“Ser alfista não é um passatempo.”
Certa vez ouvi a frase acima e fiquei pensando como um automóvel, ou melhor, uma casa automobilística, poderia ter gerado em sua história tamanha distinção, mesmo tendo passado por momentos difíceis e até mesmo perdido muito da sua fleuma original nos modelos mais recentes.
Inegável que existe um esforço em preservar a força e tradição da marca, mesmo com a necessidade de adaptar seus produtos para aquilo que a realidade pedia ou a saúde financeira da empresa permitia, alguns conceitos sempre foram mantidos, como uma crença absoluta e irrefutável. A disposição dos instrumentos (sempre analógicos) no painel de instrumentos, o acerto da suspensão e o cuidado com o som que é produzido pelo escapamento foram sempre pontos de atenção dos projetistas.
Outra ação de sucesso para a sustentação do que representa ter um Alfa Romeo sempre foi executada com primor pela equipe de marketing da empresa, os temas das campanhas, slogans e material publicitário não amuavam, mesmo quando sua missão era promover um apático design ou um motor menos potente, as frases fortes, as cores e imagens de efeito estavam ali, presentes.
O tema utilizados por exemplo, para altear o lançamento do último Giulietta em 2010, foi simplesmente inspirado no texto de William Shakespeare “A Tempestade”. Uma de suas proposições mais famosas, atribuída à personagem Prospero, “Somos feitos da mesma matéria com a qual são construídos os sonhos”, foram adaptados com sabedoria nos comercias do novo modelo.
Outra frase forte: “Senza cuore saremmo solo macchine”, ou seja, “Sem coração seremos somente carros”, é fantasticamente briosa.
Além disso, vejo a Alfa Romeo como uma marca cordial, com poucas opiniões e críticas de desgosto. Mais ou menos como acontece com aqueles times de futebol menores, que tem poucos torcedores contra. Hoje a marca é simpática a muitos e ficou maior do que os produtos que conquistaram a honra de a ostentar.
Outro exemplo, a campanha de TV do Alfa Romeo 156 SW, estrelada por Catherine Zeta Jones no ano 2000, torna-se mais uma maneira de compreender até onde pode viajar a ousadia da divulgação dos produtos da casa. Após assistir a peça publicitária surge imediatamente a vontade de vivenciar a marca, a experiência passada pelo filme é insuportavelmente incomodante. Desejo é o nome do jogo.
Existe atualmente um plano para recuperar a antiga fleuma Alfa Romeo, e tenho que tirar o chapéu para esta iniciativa. Caso esta estratégia seja bem sucedida, teremos a casa de Arese como uma das grandes da história do automóvel, principalmente porque, mesmo sem manter todas as características mais desejadas e mais apreciadas pelos alfistas, a marca e a produção de veículos nunca foi interrompida.
A volta de motorizações exclusivas, o uso da tração traseira e a produção de modelos de alta gama estão nas pranchetas e planilhas de projetistas e financistas da marca, tentando resolver a equação de grau infinito de como atender aos desejos dos alfistas mais enlouquecidos sem quebrar a empresa que detém o nome Alfa Romeo, o grupo FCA – Fiat Chrysler Automobiles.
Os novos modelos precisam também ser competitivos em desempenho e em preço, além de atender às expectativas de quem está aguardando por um verdadeiro Alfa Romeo. Veremos o resultado em breve.
Imerso neste ambiente que embaralha paixão, sedução, engenharia, design, erros e acertos, estamos fechando a seqüência de matérias sobre o singelo modelo que pudemos conhecer nas últimas semanas, o Alfa 145 1996 que tive o prazer de conhecer e de poder dividir parte desta emoção com você, leitor.
Simples, é um carro simples quando comparado aos os outros modelos da casa automobilística que trabalha a paixão, o drama e o coração italiano como poucos. Mas é justamente no fato de ser simples que reside o grande barato de curti-lo. Ao chegar nesta opção de compra, exatamente dois anos atrás, eu tinha encontrado muito do que estava procurando em um carro para vivenciar intensamente a experiência de ser autoentusiasta.
Junto com o 145 vieram acessórios exclusivos, como a chance de ser chamado de alfista. Pude conhecer clubes e fóruns de discussão sobre o modelo e também sobre o universo Alfa Romeo em geral, tive vontade de ler mais sobre a marca e sua história. Pude conhecer pessoas incríveis que navegam nos oceanos alfista, inclusive o antigo (e único) proprietário anterior do meu 145.
Conhecê-lo foi uma experiência genial. Após eu descobrir que ele tinha o carro à venda fui conversar com ele e para minha surpresa o tom da conversa não foi o clássico vendedor versus comprador. Eu, como potencial comprador do carro deveria ter feito uma série de perguntas para o antigo dono do veículo, permitindo conhecer o histórico do carro, manutenção, problemas etc. Em vez disso me vi interrogado pelo alfista (que já havia sido também proprietário de dois Alfa 164), ele queria saber como eu tinha chegado até ele, quis conhecer o meu histórico como interessado em automóveis, queria detalhes de como eu iria usar o carro, perguntou que carros que eu tinha e que já havia dirigido, até que a certo momento ele me perguntou: “Sua intenção é de usar o Alfa para desfilar ou para ir ao trabalho?”.
Fui fiel à minha intenção e respondi que era para “desfilar”, senti que havia começado a ganhar a confiança dele. Ficamos então conversando do Alfa e do assunto automóvel por mais uma hora quando ele inesperadamente me avisa: “Na realidade o 145 não está à venda, eu estou procurando um comprador para ele.” Quase caí da cadeira.
Tive que voltar mais duas vezes para conversar com o nobre colega até que fui “aprovado” e acertamos o negócio, ele então avisou: “Agora que ele é seu, peço que cuide dele com carinho e mande notícias de vez em quando.” Tive a sensação de ter pedindo a mão da filha dele em casamento. Por fim ele me lembrou: “Um carro como este nunca se vende, se algum dia não tiver mais condições de continuar com ele, encontre alguém para comprá-lo de você.” No final acabei achando bacana aquela história e a novela toda.
O exemplar em questão estava na época com pouco mais de 70.000 km e uma condição de manutenção exemplar. Como a minha opção havia sido de colocar o 145 para desfilar e não para usá-lo no batente do dia a dia, apenas 5.000 km se passaram deste então, e neste período não precisei mais do que fazer uma boa revisão geral, trocando também as bronzinas fixas, velas (8 no total) e correias. Comprei ainda uma bateria nova e o filtro de ar de alta vazão, do qual já falamos aqui no Ae. O restante do sistema elétrico, hidráulico, freios e suspensão estão como vieram, sem dar dor de cabeça. Um pequeno furo em uma mangueira fazia baixar o nível da água de arrefecimento do motor e foi resolvido de modo improvisado com uma fita que assumiu o papel de conserto, mas me pede uma intervenção definitiva; entretanto, está atendendo a demanda muito bem, impedindo o vazamento. Em geral, descobri se um modelo como este foi bem cuidado pelo seu dono (ou donos) anterior, ajuda muito na preservação e manutenção longeva.
Estamos falando de 19 anos de estrada, mesmo a baixa quilometragem não evita o desgaste e o fim de vida de alguns componentes, o tempo se ocupa disso. Esta é a razão que se torna uma surpresa muito agradável dirigir o Alfa atualmente e observar seu funcionamento e entrega no prazer de condução, como se fosse novo, ou quase novo.
E para ser melhor ainda é um Alfa Romeo, mesmo sendo um dos mais simples e atualmente um dos carros legais mais acessíveis por aqui no Brasil, tem uma tradição a contar. O fato de usar uma plataforma comum com os veículos Fiat não desmerece o cuidado com que os seus projetistas se decidiram para o identificar como um veículo diferenciado. Em resumo, é uma baita de um carrinho bacana.
Outra motivação que me mantém no mundo dos entusiastas por automóveis é a chance de conversar sobre carros. Descobri nos últimos dois anos, que com o Alfa o interesse do grupo de conversa é sempre garantido, e a surpresa para os mais leigos quando você conta um detalhe específico que tem a assinatura da tradição da marca, é muito gratificante. São carros com pedigree.
Para gostar de ser alfista você tem que enveredar sobre outros contextos também, é como estar sempre preparando um relatório desta vivência, de modo contínuo, onde cada detalhe, cada minutaria associada à marca é uma fantástica desculpa para transformar o assunto em um tema maior. Um simples chaveiro vira um amuleto, uma camiseta vira um manto.
Todo este processo teve muito apoio das campanhas e estratégias de divulgação para a manutenção da marca de modo vivo e presente no imaginário dos apaixonados por carro. Podem até existir outros carros mais competentes, mas a maneira especial de se apresentar e de se sentir um Alfa Romeo sempre foi distinta. Para iniciados e os iniciantes, que serão contaminados.
Normalmente uma estratégia publicitária busca convencer o comprador da qualidade de um produto, textos e imagens que acompanham a descrição de suas virtudes, costumam ser apoiados com depoimentos de pessoas que demonstram, ainda que ficticiamente, a experiência de compra daquele item. Mas existe uma outra forma de promover um produto, aquela que prevê a associação da marca com um símbolo.
Esta forma poderosa de vender algo foi especialmente explorada por Leo Burnett, fundador da agência de publicidade que carrega o seu nome até os dias atuais. Obcecado pelo poder dos símbolos e também em encontrar gatilhos visuais que provocam uma fixação mais profunda da mensagem a ser enviada, Burnett costumava a dizer que o fato de uma mensagem passar superficialmente pelo nosso consciente não impede que ela seja subliminarmente aceita e registrada. “Nós absorvemos a mensagem através de nossos poros, por osmose, sem sabê-lo”, dizia ele.
A publicidade confia sempre mais e mais nas imagens. As imagens iludem a razão: eles não são argumentos, mas dardos disparados diretamente em nosso cérebro. Uma das campanhas mais bem sucedidas da Leo Burnett foi a do cigarro Marlboro, tornando-se um ícone da publicidade moderna. A campanha, que usou o homem de Marlboro como mote, não procurava convencer os benefícios de um produto, apenas despertava o desejo de desenvolver um estilo de vida, participar em um grupo e ser reconhecido. Burnett morreu em 1971, mas a agência foi em frente e hoje é uma dos maiores do mundo. Foi lá que nasceu o slogan atual da Alfa Romeo, “Senza cuore saremmo solo macchine“. É para refletir.
O cuore, cuore sportivo, o símbolo do coração, desenho clássico da grade frontal dos Alfa Romeo está ali incrustado no capô do 145 lá de casa, mas está também vivo em todos aqueles que de algum modo aproveitaram a desculpa de ter um automóvel para desenvolver um estilo de vida.
Já que disseram que ser alfista não é um passatempo, teremos que encontrar uma outra definição, mais séria e densa. Para nos ajudar existem muitos textos, livros, clubes e fóruns descrevendo o tema “ser alfista”, e como toda paixão existirão sempre vários pontos de vista sobre o mesmo princípio. Neste caso o de andar em um carro legal. E de carregar consigo uma tradição.
Convido o leitor interessado em pesquisar mais sobre os Alfa Romeo, aqui no Ae temos e sempre teremos mais a respeito. Pois também não estamos aqui por passatempo. Agradeço também ao leitor por ter acompanhado esta breve história do meu 145, contada em pequenos atos. Shakespeare com certeza faria melhor, mesmo assim espero que tenham gostado.
Conheci um alfista que me disse uma outra frase de efeito, e que quero dividir com você. Quando eu mostrei para ele o Alfa Romeo 145 na cor bianco Argento Metallizzato que acabara de comprar, ele proferiu: “Você não comprou um carro, encontrou um companheiro.”
Acreditem, é verdade. E é para gostar.
FM