Claudio Carsughi, 83 anos, italiano, engenheiro formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, jornalista — grande amigo, encontrei-o no evento de lançamento do novo Focus Fastback na cidade de Gramado (RS).
Jantamos juntos e tivemos a oportunidade de conversar bastante, rememorando o passado, quando eu, engenheiro da Ford, o recebia no Campo de Provas em Tatuí, no interior de São Paulo, para as apresentações dos novos veículos da marca. Eu na época fazia a interface entre a engenharia e a imprensa especializada. Foi uma época maravilhosa, na qual tivemos a oportunidade de entender e curtir os automóveis da década de 1990.
Entre vários papos, surgiu a pergunta por que a indústria automobilística não investe maciçamente em tecnologia de motores dois-tempos que são sabidamente mais eficientes e mais leves que os motores quatro-tempos
Vamos falar um pouco a respeito.
Podemos dividir os motores em duas grandes categorias, os do ciclo Otto, com ignição por centelha para dar inicio a reação de combustão, e os do ciclo Diesel, com ignição por compressão/temperatura. Dentro destas duas categorias, existem os motores de quatro tempos e os de dois tempos.
Os motores de quatro tempos apresentam 4 cursos, o primeiro curso, de admissão, o segundo, de compressão, o terceiro, de expansão que é o tempo útil de transformação da energia térmica em energia mecânica, e o quarto curso de escapamento, eliminando os resíduos da combustão. Estes quatro cursos são efetuados a cada duas voltas do virabrequim, ou 720°. Os ingleses e americanos os chamam de four-stroke engines, motores de quatro cursos; já alemães, franceses e italianos preferem ‘tempo’ em vez de ‘curso’: viertaktmotor, moteur à quattre temps e motore a quatro tempi, respectivamente.
Os motores de dois tempos apresentam o primeiro curso de admissão/compressão e o segundo curso de expansão e escapamento, simultaneamente. Estes dois cursos são efetuados a cada volta do virabrequim, ou 360°. Os ingleses e americanos os chamam de two-stroke engines, motores de dois cursos (zweitaktmotor, moteur à deux temps e motore a due tempi)
Pela própria configuração de projeto, os antigos motores de dois tempos trabalhavam com mistura muito rica de combustível, gerando queima incompleta e muita poluição, especialmente por hidrocabonetos. O óleo lubrificante era misturado diretamente ao combustível no tanque, normalmente gerando muita fumaça por excesso. Mais tarde, com a técnica de dosador de óleo incorporado à linha de combustível, a mistura seguia sempre na mesma proporção, reduzindo bastante a emissão de poluentes, porém ainda em níveis inaceitáveis para os padrões atuais.
Particularmente a alemã Auto Union, na décadas de 50 e 60, usou e abusou em seus veículos dos motores dois-tempos tricilíndricos de baixa cilindrada, normalmente entre 750 cm³ e 1000 cm³. No Brasil, a Vemag representou a marca, fabricando o DKW sedã e perua, o sedã Fissore, além do utilitário Candango, que na Alemanha se chamava Munga (sigla, em alemão, de veículo multiuso universal de tração nas quatro rodas para uso fora de estrada). A propaganda mais relevante era que o três cilindros dois-tempos equivaleria aos 6 cilindros quatro-tempos: 3=6. Isso porque nesses dois tipos de motor há um curso motor (ou tempo motor) a cada 120° de giro do virabrequim.
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Com a adoção da injeção direta de combustível, os motores dois-tempos ficaram muito melhores, se apresentando realmente como uma boa alternativa para os motores quatro-tempos.
Tanto é, que em parceria com a australiana Orbital Engine Corporation, a Ford instalou um motor 1,2-litro dois-tempos de três cilindros com injeção direta em um Ford Festiva no ano de 1992. A admissão de ar com óleo lubrificante pulverizado era feita pelo cárter. Existia também uma pequena bomba elétrica que transferia o excesso de óleo condensado no cárter para o seu tanque específico de armazenamento.
Esse motor gerava 19% mais potencia (90 cv) e 25% mais torque (12,7 m·kgf) que o motor original do Fiesta 1,3-litro de quatro cilindros e quatro tempos. Seu consumo de combustível também era significativamente menor em 15%.
Cem Ford Festiva foram cedidos para testes à entidades governamentais da Austrália, incluindo o departamento de polícia, que o aprovou. Por motivos que desconheço, o projeto foi abandonado pela Ford — provavelmente o investimento necessário para viabilizar o motor pesou na decisão.
A Ford chegou a instalar também o motor 2-tempos em um Fiesta que está preservado e exposto no Haynes International Motor Museum, na Inglaterra. O nosso amigo Bob Sharp chegou a dirigi-lo e fez uma reportagem a respeito quando ainda trabalhava na revista Quatro Rodas (ver matéria no Ae).
Fico pensando com meus botões em um motor 2-tempos ainda mais eficiente, com os seguintes detalhes construtivos:
– Carter úmido, com bomba de óleo lubrificante
– Mancais de biela e virabrequim roletados
– Injeção direta de combustível
– Compressor eletro-mecânico Roots na admissão de ar
– Válvula de escapamento com acionamento eletro-mecânico
– Válvula de fechamento do duto de escapamento para proporcionar freio-motor
– Catalisador instalado o mais perto possível do coletor de escapamento para melhor eficiência na neutralização dos gases
– Volante do do motor otimizado para menor inércia
– Motor todo em alumínio com nervuras estruturais para redução de massa
Essa construção, contudo, seria basicamente a mesma do antigo motor Diesel dois-tempos GM, com a diferença de a ignição ser por centelha e não por compressão.
A Toyota também fez um projeto de motor 2 tempos mais complexo, com válvulas de admissão e escapamento e também adotando o compressor tipo Roots para a admissão de ar, porém também não foi em frente. Mistérios da indústria automobilística… O curioso é que era um seis-cilindros em linha de 2 litros com duplo comando de válvulas, em que para “virar” um 2-tempos bastou tornar a rotação dos comandos de válvulas igual à do virabrequim — o normal nos 4-tempos é metade, como se sabe. O desenho abaixo mostra esse motor em corte, ao lado de um Orbital.
Enfim, está claro para mim que o desenvolvimento do motor a dois tempos somente traria benefícios em termos de tamanho, rendimento térmico e volumétrico e também rendimento mecânico e perdas por bombeamento. Com as técnicas modernas de gerenciamento eletrônico, os motores dois tempos poderiam facilmente serem viabilizados, com vantagens indiscutíveis.
Por minha vontade já estaria projetando um.
Espero encontrar-me novamente com o querido Claudio Carsughi para continuarmos este papo gostoso e muitos outros, obviamente dividindo-os com o leitor. Esse assunto de motor 2-tempos é mesmo apaixonante.
Hoje a homenagem vai merecidamente para a Auto Union e sua marca DKW, incorporada ao grupo VW em 1965.
CM