Publieditorial: saiba sobre essa ação.
Era uma bela manhã de verão em Paris, e o sol distribuía seus raios ainda fracos pelas ruas da cidade-luz. O dia acordava preguiçoso no bairro de Montmartre, famoso por ser então lar da boêmia parisiense, e local de morada de um sem-fim de artistas destinados a fama eterna. Corria o ano de 1890, bem no meio de uma época que se convencionou chamar de bela (La Belle Époque), onde a paz, prosperidade e grandes avanços tecnológicos viviam lado a lado com o aparecimento obras-primas da literatura, pintura e música. Paris era a capital do mundo na Belle Époque, e em nenhum lugar ela era mais viva do que em Montmartre.
Na Rue des Clöys, onde hoje existe um parque com seu nome, existia então o galpão/fábrica de León Serpollet, grande pioneiro do automóvel que criava carruagens a vapor avançadas, uma a uma, sob encomenda de clientes. Naquela bela manhã seus funcionários abriam as portas do galpão e conversavam tranqüilamente enquanto fumavam seus cigarros e arrumavam a oficina para começar o dia de trabalho, naquela bagunça barulhenta, alegre e sonora que, na suave língua francesa, apenas dava música ao ainda sonolento bairro boêmio.
Dali a pouco uma figura conhecida dos funcionários de Serpollet aparece. O menino não podia ter muito mais que dez anos de idade, e era extremamente tímido, mas todo santo dia daquele mês de férias escolares aparecia por ali para ver o trabalho avançar em um dos mais novos e modernos automóveis do mundo de então. Com o tempo, acabava ajudando os funcionários com trabalhos pequenos. Limpar chão, trazer uma ferramenta, acender mais um Gauloises, coisa assim. Mas aquele dia seria diferente. Os funcionários avisam o menino logo na sua chegada que o patrão quer vê-lo em seu escritório; estava intrigado com a presença constante do infante. Titubeante, o menino vai ao encontro do criador daquelas máquinas tão incríveis que o fascinavam profundamente.
Serpollet queria saber o que desejava o menino que aparecia todo dia sem ser chamado. A resposta foi clara e inequívoca: andar em uma das maravilhosas máquinas que eram construídas ali. Serpollet, uma pessoa agradável e solícita, fita o menino longamente em silêncio do outro lado da mesa. Depois do que pareceu ser um século para o pobre rapaz, abre um largo sorriso e diz: por que não disse antes? Vamos já resolver isso!
O menino mal podia acreditar naquilo. Aboletado ao lado de Serpollet, sentia uma emoção que nunca tinha conhecido. O veículo se movia como se fosse mágica, vibrando, chiando, rangendo, parecendo algo vivo. O barulho, o vento na cara, o impossível heroísmo do homem operando alavancas e pedais com uma destreza estranha, mas que efetivamente o colocava em controle total daquele enorme leviatã a vapor, o deixam pasmo, em silêncio completo. E a velocidade! A maior lembrança do menino deste evento foi a incrível, impossível, atordoante velocidade com a qual seu novo herói conduzia aquela traquitana magnífica pelos bulevares parisienses. Homens paravam pasmos, mulheres levavam a mão à boca, crianças se agarravam às saias de suas mamães assustadas, cachorros latiam. O futuro chegava de forma inequívoca, barulhenta, definitiva. E era um futuro veloz, corajoso e indomável! O menino mal podia acreditar naquilo tudo, e quase sem palavras tentava absorver todo aquele turbilhão de novas emoções.
Decidiu ali mesmo, inequívoca e definitivamente, que dedicaria a sua vida àquela estranha máquina. Seu talento nato para mecânica recebia ali, na tenra idade de 13 anos, o impulso que faltava. Não sabia ali exatamente como, mas sabia que tinha descoberto ali, ao andar naquele incrível “auto-móvel”, o que todos buscam por vidas inteiras, muitas vezes sem sucesso: um sentido para a vida. Um propósito maior. Uma vocação.
E quem era este menino, e porque falamos dele 125 anos depois deste dia incrível? O menino de olhos abertos e modos tímidos que chamou a atenção de Serpollet se tornaria um dos maiores industriais da França em pouco tempo.
Seu nome era Louis Renault.
O início
Louis Renault era filho de uma família de fabricantes de cortinas, que se mudara para Billancourt, em Paris, para abrir uma fábrica de botões. Louis era o irmão do meio de uma prole de sete, e nunca foi um dos mais queridos por seus pais; tímido, quieto e freqüentemente desmontando coisas, ia mal na escola, e parecia não ter futuro algum. Cedo mostrou aptidão pela mecânica, porém, e logo tomou para si uma oficina existente no fundo da propriedade onde morava a família, e lá passava maior parte de seu tempo, criando máquinas variadas ou consertando algo.
Acabou por arrumar trabalho em uma fábrica de máquinas a vapor, como aprendiz. Logo depois de cumprir seu serviço militar obrigatório, resolve juntar todo seu dinheiro e comprar um dos triciclos do Marquês De Dion. Depois de andar um pouco com ele, resolve modificá-lo, e começa a trabalhar em sua oficina. Cria, trabalhando completamente sozinho, um pequeno carro de dois lugares usando o motor do triciclo e uma nova transmissão muito parecida com as atuais, de três marchas e cardã, com terceira direta. Num tempo em que a maioria usava motor traseiro e transmissões ineficientes, Renault fez, como Panhard, um carro de motor dianteiro e tração traseira. A única diferença em relação a Panhard era o radiador atrás do motor, o que se tornaria tradição sua, abandonada somente nos anos 1930. O pequeno carro era leve e ágil, feito com peças de bicicleta, e sua transmissão era silenciosa e eficiente.
Seus irmãos mais velhos, Marcel e Fernand, que desde a morte do pai em 1891 comandavam a fábrica de botões, andam com o carro de Louis e ficam positivamente impressionados. Logo, alguns amigos deles pedem cópias, e a Renault como empresa começa a engatinhar. Marcel e Fernand concluem que seria um bom negócio investir naquilo, e assim, em 1899, é incorporada a Société Renault Frères (Sociedade Irmãos Renault), com os três como sócios igualitários.
O crescimento constante que se seguiu da empresa se deve basicamente a dois fatores. O primeiro, sua participação ativa, e de sucesso, nas competições de velocidade épicas que marcaram o início do automóvel na França, de longe o mais avançado país neste campo àquela época. E segundo, a habilidade técnica de Louis Renault. Deixando a administração com seus irmãos, Louis vivia no chão da fábrica de jaleco, trabalhando incansavelmente com seus mecânicos. Era lendária sua capacidade de, sem calcular, prever instintivamente uma falha. Segurava peças nos dedos das mãos e dizia: vai quebrar aqui. Diz a lenda que era uma previsão infalível.
Mas foi em nas famosas competições entre cidades que conseguiu fama para sua marca. Renault se especializou em veículos pequenos, e portanto corria nas categorias de veículos “leves” inicialmente. Mas focando em eficiência e na relação peso-potência ao invés de apenas potência como alguns rivais, chegou a obter vitórias expressivas.
Estar corridas entre cidades são um capítulo à parte. Eram realizadas em estradas públicas que até ali só serviam para cavalos, e nenhuma pavimentação. Como se estendiam por centenas de quilômetros, os competidores dividiam a pista com fazendeiros e suas carroças, crianças e animais de todas as espécies. Eram eventos grandiosos, fartamente cobertos pela imprensa mundial, e que sempre traziam multidões de espectadores.
As velocidades aumentavam exponencialmente; na última e fatídica Paris-Madri de 1903 os carros atingiam 160 km/h, o que era uma fábula, e para a qual os freios e pneus (tecnologias então em sua infância) eram ridiculamente inadequados. Os pilotos, além de imensa coragem, tinham que ter enorme forma física e resistência. Por centenas de quilômetros eram castigados por estradas terríveis e veículos arcaicos, duros de suspensão e pesadíssimos de comandos. Somado a isto, os riscos de acidentes eram enormes: nas ultrapassagens, devido à nuvem de poeira levantada pelo carro da frente, ficava-se temporariamente cego. Isso sem contar com espectadores mais malucos que os das provas do Campeonato Mundial de Rali em Portugal, e vacas e cavalos desacostumados a veículos que andavam dez vezes mais rápido que qualquer outra coisa já vista.
E se no futebol um pênalti é tão importante que deveria ser batido pelo presidente do clube, estas corridas eram tão importantes para as vendas, e tão famosas, que os principais pilotos da Renault eram dois de seus donos: Marcel e Louis. Marcel era o mais rápido, mas Louis tinha uma grande vantagem naquele tipo de competição: quebras eram constantes e ele sabia como ninguém reparar seus carros. O mecânico de bordo era na verdade apenas um ajudante.
Inicialmente estas corridas eram dentro da França como a Paris-Bordeux, mas logo, devido a seu sucesso e do entusiasmo mundial que geravam, começaram a atravessar fronteiras. Em 1902, Marcel vence a maior delas até então, a Paris-Viena, uma maratona incrível por quase 1.000 quilômetros, a uma média de 62 km/h. Nas retas, velocidades de até 140 km/h foram alcançadas. Marcel foi recebido por uma multidão em Viena, que o tratou como um herói.
Mas a quantidade de acidentes e mortes era também incrível. Logo aparecia um forte movimento contra as corridas, gente que começou a pensar que talvez não fosse uma boa idéia colocar carros de competição nas estradas públicas junto com a população.
No ano seguinte, com carros ainda mais potentes, se preparava o que seria a maior de todas as corridas desta era épica, de Paris a Madri, na Espanha. Louis Renault, aproveitando a maré de incrível sucesso criada pela vitória de Marcel em Viena, prepara um novo carro de corrida, agora capaz de passar de 160 km/h.
Mas esta prova, uma das mais sangrentas da história, estaria fadada a ser a última de seu tipo. A fama deste tipo de competição estava em seu auge, fazendo que milhares de espectadores se amontoassem por todo o percurso, com resultados terríveis. A corrida seria encerrada prematuramente no final do primeiro trecho, antes de entrar em território espanhol, por um governo francês atordoado com tantas mortes.
Louis Renault estava se saindo melhor que Marcel nela, chegando antes dele em Bordeaux. Na verdade, estava em segundo lugar na colocação geral, e com grandes chances de vitória. Mas o que ele não sabia era que seu irmão mais velho, ao realizar uma ultrapassagem dentro da usual nuvem de poeira de seu oponente, não viu uma curva chegar, e acertou uma vala a mais de 100 km/h. Seu Renault deu uma volta completa no ar, de frente, antes de cair de cabeça para baixo, com Marcel ainda ao volante. Morreu algumas horas depois, ali mesmo na beira da estrada.
Louis fica arrasado. Apesar da Renault ainda competir (essencial então), Louis nunca mais pilota um carro de corrida. As competições mudam para pistas fechadas ao tráfego, se tornando mais seguras, mas a morte de Marcel muda Louis para sempre. O torna mais amargo, sem estômago para futilidades, e muito do entusiasmo do menino se vai. Se concentra no trabalho, na sua fábrica, em seus tornos e seus métodos, e longe da emoção da velocidade que o tinha atraído ao automóvel, lá no início, um menino aboletado em uma carruagem a vapor pelas ruas de Paris.
Um fim triste
Para surpresa de Louis, depois da morte do irmão ele descobre que este, numa reviravolta bem francesa, tinha deixado todos os seus bens para sua amante! Louis, o técnico de unhas pretas de graxa, o homem que pouco sabia sobre administrar empresas, muda. Resolve que a Renault, o trabalho de sua vida, não pode ser controlada por ninguém além dele mesmo. Fernand, o outro irmão, doente, vem a falecer em 1909, e Louis compra a sua parte no negócio.
A “viúva” de Marcel parecia mais difícil. Mas, convencida de que o negócio de automóveis não era para ela, e provavelmente não seria muito rentável, troca suas ações por uma pensão vitalícia generosa e um carro Renault novo todo ano. Louis era agora o único dono da fábrica de automóveis que leva o seu nome. Para indicar a mudança, a razão social muda para Société des Automobiles Renault.
Anos e anos de prosperidade se seguem. Em pouco tempo a Renault se torna a marca mais vendida na França. Louis nunca tomou dinheiro emprestado de bancos durante sua vida, e reinvestiu todo lucro na própria empresa, que portanto crescia exponencialmente. Sem muito interesse em qualquer outra coisa, era um homem dedicado ao trabalho e quase recluso. Casou-se com mais de 40 anos, e teve apenas um filho, tarde na vida.
Durante a Primeira Guerra Mundial criou e fabricou um tanque leve para duas pessoas que foi uma grande arma para o país, tendo sido fabricado aos milhares. Os táxis de Paris, todos Renault de dois cilindros, seriam usados para mover tropas de Paris ao front rapidamente durante a batalha do Marne, feito que os tornou famosos.
Quando chegamos aos anos 1930, a França está em meio a grande tumulto político e social. Louis Renault era um dos maiores industriais do país e, portanto, suas empresas são alvo de várias greves e tumultos. Trata as manifestações de forma dura, demite pessoas, faz várias inimizades. Sem muito tato político como sempre (não entendia de política, e nem queria entender), não faz muitos amigos nem à esquerda, nem à direita. Em pouco tempo, outra guerra mundial, derrota e ocupação alemã da França.
O que se segue é uma fase complicada da história do país. Parte da população, a politicamente engajada principalmente, vai para a clandestinidade e forma a Resistência Francesa, com viés fortemente comunista. Militares como o general Charles de Gaulle vão para o exílio, de onde comandam a “França Livre”, compondo com tropas aliadas a continuação da luta. Mas o resto da população do país, sua vasta maioria na verdade, segue vivendo o melhor que pode, trabalhando como sempre fez, mesmo sob o jugo de uma nação invasora. Impotentes para fazer algo, e com família, amigos e empregos para cuidar, seguem sua vida do jeito que podem, subjugados por fatos fora de seu controle. Esta população, depois de sobreviver ao domínio alemão, passaria o resto da vida sobre o estigma de traidora da pátria. Uma grande injustiça, se alguém perguntar.
Louis Renault tratou a ocupação de forma pragmática, como fazia com tudo em sua vida. Manteve empregos e sua fábrica trabalhando, e tocou sua vida. Negou-se a fabricar tanques para os alemães, mas teve que ceder em produzir caminhões. Como todo francês, odiava os alemães invasores, os “Boches” malditos, mas obviamente tinha que acatar suas ordens. Quando depois da guerra o acusaram de vender caminhões para os alemães, deu uma resposta que ficou famosa: “Claro que vendi! Você queria o quê, que os desse ao Boches de presente?”.
Com a libertação da França em 1944, De Gaulle e a Resistência, vitoriosos, tinham pouca simpatia pelos empresários “colaboradores”. Se dependesse do velho General, eram traidores da pátria, e pronto. Ao enfrentar uma comitiva deles que veio reclamar do tratamento que recebiam do novo governo, De Gaulle disse: “Não me lembro de ver nenhum de vocês em Londres. E vejo que nenhum de vocês está na cadeia. Então o que mais querem?”.
O resultado é que, como bode expiatório desta época triste, Louis Renault foi preso como colaboracionista. Renault achava que não tinha feito nada errado, e, portanto, não fugiu como tantos outros em situação similar (para depois voltar quando os ânimos se acalmaram), e esperava ser julgado e absolvido. Mas ao invés disso, é maltratado por seus carcereiros impiedosamente, e morre na cadeia, antes do fim de 1944. Ao final de uma guerra como aquela, vingança, por mais mal aplicada que fosse, estava acima da justiça, e muitos tiveram fim parecido.
Bem no começo de 1945, suas empresas passaram sumariamente ao controle estatal, sem que um centavo fosse pago a seus herdeiros. Um triste fim para Louis Renault, mais uma vítima de um conflito terrível e injusto que mudou o mundo de forma definitiva.
A Régie Renault
Para a agora estatal Régie Nationale des Usines Renault, ou Direção Nacional das Fábricas Renault, é apontado um líder com credenciais impecáveis: Pierre Lefaucheux. Condecorado com a Croix de Guerre na Primeira Guerra Mundial, com experiência empresarial em postos de diretoria depois do conflito, e um membro ativo da Resistência durante a Segunda Guerra Mundial, Lefaucheux era perfeito para o cargo.
Logo depois de tomar posse descobriu um presente deixado por Louis Renault: em completo segredo dos alemães, tinha desenvolvido um novo e diferente Renault para o pós-guerra. Um carro compacto e barato, com motor traseiro de quatro cilindros em linha e apenas 760 cm³ (depois 747 cm³), que viria a transformar a empresa. Lançado em 1946 com o nome de Renault 4CV, era um feito de ocupação eficiente de espaço. Foi um carro de imenso sucesso, que vendeu em grandes quantidades — 1.105.547 unidades — até seu fim em 1961. Foi importado para o Brasil a partir de 1948, foi um sucesso e aqui ganhou o apelido de “Rabo Quente”, devido à inusitada localização do motor. Uma fase longa de carros de motor traseiro hoje lendários começou com o 4CV.
O 4CV também inaugurou uma marca que está ligada intimamente à Renault: a Alpine. Jean Rédélé era um dono de concessionária da marca em Dieppe, envolvido também em competições. Foi um dos primeiros a preparar 4CV para corrida, o que evoluiu para criar cupês mais leves, câmbios especiais de cinco marchas (o 4CV original tinha três), e um sem-fim de modificações variadas. Em 1955 lança um cupê esportivo com carroceria de plástico reforçada com fibra de vidro baseado no pequeno Renault chamado A106, e com ele nasce a marca Alpine.
Lefaucheux foi figura importante para a Renault naquela época. Tinha cachê político, era um administrador eficiente, e um ávido motorista. Simplesmente ignorou as ordens do governo, que pretendendo controlar a economia, determinara que a Renault deveria produzir apenas caminhões. Assim, selou um futuro bem mais próspero para a estatal do que planejava o seu governo. Uma estatal bem administrada parece sonho, não?
Mas talvez a maior e mais desconhecida contribuição da Renault para a história do automóvel francês veio na administração de Lefaucheux: cor. Até os anos 50, as cores externas e internas dos carros franceses eram um festival de cinzas tão absoluto que deprimiria até um brasileiro, acostumado que é a estacionamentos totalmente monocromáticos. Lefaucheux, influenciado pelos americanos e por pesquisas de mercado, resolve mudar isso. Era inaceitável que um país tão influente em moda e arte tivesse carros tão insossos!
A artista Paule Marrot, famosa por suas estampas florais, manda uma carta para o presidente da Renault reclamando que os carros em Paris pareciam um cotejo fúnebre, e se oferecendo para ajudar a mudar isso. Sentindo uma grande chance, Lefaucheux contrata Marrot, e com ela cria o primeiro departamento de cor e tecidos da empresa. Se hoje temos o colorido francês para quebrar a monotonia do prata e do preto de vez em quando, devemos isto à Renault. E a Pierre Lefaucheux.
Dauphine, Gordini e os anos 1960
O sucessor colorido do 4CV desenvolvido por Lefaucheux é um velho conhecido nosso: o Dauphine, lançado em 1957. Um carro verdadeiramente mundial, globalizado, muito antes de estas bonitas palavras serem cunhadas: foi fabricado no Brasil pela Willys-Overland, na Argentina pela IKA (Indústrias Kaiser de Argentina), na Itália pela Alfa Romeo, e em muitos lugares mais. Vendeu bem inclusive nos Estados Unidos, mercado normalmente avesso a carros pequenos.
Lefaucheux não viu seu lançamento, porém: em 1955, dirigindo seu Renault Frégate para um compromisso profissional em Estrasburgo, sofre um acidente, o carro capota. Não foi um acidente que o machucaria demais, mas sua pesada valise, deixada no banco traseiro, atinge sua cabeça em cheio por trás, matando-o imediatamente.
O Dauphine marca também o início da colaboração com uma marca famosa: Gordini. O italiano Amedeo Gordini, radicado na França desde os anos 30 (onde mudou seu primeiro nome para o afrancesado “Amédée”) era um preparador famoso, conhecido como “Le Sorcier” (o feiticeiro). Em 1946, começa a fazer carros de Fórmula 1 e 2 com sua marca. Dez anos depois, em 1957, desiste definitivamente desta atividade pouco lucrativa, e firma um contrato para desenvolver versões mais potentes dos Renault. O primeiro fruto desta colaboração foi o Dauphine Gordini de 1958. Imediato sucesso de vendas, certamente por aumentar de 26 para 32 cv a potência do pequeno carrinho, mais um novo câmbio de quatro marchas, tornando-o muito mais agradável de dirigir. Em seguida veio o 1093, versão esportivada do Dauphine Gordini, uma versão preparada de fábrica com o mesmo motor de 845 cm³ que desenvolvia 42 cv.
No Brasil, a Willys-Overland começou a produzir o Dauphine sob licença em 1959 e o Dauphine Gordini (aqui perderia o nome Dauphine) em 1962; em 1964 era a vez do 1093.
Em Dieppe, a Alpine também aproveitou o ensejo e lançou seu novo A108, um belíssimo cupê baseado no Dauphine e desenhado por carrozziere italiano Giovanni Michelotti, que foi fabricado no Brasil pela Willys-Overland, com o nome de Willys Interlagos, de 1962 a 1966.
Se segue uma era de grandes avanços para o entusiasta na marca de Billancourt. Em 1962 aparece o sucessor do Dauphine, o R8, com desenho mais reto que o arredondadíssimo predecessor. Baseado na arquitetura de motor traseiro já tradicional então na marca, mas com um novo e maior motor traseiro, agora partindo de 956 cm³, com cinco mancais de apoio do virabrequim vez dos três de antes. Era também inovador em trazer freios a disco nas quatro rodas.
Sua versão Gordini era realmente sensacional: um cabeçote de fluxo cruzado, hemisférico, e dois carburadores Solex de corpo duplo, faziam o pequeno motor rugir forte. Eram nada menos que 90 cv a partir de apenas 1,1 litro, o que num carro que pesava apenas 850 kg era algo bem sério. Em 1967, passava para 1.255 cm³ e carburadores Weber no lugar dos Solex, para nada menos que 100 cv.
A Alpine alterou mecanicamente seu A108 para receber a mecânica do R8 Gordini; isto e mais um pequeno face-lift foram suficiente para criar o mais lendário Alpine de toda a história: o A110. Um grande carro de rali, e um anão matador de gigantes da melhor espécie. Teve longa vida, e uma série de motores Renault-Gordini ardidíssimos, culminando nos 1600S de 140 cv dos anos 70.
Em 1968, Amédée Gordini resolve se aposentar e vende 70% de sua empresa para a Renault. A nova Renault-Gordini se torna a divisão esportiva e de competições da empresa. Em 1973, a Alpine também passa a fazer parte da Renault, e, em 1976, as duas se juntam para formar a hoje famosa divisão Renault Sport.
De trás para frente: R16
A Renault nos anos 1960, apesar de estatal, era uma empresa empenhada fortemente em tecnologia. Além da forte presença em competições via Gordini e Alpine, também inovava em todos os outros campos. Sua pesquisa em descrição matemática de superfícies complexas de carroceria, publicada em 1968 por Pierre Bézier, já descreve um futuro hoje presente onde o computador está na criação de carrocerias desde o Design até a produção. Todo software de superfície usado até hoje usa como base as “Curvas de Bézier”.
Em 1961, para surpresa de todos que imaginavam a empresa fixada no motor traseiro, a Renault lança o R4, também conhecido como 4L, um carro pequeno de tração dianteira super-espartano, criado para combater o Citroën 2CV. Como seu nemesis do cais de Javel, teve vida muito longa, sendo produzido até 1992. Foi o primeiro carro do mundo com sistema de arrefecimento selado. Em 1965, a Renault surpreende novamente substituindo seu convencional Frégate por um carro extremamente original. O R16 tinha um motor central-dianteiro e tração dianteira, nos moldes dos Citroën. Mas era diferente deles também: o motor e o câmbio eram todos em alumínio, e o ventilador do radiador era elétrico, grande novidade então.
Mas a maior inovação estava na carroceria. Ao invés do tradicional sedã, onipresente na categoria, a Renault aproveitou que o motor e o câmbio estavam lá na frente para aproveitar o espaço lá atrás: colocou uma quinta porta na traseira do carro, e assim criou o primeiro hatchback moderno. Uma empresa especialista em motor traseiro foi necessária para finalmente usar totalmente as vantagens do motor e tração dianteiros. Nem Lefebvre na Citroën, nem Sir Alec Issigonis na British Motor Corporation, tiveram esta óbvia idéia, olhando em retrospectiva.
O substituto do R8 também teria tração dianteira, mas estranhamente no esquema “Audi”, de motor longitudinal à frente do eixo motriz dianteiro. Lançado em 1969, se chamou R12, mas nós o conhecemos aqui no Brasil como Ford Corcel, mas de linhas bem diferentes, entretanto. Popular e longevo também na Argentina, o Renault 12 seria o único carro produzido pela estatal romena Dacia por décadas, sob licença, até a Renault adquirir a empresa em 1998.
Os anos 1970/80
Em 1972, a Renault lança outro carro importantíssimo: o R5. Um carro pequeno, hatchback, nos moldes do R4/ R16, usando inclusive o seu esquema mecânico de motor central-dianteiro e tração dianteira. O timing não podia ser melhor: nas vésperas da maior crise do petróleo que o mundo já viu. O R5, um moderníssimo, econômico e espaçoso carro pequeno, foi um sucesso imenso.
Uma versão deste pequeno carro está para sempre impressa na mente do entusiasta: o R5 Turbo. Uma homologação especial no Grupo B para disputar os ralis do campeonato mundial, o carro tinha o motor Gordini de fluxo cruzado, com turbocompressor, no lugar onde normalmente ficava o banco traseiro, e tração traseira. Um psicodélico e maravilhoso carro de corrida que conseguiu chegar às ruas.
Os anos 1970/80 marcam também o início da controversa volta aos EUA, junto com a AMC (American Motors Corporation), parceira de longa data em joint-ventures diversas (inclusive na Argentina, onde o Rambler American se tornou o Torino, um Renault em seus últimos anos). A Renault acaba por adquirir o controle da empresa americana em 1980, e com ela a preciosa marca Jeep. Mas em 1987, pressionada pela opinião pública francesa preocupada com uma estatal sustentando uma deficitária subsidiária americana, vende a marca para a Chrysler. François Castaing, um francês que veio da Renault, fica e se torna instrumental no renascimento da Chrysler nos anos 1990.
Os anos 70 também marcam uma colaboração com a Peugeot e a Volvo, que geram o famoso motor V-6 “PRV” (Peugeot-Renault-Volvo), uma avançada unidade toda de alumínio que por muito tempo equipou os topo de linha das três marcas. Os Alpine A310 e A610, substitutos do A110, também usaram várias versões do motor (inclusive turbo), além de, claro, ser equipamento básico do DeLorean DMC-12, imortalizado por aquela série de filmes que todos conhecem.
A Renault também faz um retorno triunfal à Fórmula 1, usando motores de apenas 1,5 litro e turbocompressor, mudando totalmente a face da categoria. A turbomania do início dos anos 1980 é de muitas formas influenciada por Billancourt, que cria versões turbo para quase todos os seus carros.[
Em 1984, outra revolução da Renault: o Espace. Criando um furgão (van) de passageiros baseando-o num automóvel, e com seu desempenho e economia a Renault criou um tipo de veículo de grande originalidade, grande sucesso, incrível influência na indústria. E que é o símbolo do carro familiar da década seguinte.
Os anos 1990
Em 1987, Patrick Le Quément já era um designer de sucesso. Na Ford européia tinha criado, com ajuda política de Bob Lutz, o famoso e iconoclasta Sierra, de 1982. Depois disso passou um tempo nos estúdios da empresa nos EUA, e retornou à Europa para trabalhar na VW em Wolfsburg.
O novo presidente da Renault (depois do assassinato de Georges Besse por um grupo terrorista) era Raymond Lévy, que procurava, depois dos violentos cortes de custos de seu antecessor, dar mais vida à linha de produtos da companhia. Lévy tinha esta idéia fixa de que o design francês, criado por franceses, era o que a companhia precisava. Procurou o mais famoso designer francês de então, justamente Patrick Le Quément. Fez a ele uma proposta irrecusável financeiramente para liderar o design da companhia.
Mas Le Quément não aceitou de início. Disse que compartilhava com o sentimento do presidente, mas para efetivar tal coisa precisava de liberdade absoluta. Precisava que o departamento de Design respondesse não à engenharia, mas somente ao executivo-chefe, Lévy. O departamento deveria crescer muito, também, quase o dobro do tamanho de então. Só iria assim. E foi.
O resultado foi uma das fases mais criativas de design na história recente. O Twingo de 1992 foi uma obra genial, um verdadeiro marco do carro pequeno, que vendeu 2,4 milhões de unidades, e que até hoje influencia a concorrência. O Scénic de 1996, uma minivan ainda mais míni, mas moderna e com bancos removíveis, outra sacada genial de imenso sucesso. A dupla Avantime/Vel Satis, apesar de não ter tanto sucesso, são carros extremamente originais, e futuros clássicos. Mégane, Kangoo, Laguna: a Renault de Le Quément não dava uma bola fora sequer.
O Clio, de 1990, foi um substituto a altura do Renalt 5, se tornando um modelo de longa vida e imenso sucesso. Sua versão esportiva “Williams”, em alusão ào fornecimento de motores para a equipe de F1, se mostrou um dos mais fantásticos carros esporte fantasiados de hatch pequeno. Uma linhagem que permanece até hoje, e em breve deve vir ao Brasil com o Sandero R.S.
Como se isto não bastasse, no início dos anos 2000, a Renault dá um presente ao entusiasta: O Clio V-6 Renault Sport. Uma volta ao passado e ao R5 turbo de motor central-traseiro, só que desta vez com um V-6 aspirado no lugar do 4-cilindros turbo.
Os anos 1990 marcaram também o fim do longo período estatal, quando em 1996 a empresa foi privatizada. Vem a era do brasileiro Carlos Ghosn, que moderniza e a torna rentável como nunca havia sido antes. Não satisfeito com isso, sela uma aliança com a Nissan (e a compra da Dacia) em 1999, torna-se presidente da Nissan, a conserta também, se tornando até herói de mangá no processo. Volta para a França para ser presidente da Aliança, onde está até hoje.
E assim, ainda criativa em seus produtos, próspera e bem administrada, com uma sólida e bem costurada aliança com a Nissan, a Renault chega aos dias de hoje. Uma longa trajetória, cheia de drama e tragédia, mas com final feliz.
Hoje
A Alpine parou de fazer carros esporte em 1995, mas da antiga fábrica em Dieppe hoje saem os Renault R.S., carros como o incrível Mégane R.S. amarelo que você já viu aqui no Ae. Há ainda o motores Renault na Fórmula 1 de hoje, 110 anos depois de um orgulhoso Louis Renault estrear seu bólido de Grand Prix. A tradição entusiasta da marca perdura, como sempre fez.
Todos sabem que a Renault-Nissan é um dos maiores fabricantes do mundo, mas o que interessa aqui é que ela sempre foi, no seu âmago, uma empresa de gente apaixonada por carros. Cheinha de entusiastas. Gente que entende e ama o automóvel. Desde antes do seu início, lá em 1890, com aquele garoto de 13 anos.
E é por isso que toda vez que um A110 dá seu berro frenético, toda vez que um entusiasta qualquer mundo afora tira seu Mégane R.S. da garagem para um passeio, toda vez que um R5 Turbo ataca uma floresta em fúria, toda vez que um carro de Fórmula 1 entra na pista com um motor Renault, gosto de imaginar que em algum lugar metafísico qualquer deste ou de outro mundo, um certo garoto parisiense de 13 anos de idade, olhando tudo de posição avantajada, sorri.
E nós, seus irmãos em espírito, sorrimos juntos. E que continue assim para sempre!
MAO