928. Ao final de 1991 aparecia (como modelo 1992) o 928 GTS. Outro face-lift trazia o carro para os anos 90, e rodas e pneus maiores enchiam visualmente pára-lamas alargados. Os pneus, fantásticos Michelin MXX3, mediam 225/45 VR17 na frente, e 255/40 VR17 na traseira. Os discos de freio agora eram Brembo, com 322 mm de diâmetro na frente. Debaixo do capô a evolução final do V-8: um curso ainda maior de 85,9 mm resultava em 5.397 cm³, 354 cv a 5.700rpm, e nada menos que 50,8 m·kgf de torque a 4.250 rpm. Uma nova caixa de seis marchas foi planejada para o GTS, mas quando era claro que a vida do carro não seria longa, foi cancelada. A última evolução do 928 era um carro seriamente rápido e veloz: fazia o 0-100 km/h na casa dos 5 segundos cravados e chegava a 280 km/h.
Além de ainda se manter atual apesar dos 15 anos de idade, o 928 GTS era uma refinada máquina capaz de médias incríveis em viagens, no maior conforto. Mas o preço era altíssimo (mais de 80 mil dólares nos EUA em 1993) e as vendas, baixas. Em 1995, sem muita fanfarra, acaba a produção do Porsche 928. Em 6 de fevereiro do mesmo ano, numa incrível coincidência, morria de infarto Ernst Fuhrmann, seu criador, aos 76 anos de idade.
O Porsche esquecido
Por que hoje ainda compramos Porsches novos que evocam um carro que já era obsoleto 40 anos atrás? Por que proliferam reedições do passado? E mais importante, por que este passado é invariavelmente de antes de 1970? De 911 a Rolls-Royces, de Fiat 500 a Fuscas e Mínis, por que nos mantemos atrelados a um mundo que a maioria de nós nem viveu?
Para mim é clara a resposta. Antes de 1970, o automóvel viveu o seu auge. Não o seu auge técnico, isto está sempre no agora. Mas seu auge como expressão de criação humana, seu auge artístico, seu auge enquanto evolução natural. Depois de 1970 o carro deixava de ser desenvolvido totalmente pela função e passava a ser restringido por uma série de pressões sociais que amordaçaram definitivamente a criatividade e, crucialmente, o romance de sua criação.
Se estas pressões estão certas ou erradas, não importa; nada que foi criado depois consegue emular a pureza de espírito com que foram criados, e por isso a indústria, já capitulada em sua nova condição de vilã, desistiu de tentar lutar contra. O carro deixou de ser o herói, o supremo provedor de liberdade individual, para ser o vilão do mundo, a fonte de todo mal, a ser controlado bem de pertinho. Não lhe parece que é a própria liberdade individual que está lentamente se tornando um vilão também? Vamos realmente capitular à nossa liberdade individual por um “bem maior”, por uma vida mais segura? A julgar pela nostalgia automobilística vigente, parece que ainda não.
Mesmo porque a indústria, ou melhor, as pessoas dentro da indústria, continuam arrumando maneiras de andar para frente. O Panamera é mais acertado como conceito do que o 928, apesar de muito parecido conceitualmente a ele. O Cayenne nos mostrou que é possível diversão ao volante em um SUV gigantesco. Podemos nunca saber qual seria a evolução natural do carro esporte sem intervenções estatais, mas o automóvel continua a evoluir. E apesar de ter o mundo contra, ainda provem liberdade individual diariamente a milhões de pessoas. Ainda que com o curso artificialmente alterado, continua evoluindo.
E o 928, apesar de ser produto confuso de uma época confusa, é ainda assim um carro sensacional mesmo nos dias de hoje, um carro muito à frente de seu tempo. E emblemático de uma época onde o passado parecia ser apenas isso: o passado. O futuro era para onde olhávamos. O fracasso da Porsche em substituir o 911 era inevitável: a partir de 1970 o entusiasta passou a olhar com mais carinho para o passado do que para o futuro.
O 928 também sofria, verdade seja dita, de uma certa ambigüidade em sua missão. Nunca foi um GT no idioma de conforto de um Jaguar XJ-S, mas também nunca foi um excitante e visceral esportivo como o 911 Turbo. Sempre foi um compromisso que ninguém tinha pedido.
Hoje, nos mercados onde foi vendido como novo (o que não é o caso do Brasil), é um carro usado muito barato. Dizem, porém, que o motivo disso é a manutenção caríssima: seus componentes exclusivos de baixa produção, muitos deles eletrônicos, são extremamente caros no mercado de reposição. Isso, é claro, se você conseguir achá-los a venda. Uma pena.
Mas o 928 merece ser lembrado também por outro motivo. Se pensarmos bem, o 356 derivou do VW, o 911 derivou do 356. O 914 usava motores VW, e era um projeto conjunto. O 924 era um projeto Audi abandonado por Ingolstadt e adotado por Zuffenhausen, e os sucessores 944 e 968 eram baseados no 924. O 911 de 1997 em diante é restrito em seu motor boxer de seis cilindros traseiro pela tradição, que naquele ponto passou a ser escrita em pedra. O Boxster (e o Cayman) derivam do 911 e usam seus motores. Os Cayenne e Macan usam estruturas compartilhadas com VW e Audis. O Panamera, conceito atual de Porsche mais próximo ao 928, usa os motores e outros componentes do Cayenne.
O 928 é portanto a única vez que a Porsche desenvolveu um carro de produção normal sem restrições de uso de componentes compartilhados, ou de tradições diversas. Somente mega-esportivos de baixíssima produção como o Carrera GT e o recente 918 foram desenvolvidos de forma parecida. Um Porsche puro. Talvez, olhando por este prisma, o mais puro deles?
Taí algo que gostaria de experimentar.
MAO