Isso foi em 1979, num mês de agosto, em pleno inverno na Patagônia argentina.
Havia três anos que eu cantava meus pais para irmos para San Martin de Los Andes, uma pequena cidade que eu conhecera por acaso, após a indicação de uma amiga argentina. Estávamos em Buenos Aires, ela falou que lá era legal, peguei o primeiro trem e fui. Fica nas cercanias de Bariloche. Adorei, uma porque aprendi a esquiar na neve, e outra porque aquela região nos proporciona visões de horizontes longínquos como eles só.
Meus pais estavam cansados e insisti com eles que aqueles ares do Sul lhes fariam bem. Fomos os cinco. Meus pais, minha irmã, meu irmão e eu. Voamos direto para Bariloche e após um dia ou dois meus pais e minha irmã pegaram cedo um ônibus para San Martin de Los Andes, enquanto meu irmão e eu pegamos um Renault 12 alugado, o enchemos com malas no porta-malas e banco traseiro, tudo entupido, mais os esquis no bagageiro da capota, e tocamos também para lá. O “Renô Doce”, como os argentinos dizem, era vermelho, tinha pneus para neve na dianteira e, felizmente, tinha um farto ar-quente que aconchegava a cabine. Foi arriado.
Para quem não o conhece, basta que imagine algo parecido com um Ford Corcel I, mas só que feio, bem feio mesmo, com quatro portas também, e esse é o Renô Doce. A mecânica e o comportamento são praticamente os mesmos. É praticamente o mesmo carro, mas com carroceria diferente. O projeto é da Renault em parceria com a Willys-Overland, mas quando a Ford assumiu o controle da Willys-Overland brasileira em 1967 o projeto de um carro médio executado pela Renault, com modificações no estilo, já estava adiantado, não tinha como ser sustado. Isso mais o fato de a Ford querer mesmo um carro daquele porte, que ainda não tinha. Assumiu o projeto, deu-lhe o nome de Corcel e colocou o emblema da Ford. O nome Corcel I nunca existiu. Era só Corcel, acho que para meter em nossas cabeças-moles que aquele carro tinha alguma coisa a ver com o estiloso e potente Ford Mustang. Passaram, informalmente, a chamá-lo de Corcel I só quando chegou o Corcel II em 1977. Na Argentina a Renault o fabricou como era na Europa: Renault 12, vulgo Renô Doce. E que foi lançado depois do Corcel.
Fui guiando, claro. Tudo meio desértico ao redor. Uma imensidão seca tipo filme de cowboy. E diante de nós aquela estrada que sumia lá longe no horizonte. Carro alugado é como se fosse meu: lenha. Sua 4ª e última marcha era curta, assim como é a do Corcel I, então naquelas gostosíssimas estradas asfaltadas e desertas da Patagônia, com longas retas e curvas abertas, ele ia o tempo todo próximo à sua velocidade máxima numa gritaria danada de motor, coisa de uns 140 km/h. Esse motor é mais próprio para jipes: bom em baixa, mas que não se dá bem em alta, não tem fôlego. É estrepitoso em alta. Azar o dele. Que reclame. Lenha.
San Martin fica ao norte de Bariloche. A idéia inicial era seguirmos o caminho-padrão, que é ir para o norte pela estrada de asfalto que vai a Buenos Aires, tendo a Cordilheira dos Andes à nossa esquerda, e depois de uns 180 quilômetros viraríamos à esquerda, pegando outra estrada asfaltada, para irmos em direção à cordilheira. E assim, já nos princípios da cordilheira, passaríamos por Junín de Los Andes — município famoso por oferecer excelente pesca da truta — e com mais um pouco chegaríamos a San Martin, já nas entranhas das montanhas. Essa viagem, linda, dá uns 250 quilômetros. Por ela seguiram meus pais e irmã no ônibus do Expresso Koko, que apesar do nome até que não era nenhum dejeto e muito menos ruim…
Mas acontece que após meu irmão e eu rodarmos uns 30 ou 40 quilômetros dessa estrada, vimos à esquerda uma pequena placa balançando ao vento: San Martin de Los Andes. Era uma estrada perpendicular à que estávamos e reta feito uma régua, com piso de rípio — pedregulhos bem socados na terra —, que apontava direto para os Andes. Aquilo, claro, nos atraiu. Sguííínch! Freada no asfalto e nem precisei parar o Renô Doce para decidir que era por ela que iríamos. Jovens irmãos aventureiros agem assim. Velhos irmãos aventureiros, também. Entrei com tudo, a pedregulhada voou para todo lado, e a gente que decidisse depois de entrar nela. Não foi preciso mais que poucos metros para decidirmos que era por ali mesmo.
Pegar uma estrada deserta que vai direto para uma imensa e escura cordilheira é uma coisa que atrai o sujeito. Desperta uma tremenda curiosidade. Uma curiosidade que lembra a sexual, porque essa visão de você estar numa reta tendo os horizontes laterais se afunilando para um ambiente escuro e convidativo é sexo puro. Bom, naquela idade — eu ainda não tinha 23 anos — tudo nos leva a pensar em sexo. Não tenho mais aquela idade, mas continuo a ter essa impressão, portanto aquilo inquestionavelmente despertava atração sexual mesmo.
Curiosidade traz ansiedade. A ansiedade nos pesa no pé direito. E lenha no Renô Doce. A pedregulhada voava e aquilo estalava na lataria feito rajada constante de metralhadora. Vieram curvas de alta à beira do Lago Nahuel Huapi, que nessas ficava à nossa esquerda. Esse imenso lago tem Bariloche em sua margem sul. Nós lhe déramos a volta pelo lado leste e estávamos em sua margem norte. Lenha. Se nas retas voava pedregulho, nas curvas de alta voava mais. Bom carrinho, o coitado do Doce. Mesmo arriado de malas aceitava o castigo e de lambuja ia macio e quentinho. Bons bancos, tipo o do Corcel I. Encaixava a gente legal e eram macios. Regulagem só de distância, claro, mas sua posição era perfeita.
Volante grande e sem assistência, porque naquele tempo fazer um pouquinho de força não incomodava ninguém. Naquele tempo, para que alguém reclamasse o volante tinha que ser pesado mesmo, tipo o da Veraneio ou o da Rural. Tinha que ser daqueles em que o sujeito lhe dá aquela juntada e nele se pendura de um lado, bufando na hora de manobrar na vaga. Se o cara não bufasse estava tudo bem. Sendo assim, nada a reclamar do volante do Renô Doce. Não tinha regulagem de altura e nem de distância, claro! E tudo bem, claro! Estava em boa posição de guiada. Bastava deixar as pernas um pouco encolhidas para poder alcançar todo o volante, mas tudo bem, porque não tinha console central invasivo nos restringindo as pernas. A alavanca de câmbio era igual à do Corcel I, um varão comprido espetado no assoalho. Bons engates, que podiam ser feitos com as pontas dos dedos. E lenha.
Entramos por um vilarejo, que hoje já é uma bela cidadezinha turística, com pista de esqui no Cerro Bayo, chamado Villa La Angostura, que fica à beira do lago. Tudo rípio. Nada de asfalto, acho que nem no vilarejo. A estradinha se bifurcava à frente. San Martin à direita, informava uma placa, Camino de Los 7 Lagos. Abaixo dela, outra, pequena, vermelha com letras brancas, que informava: ENCLAUSURADA.
Entrei com tudo. Reduzi para a 3ª e pau. Nem aí com o que dizia a placa.
— Naldo. Você viu a porcaria da placa? — meu irmão me perguntou.
— Vi mais ou menos. Tá fechada, né? E daí? Quer voltar? Já fomos longe demais — respondi, enquanto controlava a escorregada na curva.
— Tem razão. Se voltarmos vai demorar, e a mamãe vai ficar preocupada. Eles vão chegar e a gente não estará lá. Mande a lenha aí — ele, mais velho que eu, ordenou, me dando uma justificativa razoável — nossa pobre mãezinha chorando desesperada etc — para tocar a lenha daquele jeito maluco tipo rali.
Hoje essa estrada está quase toda asfaltada. De Villa La Angostura a San Martin de Los Andes dá uns 100 quilômetros. Hoje tem uns 70 de asfalto e uns 30 de rípio, sendo que esse trecho de rípio já é a base para o asfalto, ou seja, já aterrado, nivelado, bem socado etc., quase só faltando botar asfalto em cima. Mas naquele tempo esses 100 quilômetros eram por uma antiga estradinha rural cheíssima de curvas, uma estradinha que desviava de tudo quanto era acidente geográfico, porque havia sido feita na base da picareta, enxadão e carrocinha de mula. Hoje, com os aterros e pontes, tem cerca de 100 quilômetros, mas naquele tempo, com esse monte de curvas, com sobe e desce, na certa tinha bem mais. Então, lenha.
E que estradinha linda! Linda de tirar o fôlego! A gente ia encoberto na sombra dos úmidos bosques de pinheiros e de repente se descortinava um lago daqueles de cartão postal; lago plácido, montanhas nevadas, pastos, carneiros, vacas, cachorros peludos, cavalos. As rústicas pontes eram de madeira. Quando subíamos pegávamos neve. Quando descíamos pegávamos riachos estourando de água.
Não era moleza. Em alguns trechos de neve pegávamos rastros de pneus de trator, que formavam profundos sulcos longitudinais, então o jeito era encaixar o sulco no meio do carro e mandar a bota, passar no embalo lutando para não cair no sulco, e assim fomos sem encravar nenhuma vez.
A água dos riachos era de congelar. Para atravessá-los, meu irmão, coitado, arregaçava as calças e ia à frente com uma vara para ver onde dava para o carro passar. Daí, depois que passávamos, voltava para o carro, enxugava as pernas e pés e tocava ar quente neles em meio a palavrões brutais.
E assim fomos, até que um pinheiro de razoável tamanho estava caído no meio da estrada. Nesse trecho a estradinha foi formada por um corte transversal no barranco da montanha, então era um barranco íngreme acima e outro abaixo. A base do pinheiro, sua raiz, estava no barranco acima e seu tronco com galhada caíra sobre a estrada. Sobrou um triângulo por onde daria para passar, desde que agíssemos com a minha cabeça e os músculos do meu irmão. Fazendo uma força danada conseguimos quebrar alguns galhos. Tiramos os esquis do bagageiro, meu irmão deitou de costas no bagageiro e fui devagarinho em direção à árvore. A frente passava, mas o teto, não. Por sorte meu irmão era um animal de forte e ele conseguiu erguer o tal do pinheiro com os pés. Aquilo deve ter correspondido a um agachamento invertido de uns 150 kg ou mais. Não sei quem gemia mais, se o bagageiro, as molas do Doce, o pinheiro ou meu irmão. Só sei que depois de uma gemedeira danada, passamos. O bagageiro ficou um U e o meu irmão saiu corcunda e todo molhado com a água que o pinheiro lhe derramou. Toalha e ar quente nele. Ele não é desses tontos que nem eu que se divertem entrando em roubadas, ele é mais tranqüilex, então ele fica bravo e xinga. Isso ele faz bem.
Lenha! Lenha porque a mamãe já deve estar descabelada de preocupação com seus menininhos. Meu pai nem aí, ao menos fazendo pinta que nem aí, dizendo que a rapaziada era assim mesmo etc., mas já bolando como seria a bronca pra cima da gente.
Lenha. Freada. Sguíínch! Brrrup! E agora! Uma ponte de madeira desabou. De novo estávamos num corte transversal, com um barranco íngreme acima e outro abaixo, e essa antiga ponte de madeira na certa fora feita para cobrir o espaço de estrada que sumira com um desbarrancamento. Paramos, descemos e fomos olhar. Estávamos literalmente numa fria. Fim de mundo. Fim do mundo. Cadê a minha mãezinha?
Só que olhando bem vimos que junto à montanha restava uma réstia de terra, uma réstia de terra com largura que parecia dar para o Doce passar. O galho é que a base dessa réstia de terra era em formato de arco de ponte, porque por ali corria uma cascatinha. Ela tinha uns dez ou quinze metros de comprimento. Não era muito seguro passar por ali. Nem um pouco seguro. Na verdade seria uma loucura passar por ali. Aquilo podia desabar a qualquer momento, seja com ou sem o peso de um Doce em cima.
Mas a nossa situação era que nem a das tropas do Cortez. Havíamos queimado os nossos navios e não tinha mais volta. Meu irmão atravessou a “ponte” de terra e ficou do lado de lá para me orientar, já que usando galhos como régua para medir a “ponte” e as bitolas do Doce calculamos que dava para passar. Na verdade, não é que passava na boa. Só dava para passar raspando, raspandinho.
Lembro do meu irmão lá do outro lado da “ponte”, em terra firme (que ele não é trouxa), com cara de preocupado, tipo imaginando o que iria dizer para a nossa desalentada mãezinha, “o Naldo, coitadinho, rolou com carro e tudo barranco abaixo”. Ou pensando, “se esse chato rodar, será que largo ele aí pros urubus comerem ou terei que ir buscar o corpo?”, “taí a minha chance de o orientar errado e me livrar desse pentelho”, essas coisas que irmão mais velho pensa a respeito do mais novo.
Situação tensa. O Doce indo devagarinho, ora eu olhando para as orientações atrapalhadas do meu irmão, ora olhando para o vazio que se abria ao lado, imaginando que aquela “ponte” não ia agüentar, ia ruir, e lá iria eu rolando despenhadeiro abaixo; até que a aflição foi demais e não deu para agüentar, e seja o que Deus quiser! Acelerei, meu irmão pulou de lado, e vupt!, passei.
— Ufa! — exclamei ao chegar do outro lado.
— Ufa? Ufa digo eu! Você tá maluco, cara? Vem cá ver o rastro dos pneus do carro! Olha aqui, imbecil! – meu irmão se expressando num momento carinhoso.
Fui ver. Pois é. Tinha só um ou dois centímetros de terra sobrando para cada lado dos rastros dos pneus.
E lenha para San Martin!
Chegamos um pouco atrasados. Meus pais e minha irmã já haviam chegado, mas estavam ainda na fase de maravilhamento com aquela cidadezinha, na época ainda rural, na beira do Lago Lacar, e ainda não estavam preocupados.
E aí meu irmão disse o único elogio que me fez na vida: “Cara, se não fosse você a gente não passava!”.
Estranhei o inusitado dele me elogiar. Sorri, orgulhoso, mas fiquei quieto. Se não fosse ele se metendo nas águas geladas, se não fosse ele erguendo árvore no muque das pernas, dentre outras coisas, a gente também não teria passado.
E se não fosse um bom carro, como aquele Renô Doce, a gente estaria lascado.
Um carro valente conquista a gente, e que se dane que seja feio e que isso e que aquilo.
AK