Longo, amistoso, pantagruélico e memorável almoço durante o XIV Encontro Nacional de Automóveis Antigos, maio, 1999, São Lourenço, MG, reunia assumidos aficionados por automóveis antigos e insuspeitados apreciadores da cozinha levantina. Historicamente o estar à mesa simplifica relacionamentos, adensa amizades, dilui ressentimentos, aplaina arrepios, aumenta informações. Desta forma, apreciávamos como os kibes assado e frito, o hommus, pasta de beringela, tabules, labne — coalhada seca —, e kaftas, esfihas, pepinos, cebolas roxas e folhas de hortelã fresca haviam criado um moto perpétuo no restaurante do Salim.
Falava-se de uma corrida ímpar, uma rodada disto. Contava-se caso memorável, outros acepipes. Lembrava-se de algum fato ou pessoa, alguém aduzia um complemento ou fazia um comentário esclarecedor, outro reabastecimento. Um esclarecimento sobre versão de alguma estória, idem. Ia assim.
O Salim, libanês dono do bar/restaurante, sempre presente, envolvente, parecia o mais interessado, senão nas histórias, pelo menos em repor, via petiscos árabes de sua correta cozinha, as energias gastas pelo Jorge Lettry, parlador maior. Pensando bem, difícil aparecer clientela para comer desmesuradamente, como aquela.
Considerado por décadas como de difícil relacionamento por sua inflexibilidade de técnico com absoluta coerência aos seus princípios de exatidão e excelência, o Lettry (1930-2008) foi um bom companheiro — desculpe o leitor, mas trocarei o tratamento atualmente afastado do significado original e hoje praticamente indicando cúmplice. Chamá-lo-ei Camarada. Em paralelo, enciclopédia para a geração mais experiente representada na agradável ocasião pelo Judeu-a-Jato — apelido dado ao semita jornalista Boris Feldman quando, no Circuito do Mineirão, BH, 1970, a bordo de um Corcel cupê novo, recém lançado, depenado pela Equipe Greco, fez melhor tempo sobre seu companheiro de equipe, um certo Emerson Fittipaldi … — ; pelo Josias Silveira, engenheiro tornado jornalista e editor neste nosso AUTOentusiastas, ex-número 1 da revista Oficina Mecânica; Jason Vogel, d’O Globo e melhor dentre os poucos representantes da atual geração de jornalistas especializados em indústria automobilística; JR Mahar, outra enciclopédia temática, e até hoje relembrado por ter detido um dos mais invejados empregos já criados pela imaginação do machismo automobilístico: test-driver de Ele e Ela, então revista de moças peladas; Rogério Louro, na esteira do Jason, pesquisador incansável à época na agência AutoPress, e por mim.
Eu tentava montar um painel para escrever a história dos Malzoni, cuja viabilização ocorreu por instâncias do bom Jorge, entretanto, em meio à minha perguntação, contou história tão reveladora quanto, a do Fissore.
Confusão
No extenso e implícito conceito vigente à época, em 1961, das corridas de automóveis como demonstração de qualidade, resistência, confiabilidade e performance dos carros da emergente indústria nacional, na prática traduzindo vendas, a Vemag havia chegado ao pico. Obtinha muitas vitórias, bons resultados com os sedãs 1000 — naquele ano passaram a ser designados Belcar. Vencia corridas contra concorrentes com motores maiores, fazia voltas mais rápidas sobre os carreteras, mistura de chassis antigos com motores modernos e de cilindrada algumas vezes maior, no tira-teima das referências nacionais, o Autódromo de Interlagos. Último ato do Jorge na Vemag foi botar pilha em Genaro — Rino — Malzoni, sonhador com a mão na massa; Anísio Campos, multi mídia e designer; e Francisco Vaida, moldador em chapa dos sonhos do patrão Rino, a modificar uma treliça de Formula Brasil, monoposto construído por Chico Landi e Toni Bianco e vesti-la com carroceria aerodinâmica. Com motor usado, à míngua de meios, e com o carioca Norman Casari ao volante, cravaram recordistas 214 km/h na hoje Avenida das Américas, na Barra da Tijuca.
Mesmo Jorge, à época o responsável por estas conquistas como chefe da equipe de competições da Vemag, fora à diretoria da empresa ponderar sobre a situação e explicar didaticamente: o desenvolvimento dos carrinhos estava no fim. Daí, continuar competindo com chances de vender e vender, exigia mudar a fórmula simplória, doméstica e de poucos meios, estrutura de sua equipe. Em suma, investir em um novo veículo, mais leve, menor, capaz de oferecer melhor relação entre peso e potência, e em especial, de enfrentar a Willys, então a líder do mercado brasileiro. Maior das fabricantes nacionais, com produtos diversos como os da norte-americanos Willys e da francesa Renault, acabara de montar equipe de competição sob o guarda chuva do profissionalismo, incluindo aproveitar as características de performance dos Interlagos, designação brasileira do Alpine A 108, a iniciar produzir em instalações industriais separadas do restante do processo industrial dos veículos de São Bernardo do Campo, SP.
Lettry levara os argumentos, os números, previsões, solução e sugestão: o projeto do Monza GT.
Pequeno, leve e barato surgira na Alemanha em 1956, conseguindo resultados surpreendentes neste circuito italiano — nome daí advinha. Juntava uma carroceria de fibra de vidro — então chamada depreciativamente de plástico –, envolvendo a estrutura mecânica de Auto Union F-91, tracionada por motor 896 cm³. Preparado para corridas gerava pouco mais de 70 cavalos de potência. Tal combinação levada ao circuito italiano, marcou impressionantemente, cinco recordes mundiais na Classe até 1.100 cm³ – 4.000 Milhas, 48 Horas, 5.000 Milhas, 10.000 Quilômetros e 72 Horas.
Solução rápida, prática, barata e de fácil implementação. O Monza era encomenda feita pela alemã Auto Union a um técnico da marca, A. W. Mantzel, e construída por Dannenhauser & Strauss, em Stuttgart. Resultados tão bons, motivaram Fritz Wenk, revendedor DKW em Heidelberg, na mesma Alemanha, bancar a encomenda de 230 unidades para vender a quem demandava um esportivo longinquamente lembrando os Mercedes 300 SL, os Asa de Gaivota, aos desejosos de carro barato para competir, ou aos pretendentes a charme, individualização e baixo preço. F-91 era a geração abandonada pela Auto Union alemã e enviada ao Brasil. E por isto, negocialmente, tudo o de fazer o Monza — moldes, ferramentas, detalhes — estava encostado na D&S, comprável a preço irrisório. Com poucas alterações vestiria o chassi dos F-94 então produzidos no Brasil.
Lettry via longe e conhecia fórmulas assemelhadas nos maiores mercados mundiais, com empreendedores dedicados a uma marca, produzindo a carroceria para vestir mecânica fornecida por terceira companhia. Idéia e produto adequado ao Brasil daquela época, com importações vedadas.
Seria empreendimento privado, possivelmente criando um concorrente para o Willys Interlagos, com preço projetadamente elevado e, naturalmente, como o mesmo Interlagos, de mercado restrito.
Para situar o momento, personagens e cenário lembro, o Jorge havia conseguido arrancar 106 cv do pequeno motor DKW da geração evoluída a 1.100 cm³, conquista não alcançada ou sequer imaginada pelos alemães da matriz Auto Union.
No mesmo ano deste encontro turbinado por delícias árabes, estivemos juntos nas Monterey Historic Races, sensacional reunião de antigos carros de corridas no famoso autódromo norte-americano. O Jorge acompanhava o Eduardo Pessoa de Mello, junto com o mesmo Boris e o carioca Paulo Lomba que alinhariam seus GT Malzoni para a largada. O evento comemorava os 90 anos da Auto Union, agrupava veículos ligados à marca, aí incluídos o Monza e o Malzoni.
Comparados — desculpe, são incomparáveis em estilo. O Malzoni é PhD. O Monza, Mobral.
No evento californiano fui procurar o Byron Brill, então presidente do DKW Club of America, com quem mantenho cordiais contatos, trouxe-o ao grupo e ele, deslumbrado, deu uma volta no Malzoni do Eduardo. Ligaria depois para agradecer, enfatizar a felicidade do projeto do Malzoni e confirmar se, na realidade, aquele senhor simpático e falando inglês com sotaque europeu, era mesmo o lendário Mr. Lettry, autor de potência nunca igualada para os motores DKW.
Agradeceu sensibilizado a generosidade árabe do contato — afinal, permitiu-se única oportunidade de um estrangeiro apreciador de DKW Auto Union dirigir um Malzoni e por tê-lo apresentado a personagem tão importante.
Nós, definitivamente, não sabemos valorizar nossas referências!
Confusão, II
Da reunião a diretoria da Vemag, contou o Jorge, deu resposta positiva: providenciaria um automóvel capaz de manter-se bem situado nas corridas, e disseram-lhe para não se preocupar com o projeto, pois tudo já estava em andamento. Seguindo seu conceito reto de respeito hierárquico, obedeceu. Ficou ao aguardo do automóvel para resolver os problemas e os riscos da perda de competitividade — e da capacidade de gerar fatos positivos para as vendas.
Em 1962, relembrou, foi chamado para acompanhar a abertura de um grande caixote, procedente da Itália, contendo o carro para as corridas. Ansioso, aguardava a solução para manter a Equipe Vemag vencedora. Aberto, — naquela época o transporte marítimo ainda não chegara à lógica dos contêineres — dentro havia um automóvel: o Fissore.
Uma frustração. Bonito de linhas, mas prima facie, como dizem os juristas, à primeira olhada, sua elevada altura poderia ser esteticamente harmônica, mas em termos de corridas era anti aerodinâmico. Logo nas primeiras verificações viu-se, mesmo vazio superava o sedã Belcar em peso. Era muito para o pequeno motor de 1.000 cm³ e modestos 50 cavalos de força brutos, líquidos eram 44. Seria de uso impossível para as corridas, embora um piloto de Campinas tenha tentado e, para glória das ciências exatas, nada obteve de expressivo.
Testado superficialmente, o carro provou resultados pífios em performance. As linhas e a formatação charmosa deram-lhe muito peso. Exposto no Salão do Automóvel daquele ano, dividiu com a Willys as atenções.
A fabricante levara seu Aero, reformulado — a primeira de grande extensão feita sobre um dos projetos pioneiros na indústria brasileira, um bom trabalho do designer — naquele tempo estilista — Roberto Araújo, limpando e atualizando projeto antigo do norte-americano Brook Stevens.
A Willys para fazer impacto da apresentação, lançara o Aero 2600 ’63 no Salão de Paris, no mês anterior!
O Fissore, a quem cabia metade das grandes surpresas da mostra, era um diferenciador. Inteiramente novo em proposta, conceito, forma, ao público, demonstração inequívoca da capacidade e da coragem da indústria automobilística brasileira, em especial da Vemag, com seu capital nacional. Produto topo de linha, seus compradores com certeza pretenderiam a performance sugerida pelo futurismo das linhas, superior à dos automóveis da concorrência, com motores maiores; atrelada ao distintivo preço e à imagem de status e bom gosto servindo-lhe como aura.
A conclusão dos testes, conduzidos pelo mesmo Lettry em sua função oficial, chefe de desenvolvimento, logo mostrou, o automóvel, fosse lançado como fornecido pela Fissore, seria trágico. Assim fábrica inteira se envolveu no processo. Dos processos de reduzir peso, à criação de espaço industrial para produzi-lo mesclando diferentes processos industriais com os outros DKW-Vemag Belcar, Vemaguet, sua versão Caiçara. A preparação coincidiu com o fim da produção do jipe Candango. Talvez um fato feliz, pois o fascinante utilitário — é avô dos Audi Quattro — sairia de produção por não atingir o índice de nacionalização legalmente exigido.
Foi, por si só, uma complicação. A Vemag detinha uma estrutura industrial extensa, rica em equipamentos, bem montada, embora seus galpões tivessem sido planejados para receber uma linha de montagem — e não uma de produção. Seus espaços estavam no limite de capacidade. E as operações de produção eram bem distantes das anteriormente praticadas, receber caixotes com conjuntos e deles agrupar alguns componentes nacionais fazendo nascer automóveis e caminhões Studebaker, tratores Massey-Harris, Ferguson e caminhões Scania-Vabis.
Além do mais, em relação aos DKW-Vemag as operações industriais diferiam, o processo produtivo do Fissore foi outro, exigindo muitos acertos finais nas carrocerias.
Para entrar em produção exigiria enorme trabalho de engenharia de compatibilização pelas enormes diferenças industriais entre os processos aplicado aos carros de linha, os Belcar e Vemaguet, e a novidade, criada por empresa de pequena produção, exigia muitas intervenções manuais durante seu fabrico, mais complicado, caro e lento relativamente aos irmãos de linha. Projeto de empresa pequena, empregava mão de obra intensiva na carroceria, como o ajuste por solda de estanho das peças estampadas. Aliás, o processo produtivo exigiu um trançado entre a linha da fabricação da carroceria do Fissore e o casamento com a mecânica, quando os produtos se comunizavam para vestir a plataforma mecânica. Uma mão-de-obra para ajustar tal presença no espaço físico existente e operacional.
O Fissore custava, na moeda da época, o cruzeiro, Cr$ 6.950.000. O Aero-Willys, Cr$ 5.875.000. Por Cr$ 7.190 comprava-se um Simca Rallye Especial, o mais luxuoso de então. Dos automóveis, o referencial Présidence, da Simca, construído em meia dúzia de unidades mensais, e só mesmo o FNM 2000, com o desvario típico das estatais, custava mais caro: Cr$ 8.208.000,00. De qualquer forma, era o mais caro dos nacionais por unidade, fosse o quilo ou o centímetro …
No processo de adequação do Fissore ao mercado, a engenharia das corridas se aplicou a arranjar soluções práticas para viabilizá-lo, pois não se tratava de uma pesquisa de mercado, mas de um contrato de 10 anos firmado entre Vemag e Carrozzeria Fissore, e o automóvel entraria, efetivamente, em produção. No contrato, os Fratelli Fissore se comprometiam a dar toda a assessoria industrial para a produção, mas logo ficou claro haver grande distância entre a teoria italiana e a prática da iniciante indústria nacional. Para implementar o processo, dois Fissore, pai e filho, Bernardo e Giusto, mudaram para São Paulo, onde dedicaram-se à agradável tarefa de fazer relações institucionais, culturais, pessoais. Eram hóspedes e homenageados pelos italianos ou oriundi de maior relevo na alta sociedade paulistana de então. Jantares, almoços, palestras, aulas magnas. Uma agenda muito agradável fazendo circular o nome do carro inexistente no mercado, por não conseguir sair dos portões da fábrica do Ipiranga…
Parte prática, engataram com a Escola Politécnica de São Paulo, sobre design italiano e em particular sobre a construção veicular. Entrosamento e conhecimento permitiram auxílio a Ari Antônio da Rocha, arquiteto, ganhador do Prêmio Lúcio Meira de estilo com seu urbano Aruanda, obtendo-lhe estágio e construção de uma unidade na matriz da empresa, em Savigliano, na Itália.
(O projeto do Ari era bom, aclamado como de bom design pelos designers,entretanto muito adiante de um mercado brasileiro, à época pouco ligado em carros econômicos e com destinação urbana).
No processo de emagrecimento, o excesso de peso começou a ser contornado com o encurtamento da relação final, de 4,71:1 para 5.14:1. Fez-se um adelgaçamento, incluindo até a solução dos vidros com menor espessura — depois adotada no Chevette Júnior 1.0 —, e aplicou-se como solução contemporizadora, aumento da disposição do motor via acerto manual, com polimento artesanal nos dutos de admissão e escapamento do motor, geradores de alguns parcos cavalos de força. Anunciados entusiasticamente como 60 cv — 20% superior às demais versões, ainda pouco para os 100 kg superiores aos do Belcar.
A adequação do automóvel à realidade brasileira, ao padrão da manufatura industrial e às limitações mecânicas consumiram ano e meio. Só de testes de rodagem, 500 mil quilômetros.Disse-me o Bob Sharp, inspetor, depois revendedor da marca e hoje neste AUTOentusiastas, aparentemente os velocímetros dos Fissore vinham com outra calibragem — marcando a mais. Talvez para compensar visualmente a lentidão e o consumo do automóvel.
Mesmo Jorge responsabilizava o Fissore como o princípio do fim da Vemag.
NOVIDADOSO
O Fissore ocupa uma daquelas posições sobre as curiosidades da indústria automobilística brasileira. Os lançamentos aparentemente sem justificativa econômica, como o foram o próprio Willys Interlagos, cuja pequena escala e tecnologia mesclando fibra de vidro com treliça de metal, eram industrialmente tão estranhos e distante do convencional motivando fábrica própria; como o Brasinca 4200 GT, depois Uirapuru, projeto completo, em chapa de aço, do qual foram tirados apenas 75 unidades; o Simca Jangada de 1967, em 33 exemplares …
Relata Paolo Fissore, 2ª. geração da companhia, em seu livro Carrozzeria Fissore, ao início dos anos sessenta resolveram-se por expansão industrial através de internacionalização. Primeiro a Espanha, junto ao representante da mesma Auto Union. De lá, para a Argentina, para onde exportaram material permitindo montar 701 unidades do Auto Union Face-Fissore. (FACE significava Fábrica Argentina de Coches Especiais, um segundo negócio da Automotriz Santa Fé, fabricante dos Auto Union DKW ).
Contatados pela Vemag para desenvolver um veículo, realizando a produção na sede do comprador, enfrentaram o desafio.
(À época os índices de nacionalização exigidos pelo governo brasileiro para as fabricantes superavam os 95%, daí ser impossível a importação da chapa estampada para montagem da carroceria no país, como fez a Argentina.)
O primeiro protótipo ficou pronto em 1961, e a versão definitiva em 1962, mostrada no então3°. Salão do Automóvel, capa de Quatro Rodas, por seu fundador italiano Victor Civita, apoiador da iniciativa, ampla e merecidamente festejado. Era a primeira carroceria especial para a indústria brasileira, absolutamente atualizada em proposta de estilo, distante dos demais produtos locais.
Se pelo aspecto estético e comercial o automóvel era insólito, inusitado, mostrando linhas e conceitos estéticos — a grande área envidraçada, a cintura baixa, as colunas delgadas —pioneiro conceito somente adotado por grandes fabricantes no final da década, para os italianos da Fissore serviu como uma grande experiência. Estruturar uma linha de produção, para produto semi-artesanal, com conjunto com outros, em construção seriada, foi vivência nova para a Vemag, seus técnicos, e para os Fissore pai e filho.
Com tantos atrapalhos cercando o produto, desde sua adequação, à criação de espaço industrial com atividades permeando a feitura dos Vemag já existentes, produção demorou ano e meio pós-apresentação, para iniciar-se industrialmente. Somente em junho de 1964 começou a ser produzido. Tinha a primazia do produto atualizado, usando soluções européias desconhecidas pelos veículos aqui construídos naqueles anos: maçanetas embutidas; luz de sinalização acesa quando as portas se abriam; piscas laterais — só o FNM, ex-JK, também projeto italiano portava-os. Relativamente aos outros Vemags, o sedã Belcar, o sub station Vemaguet e sua versão simplificada Caiçara, tinha novidade mecânica, o Lubrimat, misturador da gasolina ao óleo para lubrificação do motor — nos outros produtos tal equipamento surgiu em 1965. E houve a opção do freio a disco na dianteira, importado, marca Alfred Teves.
As formas mantiveram-se durante seu curto período de produção, e apenas pequenas alterações funcionais e de estilo foram adotadas, como a tampa do porta-malas que não ia mais até o pára-choque, o banco dianteiro com o assento comum e encostos separados, pequenas alterações nas lanternas frontais e luzes traseiras. Em paralelo o objeto contratual entre a Vemag e a famiglia Fissore não se resumia ao automóvel comercializado, mas a outras variantes, tendo sido construídos protótipos de sedã 4-portas e elegante station, nunca materializados em produção.
Para marcar o ano/modelo 1967, último de sua fabricação, e seguindo a mudança de toda a gama, nova grade frontal, e lanternas dianteiras e traseiras. A instalação elétrica evoluiu para 12 volts portando alternador.
Na prática
O Fissore esteve presente no mercado brasileiro por 2.489 unidades, feitas de abril de 1964 (início das vendas em julho), a outubro de 1967. A compra da Auto Union pela Volkswagen na Alemanha, em 1965, exibiu, pouco depois, o fim dos motores com ciclo de dois tempos, movimento estendido ao Brasil quando a filial local adquiriu o controle da Vemag, em 1966, encerrando a produção do DKW um ano depois. Ambas as aquisições não eram ditadas pelo receio da competição de produtos Auto Union ou Vemag, mas por razão simplória e extra mercado: lá e cá as Auto Union possuíam o melhor parque de equipamentos e ferramentas industriais.
No caso brasileiro, os planos da Volkswagen não incluíam operar a fábrica, necessitada de produto novo, atualizado. Houvesse, seria concorrente em seu quintal, com a nova geração preparada pela VW para operar exatamente na mesma faixa do Belcar e da Vemaguet, com o sedã 4-portas, 3-volumes VW 1600, dito Zé do Caixão, e o sub station Variant. Dentro das novas ordens — sempre negadas, pois anúncios de página inteira asseguravam a continuidade da produção dos DKW—, o Fissore foi o primeiro produto a ser descontinuado.
O contrato entre a Fissore e a Vemag era válido até 1971, mas foi cancelado unilateralmente pela VW do Brasil, abortando viabilizar as versões de 4 portas e station wagon da família Fissore. A nova gestão interrompeu o processo de substituição dos motores 1.000 pelos tricilíndricos 2T, os F-102, 1.175 cm³, 60 cavalos de força, e em torno de 14 m·kgf de torque, descontinuados na Alemanha em 1966 e em tratativas para ser transferidos ao Brasil. Aqui os motores DKW 1,0 geravam 8,5 m·kgf – a troca mudaria a escrita.
Antolhos e visão
O projeto do Fissore para o Brasil teve, pelo menos, dois erros fundamentais. Primeiro, a definição de um novo produto sem ouvir a área técnica, surpreendida pelo fato concreto. A mesma falta de intimidade com a física do automóvel ditou outra bobagem basilar: para facilitar, o desenvolvimento foi feito sobre um chassis rolante, rolling chassis, de um DKW alemão, com o motor F-102, de torque amplamente superior. Para os projetistas, a relação entre peso do produto e potência do motor, o rendimento oferecido, e o fato de dedicar-se a um país sem intimidade — e sem grandes exigências — automobilísticas, mascararam o erro primário.
A fórmula pensada por Lettry, empresa paralela construindo carrocerias para se somar a ossaturas mecânicas fornecidos por outra marca, não foi enxergada pela Vemag, mas multiplicou-se logo em seguida. Com a mecânica Vemag surgiu a Lumimari, depois Puma, vendendo 22 mil unidades, e ampla renca de marcas aviando a mesma receita sobre a mecânica Volkswagen 1.600.
Comercialmente o Fissore foi produzido em apenas uma versão, luxuosa para os parâmetros da época — sem ar-condicionado, sem direção hidráulica, estofamento em plástico — e mostrou os seguintes números:
Ano |
Volume |
1964 |
624 |
1965 |
857 |
1966 |
631 |
1967 |
377 |
Total |
2.489 |
Como indicam os números, vendas e produção em declínio, o Fissore caminhava para a inviabilidade. Mesmo se não houvesse compra da Vemag e fim determinado pela Volkswagen, em curso livre seria o produto de vida mais curta na então recente história da indústria automobilística brasileira.
(A história do Fissore deflagra a do Malzoni).
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Fontes consultadas:
Jorge Lettry, ex-chefe do departamento de competições;
Bob Sharp, jornalista especializado, ex-piloto e ex-revendedor;
Eng Antônio de Pádua Prado, gerente de produção do Fissore;
Quatro Rodas, números 29 e 49;
Mecânica Popular ano V, volume 59;
Carrozzeria Fissore, Paolo Fissore, Giorgio Nada Editore, Milano, 1991;
Una Historia de Progreso, Cronica de AUDI AG, Peter Kirchberg e outros, Ingolstadt, 1997.