Um novo episódio da saga de “Guerra nas Estrelas” está nos cinemas. Pode parecer estranho, mas essa saga tem muito mais a ver com a nossa realidade e da nossa relação com automóveis, especialmente no que se refere ao mais misterioso e central elemento da história: a “Força”.
Um pouco da história de bastidores
Na década de 1960 as salas de cinema do mundo todo viviam às moscas. Os estúdios de Hollywood vinham de uma longa fase de contar vezes sem fim histórias enlatadas da Segunda Guerra Mundial e Westerns (aqui conhecidos como bangue-bangues). Enquanto isso o cinema europeu (mais marcadamente o francês) e por toda a Ásia floresciam, explorando uma linguagem e histórias locais.
Veio o ano de 1968, e surge o primeiro grande arrasa-quarteirão: “2001 – Uma Odisséia no Espaço”. O filme surfou na onda da corrida espacial com todos os elementos para torná-lo um clássico, mas ainda assim era um filme lento, cansativo. O filme de Stanley Kubrick era marco da nova geração de diretores influenciados pela cultura hippie de sexo, drogas e rock’n’roll. Os dois mais novos desta geração criariam sua própria revolução: os amigos Steven Spielberg e George Lucas.
No caso específico de George Lucas, ele percebeu que uma das grandes falhas dos enredos dos filmes americanos era a falta de profundidade das histórias e dos personagens. Faltava à cultura ocidental uma nova mitologia, com toda consistência das mitologias milenares, que passavam e maravilhavam geração após geração, chegando aos nossos dias.
Para isso, George Lucas contava com uma ferramenta. Ele emprestou a teoria do monomito (por vezes chamado de “Jornada do Herói”), criada pelo estudioso das mitologias, o Dr. Joseph Campbell e expressa em seu best seller “O Herói de Mil Faces”, de 1949.
Lucas e Campbell se tornaram grandes amigos, e há muitas referências em como as teorias de Campbell foram aproveitadas em “Guerra nas Estrelas” na série de documentários “O Poder do Mito”. É uma série antiga, da década de 1980, mas vale a pena ser assistida.
https://youtu.be/F523PsJGG_I?t=39m25s
https://youtu.be/r-XNz5jpg98?t=16m34s
Darth Vader e os samurais
Muito do universo de “Guerra nas Estrelas” é baseado na história, mitologia, educação e costumes dos samurais. A armadura de Darth Vader é uma referência direta aos samurais, assim como os sabres de luz e a forma de lutar com eles usando as duas mãos são referências aos combates com katanas (espadas japonesas).
Mas a relação de Darth Vader com os samurais não termina aí. A história da transformação de Anakin Skywalker em Darth Vader, contada nos Episódios I, II e III, mantém forte paralelo com uma antiga lenda samurai. Mas para entender do que trata a lenda, antes precisamos entender um pouco da cultura samurai.
Um samurai tem seu conhecimento e capacidade de decisão baseado em um tripé. A primeira perna é o código Bushidô; a segunda é a religião e a terceira, a filosofia taoísta. O código Bushidô é um código de conduta, orientando o guerreiro sobre as regras de honra e cavalheirismo, da frugalidade no modo de vida, na maestria do domínio de todas as artes praticadas incluindo as marciais, da sincera apreciação da beleza, mas acima de tudo é um código de serviência.
Todo samurai deve ter um mestre (daimyo) a quem ele deve obedecer às custas até da própria vida. A religião ensina a ética e a moral dos atos que ele tomará. Seus ensinamentos também trazem ensinamentos de sabedoria, serenidade e tolerância se contrapõem ao espírito violento natural ensinado ao samurai. Normalmente a religião era o Confucionismo ou o Budismo, mas em tempos mais recentes o Cristianismo passou a ser aceito, embora mais raro.
O tao ensina como a natureza e a sociedade funcionam e como manipular esse funcionamento para atingir seus objetivos, e por isso é a fonte de poder do samurai. O grande samurai deve aprender a equilibrar estes três aspectos quase sempre conflitantes para bem servir seu mestre tanto no presente quanto no tempo futuro. A serviência cega é auto-destrutiva tanto para o samurai quanto para seu mestre. O poder proporcionado pelo tao sem a orientação de um mestre e sem a ética e a moral da religião como balizas de conduta, também é autodestrutiva.
Um samurai é um guerreiro educado em artes letais, e esse poder tem de ser controlado através do domínio do equilíbrio entre os três componentes de sua educação. Qualquer aspirante a samurai que falhe em atingir esse equilíbrio durante sua educação é sumariamente descartado em desgraça pelo risco futuro que oferece. Ainda assim, alguns samurais saíam de controle. Ronins eram samurais que por algum motivo perderam seus mestres. Eram samurais em desgraça, mas bastante temidos, pois não tinham mais nenhuma obrigação de seguir o rígido código de conduta Bushidô e por isso eram bastante brutais.
Os samurais passaram por uma longa evolução no Japão feudal. Iniciaram como soldados rasos altamente especializados. Porém, dada sua filosofia de vida, cada vez mais foi sendo introduzida mais cultura na vida dos samurais, que passaram a galgar postos mais altos, até o ponto de se tornarem administradores, engenheiros e médicos de alto escalão, não só junto ao seu mestre, como também como altos funcionários públicos. Seu alto padrão educacional estimulou seus mestres a indicar os próprios filhos para a formação samurai, criando uma crise filosófica: como pode um samurai servir se ele próprio é o mestre?
Durante o período do shogunato Tokugawa, os samurais assumem o poder no Japão e a crise filosófica se acirra. Os senhores feudais não detinham mais o poder e não tinham mais condições de manter uma casta de samurais, que acabaram dispensados. Enquanto o shogunato foi uma fase de sucesso, para outros foi uma fase de desonra como ronin, e estes viviam uma vida de andarilhos, andando de cidade em cidade, buscando outros ronins para lutarem e mostrarem suas habilidades. Não raramente, tais combates terminavam com a morte de um dos combatentes.
O samurai reverenciado como o maior de todos no Japão foi Miyamoto Musashi, que viveu durante o período do shogunato Tokugawa. Musashi revelou-se um gênio das artes samurais desde pequeno, porém foi um ronin por toda sua vida, e como tantos outros, viveu entre viagens e lutas contra outros ronins. Ainda adolescente ele mata numa luta um dos maiores ronins de sua época, aí iniciando sua fama. Passou alguns anos isolado numa floresta, período do qual pouco se sabe, mas foi quando criou seu famoso estilo de luta com duas espadas. Ao retornar à vida de andarilho e lutador, venceu todos os combates de que participou, sendo que na parte final desta fase abandona a espada de aço e usa apenas espadas de madeira.
Segue-se então uma fase de retiro espiritual, com meditação e reflexão do que aprendera ao longo da vida, da dedicação às artes autorais, à pintura, à escultura e à caligrafia. No final da vida, ele escreve sua grande obra “O Livro dos Cinco Anéis”, uma obra que trata de estratégias comparável em foco, grandiosidade e importância ao famoso livro “A Arte da Guerra” de Sun Tzu. Embora sejam livros de estratégias militares, ambos são importantes fontes de referência para homens de negócios.
A importância de Musashi para a cultura japonesa está além da fama de sua capacidade superior de luta, porque é o herói que alcança a iluminação a partir de seu próprio caráter violento.
Musashi como herói nacional japonês é tão significativo que dava nome ao segundo maior navio do mundo durante a Segunda Guerra Mundial, o encouraçado Musashi, que só perdia em tamanho ao seu irmão de classe, o Yamato. A classe samurai, enquanto como força militar, perde importância com a introdução das armas de fogo. Entretanto eles nunca deixaram de existir.
Há ainda muitos samurais trabalhando no Japão. Eles apenas trocaram as armaduras por terno e gravata e sua arma deixou de ser a espada e passaram a usar a caneta e o computador em seu lugar. Mas é comum ter espadas e kabutos (capacetes e máscaras de armaduras samurais) decorando seus escritórios. É uma lembrança constante de suas origens e suas obrigações. São estes samurais que introduzem novas técnicas administrativas e de processo produtivo que irão causar uma revolução na indústria ocidental nos anos 1980.
Uma lenda nacional do Japão bastante popular conta a história dos 47 ronins, que por proibição de seu mestre não puderam cometer o suicídio ritual (seppuku ou haraquiri) com ele, caindo em desgraça e por isso articularam uma vingança contra aquele que articulou a morte de seu mestre.
Uma lenda ainda mais antiga conta como um samurai que perde a habilidade de manter o equilíbrio entre as partes passa a exercer o poder ilimitado oferecido pelo tao, levando-o à autodestruição e a de todos à sua volta. Ela é ensinada aos jovens aprendizes como um alerta de que não devem se desviar do estreito caminho do aprendizado, apesar de todas as tentações que o rodeiam. É esta lenda que foi usada como base para a transformação do bom garoto Anakin Skywalker no temível Darth Vader.
Darth Vader não é um ronin, pois obedece a um mestre, mas não tem compaixão nem empatia, e usa desmedidamente a Força até contra aqueles que o servem, e seu caminho leva à destruição conjunta com seu mestre. Joseph Campbell vai além, e mostra que Darth Vader é um servidor do sistema, aquele que abdicou de sua humanidade em prol da obediência cega e do uso irrestrito da Força. Ele é o herói que falha em sua missão e é tentado e convertido para o lado escuro da Força, e isso é simbolizado pela sua transformação em ciborgue, meio homem, meio máquina.
Em sua oposição, Luke, seu filho, é quem realiza o ciclo do herói completo. Ele não se deixa corromper pelo sistema, mas a perda da sua mão direita e a substituição por uma mão mecânica simboliza que ele tem de aceitar um pouco do sistema em si para poder vencê-lo (fenômeno comum nas histórias dos heróis).
Ao final da luta entre ambos, quando o imperador Palpatine incita Luke e matar o próprio pai para que ele se converta ao lado negro, Luke olha para os destroços cibernéticos do braço do pai e olha para sua mão direita, a prótese robótica, e entende que destruir o sistema é se converter ao sistema, e ele se recusa a isso, fechando uma fase do ciclo do herói, quando ele já não pode mais ser corrompido ou demovido dos seus objetivos.
O tao e a Força
O tao está para os samurais assim como a Força está para os Jedis. É sua fonte de poder. Eu já escrevi algo sobre o tao em um dos artigos da “Inteligência das Máquinas” mas, relembrando, existe um equilíbrio entre duas forças opostas e complementares, o Yin e o Yang, e é manipulando estas forças que o samurai atinge seus objetivos.
Um dos ensinamentos prega que nem sempre se alcança o objetivo por uma abordagem direta. Muitas vezes o objetivo pode ser alcançado através de um pequeno esforço em um ponto distante, e o próprio desenrolar dos fatos leva com certa facilidade o sistema a oferecer o objetivo desejado.
Outro ensinamento diz que qualquer interferência no sistema se propaga por toda eternidade e nunca se restringindo ao objetivo em si. Pode ser que na turbulência dos fatos as conseqüências da interferência se misturem ao ponto de não percebermos mais a origem do atual estado das coisas, mas isso não significa que estas conseqüências deixaram de existir.
Um terceiro ensinamento mostra que o Universo sempre conspira para atingir um equilíbrio. Quando há uma interferência extremada em uma direção, outra em sentido oposto e de mesma intensidade, certamente ocorrerá para corrigir o equilíbrio do sistema. A oposição imediata gera equilíbrios estáticos, enquanto que oposições em atraso de tempo gera equilíbrios dinâmicos, com oscilações entre as partes, de onde surgem os ciclos (vida e morte, dia e noite, frio e calor, as estações do anos etc.).
Vemos isso ser feito ao longo dos episódios II e III, nas palavras do futuro imperador Palpatine que despertam e catalisam sentimentos em Anakin até sua transformação em Darth Vader, e através dessa transformação, atinge seu objetivo de poder. Ele volta a usar a força das palavras no episódio VI, ao tentar induzir Luke a abraçar o lado negro da Força. Porém a manipulação de Palpatine para alcançar seus próprios objetivos é o caminho para sua própria destruição.
Um samurai sabe que pode interferir com o mundo que o cerca, mas deve agir com cuidado. Uma mentira, por exemplo, pode induzir as pessoas a fazerem o que ele deseja, porém haverá alguma conseqüência dela adiante que geralmente será indesejável. Isto pode levar a um ciclo de mentiras encobrindo outras mentiras até que o processo escape de controle, causando danos irreparáveis ao mentiroso.
O melhor é aprender a interferir sempre próximo do equilíbrio, com baixa intensidade a cada vez e por várias vezes para corrigir desvios, mas nem sempre isso é garantia de controle do processo. Interferir com o sistema aos poucos é capaz de redirecioná-lo no sentido desejado sem que ele seja fortemente perturbado e saia do controle, mas ele deve sempre ser direcionado no sentido a que os efeitos colaterais da ação sejam minimamente indesejáveis.
Como os mestres samurais costumam insistir: “não existem escolhas inconseqüentes”. Até a mais inocente brincadeira de criança propagará alguma mudança no futuro. O poder de usar o tao é enorme, mas perigoso também.
A Força do Caos
O que parece ser uma mágica começa a ter fundamento científico a partir da palestra “Como o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode causar um tornado no Texas”, proferido pelo meteorologista Edwin Lorenz, denominando este comportamento de “Efeito Borboleta”.
No Episódio 4, Obiwan Kenobi diz ao aprendiz Luke em sua casa:
– [A Força] É um campo de energia criado por todos os seres vivos. Ele nos envolve e penetra. É o que mantém a galáxia unida.
Mais adiante, enquanto Luke treina na Millenium Falcon com o sabre de luz, Obiwan continua seus ensinamentos ao pupilo:
— Lembre-se, um Jedi pode sentir a Força fluindo através de si.
— Então ela controla suas ações.
— Em parte. Mas também obedece aos seus comandos.
Estas palavras parecem talhadas para a Teoria do Caos.
A nova ciência do caos, curiosamente iniciada quase ao mesmo tempo em que o primeiro episódio da saga era escrito e produzido, ao longo dos anos mostrou que há uma força criativa na natureza, oculta nas sombras das equações e das leis naturais, que se auto-organiza, gerando ordem, padrões, estruturas coerentes, comportamentos inteligentes e sincronismos de suas partes, sistemas estáveis e altamente tolerantes a falhas, e ainda assim se torna imprevisível ao longo do tempo pelo Efeito Borboleta.
Agora, quando a ciência começa a concordar ao menos parcialmente com a filosofia taoísta, com lições aprendidas há mais de 5 mil anos, passamos a compreender que o poder samurai não emergia da magia ou da mistificação, mas do uso inteligente de uma propriedade da natureza.
O despertar da força do caos
Embora Lorenz tenha dado início à ciência do caos na década de 1960, as trombetas da ciência anunciando sua chegada já soavam muitos anos antes.
Em 1925, o italiano Vito Volterra, a partir do estudo da relação de populações de tubarões e outros peixes no mar da Itália, e o americano Alfred J. Lotka, num estudo teórico da relação entre predadores e presas, publicaram independentemente e sem conhecimento um do outro o mesmo modelo matemático que exprimia a relação entre populações de predadores e presas. Este modelo foi chamado de Lotka-Volterra e foi o primeiro a usar a matemática para modelar o comportamento de populações.
Em muitos aspectos, o modelo Lotka-Volterra é simplificado demais, mas ainda assim importante para compreender modelos muito mais complexos. O exemplo clássico do modelo Lotka- Volterra é dado usando coelhos e raposas isolados num lugar com abundância de comida para os coelhos. Podemos dizer que a taxa de crescimento da população de coelhos é proporcional à população dos coelhos (quanto mais coelhos, mais filhotes de coelhos) menos uma parcela proporcional à população de raposas (quanto mais raposas, mais coelhos caçados, e menos filhotes de coelhos).
Por outro lado, podemos dizer que a taxa de crescimento da população de raposas é proporcional à população de raposas e de coelhos (quanto mais coelhos, mais comida e mais filhotes de raposas) menos uma parcela de morte natural (velhice, doença, acidentes). As equações de Lokta-Volterra são descritas matematicamente assim:
onde:
C = População de coelhos
R = População de raposas
dC/dt = Variação da população de coelhos por unidade de tempo
dR/dt = Variação da população de raposas por unidade de tempo
r = Taxa de crescimento da população de coelhos
c = Eficiência de captura das raposas (taxa de predação)
a = Eficiência de conversão de comida (proporção de coelhos transformados em filhotes de raposas)
d= Taxa de morte das raposas
Tecnicamente, as equações de Lotka-Volterra exprimem um sistema de equações diferenciais ordinárias, um nome pomposo e de significado profundo, difícil de explicar aqui. Alguns textos se referem às populações de coelhos e raposas como “variáveis acopladas” ou “variáveis entrelaçadas”, pelo fato que uma alteração em uma implica numa interferência na outra e vice-versa. Os termos “acoplamento” e “entrelaçamento” são muitas vezes usados porque exprimem os íntimos relacionamentos entre entes não matemáticos, como seres humanos na sociedade e automóveis na malha viária da cidade, e é essa ideia de acoplamento entre as partes de um sistema complexo que precisa ser mantida em mente.
Inicialmente, ao calcularmos estas equações em função do tempo, obteremos um gráfico desta forma:
Embora o modelo Lotka-Volterra seja um modelo elementar, ele parece se aproximar de algumas relações naturais reais, como no gráfico a seguir que mostra a relação entre populações de linces e lebres das neves entre os Estados Unidos e o Canadá.
Vemos que estes gráficos apresentam ondas não senodais. As duas populações apresentam o mesmo período de ciclo, mas a população de raposas oscila em atraso de fase em relação à população de coelhos. O acoplamento entre essas populações cria um efeito de sincronismo que mantém as populações oscilando na mesma freqüência.
No gráfico a seguir vemos como se dá o acoplamento entre as duas populações:
Uma outra representação importante do modelo Lotka-Volterra é o plano de fase, onde a população de raposas é plotado em função da população de coelhos. O gráfico a seguir representa esse plano.
Uma propriedade do plano de fase é que os pontos se seguem no sentido anti-horário. Outra propriedade, específica deste modelo, é que o sistema possui um ponto de equilíbrio estático, onde as duas populações não oscilam, e, a partir dele, as populações apresentam “órbitas” estáveis em torno desse ponto de equilíbrio. Essas “órbitas” (na verdade, um atrator estranho) indicam que o sistema apresenta um tipo de equilíbrio dinâmico bastante estável.
Podemos usar o plano de fase para observarmos o que ocorre com o sistema quando ele é perturbado. No primeiro exemplo, a partir de uma condição de equilíbrio dinâmico intermediário, a população de raposas sofre um decréscimo súbito de “X” indivíduos (representado pela seta preta) pela caça para reduzir seu número inconveniente, mas o instante em que essa caça é feita não é propício. O resultado é a mudança do equilíbrio dinâmico das duas populações para uma condição de maior oscilação, e o resultado é o surgimento de picos de superpopulação de coelhos seguidos de picos de superpopulação de raposas, muito mais numerosos que na condição original. Ao invés de controlarmos a praga pela nossa interferência, conseguimos apenas piorá-la no longo prazo.
No segundo exemplo, o mesmo número “X” de raposas é caçado, porém num momento mais propício, e o resultado é um equilíbrio menos dinâmico, com menores amplitudes de oscilação nas populações que tentamos controlar. Embora o sistema inicial fosse o mesmo e a intensidade e sentido da interferência fossem os mesmos, a diferença do instante em que agimos sobre o sistema fez toda diferença entre o sucesso e o fracasso no manejo destas populações.
Também observamos que podemos regular a população de coelhos através do controle da população das raposas, tanto eliminando excessos como introduzindo novos indivíduos no ambiente. É um tipo de controle induzido, onde se controla algo mais difícil (população numerosa de coelhos) pela modulação de algo mais fácil (população rara de raposas). É assim que se usufrui do “poder da Força” real.
A parte fundamental que o modelo Lotka-Volterra nos ensina é que o sistema é altamente reativo às ações que promovemos sobre ele, e que essa reatividade muda completamente conforme os padrões de ações que tomamos.
Antes da Teoria do Caos, e mesmo hoje, quando matemáticos, físicos e engenheiros se deparavam com sistemas dinâmicos, a forma mais comum de se tratar o comportamento do sistema era estabelecer parâmetros estatísticos. Estima-se uma média e as oscilações naturais são consideradas como mero “ruído” e não como parte fundamental da dinâmica do sistema. A partir daí todo estudo destes sistemas dinâmicos eram feitos a partir de estimativas de valores estacionários, como uma média e um desvio-padrão.
É irresponsável agir sobre esses sistemas pensando neles como sistemas meramente passivos, um erro bastante comum quando são usados velhos modelos estatísticos para dimensioná-los pela média, e é por isso que estes modelos estatísticos freqüentemente falham.
Escrevi sobre isso quando falei sobre a velha engenharia do tráfego induzido.
Da simplicidade para a complexidade
A simplicidade do modelo Lotka-Volterra é enganosa. Ela concentra apenas duas variáveis com relações matemáticas muito simples. Já o modelo que levou Lorenz ao estabelecimento da Teoria do Caos, feito a partir de equações termodinâmicas, complica bastante as coisas.
O modelo Lotka-Volterra tem um atrator bidimensional simples e bastante estável. As variáveis permanecem fixas dentro de uma “órbita” sobre o atrator. O comportamento é perfeitamente previsível. Já o modelo de Lorenz possui um atrator tridimensional de relações mais complexas, e as curvas de evolução das variáveis sobre o atrator são estranhas e imprevisíveis pois o comportamento do sistema é mais caótico.
O modelo Lorenz nos leva a novos questionamentos. Se o sistema é caótico e imprevisível, como podemos atuar de forma consciente sobre ele? A resposta é estranha. O sistema pode ser imprevisível no modo de prevermos com absoluta precisão seu estado numa condição futura, mas de forma alguma o sistema é aleatório. É possível mexer no sistema de forma a esperar que ele seja melhor, embora seja impossível dizer quando e de que forma o sistema se apresentará assim.
O sistema pode ser imprevisível a longo prazo, mas ele apresenta um padrão de evolução de valores sobre o atrator. A fidelidade e a forma com que o sistema evolui sobre o atrator nos dá uma idéia de como ele se comporta e como ele poderá se comportar se interferirmos nele. A imprevisibilidade do sistema introduz um ruído ao sistema, mas temos uma idéia de para onde o sistema é redirecionado. Nunca será um método preciso, mas permite alguma forma de controle sobre ele.
Mas tanto os modelos como o Lotka-Volterra como o de Lorenz são modelos bastante simples. E quando extrapolamos de 2 ou 3 variáveis acopladas para milhares ou milhões de entidades entrelaçadas?
Esta é uma propriedade importante. Sistemas complexos, feitos de poucos ou de bilhões de elementos se auto-organizam, criando estruturas maiores. Estas estruturas mudam, evoluem, se adaptam e reagem às interferências. Muitas vezes, ao observarmos os elementos que compõem a macroestrutura, é impossível perceber a formação desta macroestrutura. É necessário um certo afastamento até que seja possível percebê-la como entidade única e mutável, porém também é possível aprender como ela se comporta.
O trânsito — sempre ele — é um exemplo clássico. Não há dois congestionamentos iguais, porém é previsível que eles ocorram, assim como várias das suas propriedades. Quando estamos no meio de um congestionamento não temos noção das suas causas, da sua extensão, muito menos dos comportamentos da massa compacta de carros por toda malha viária. Só tomamos noção do que o congestionamento representa quando vemos uma imagem aérea, quando observamos o conjunto sob uma escala diferente da que tínhamos quando estamos no meio dos carros. É importante notarmos que em escalas diferentes observamos fenômenos de forma diferente.
Quando um veículo está na rua, ele interage (reação por acoplamento) com os demais e com a via. Quando um veículo quebra (enguiça, em outras regiões) em plena marginal do Tietê (importante via expressa de São Paulo), ele retém mais de um veículo atrás dele. Cada um destes veículos irá reter outros, que reterão outros… Carros podem sofrer do congestionamento gerado por um único carro quebrado, mesmo que esteja a vários quilômetros de distância pela simples relação (acoplamento) que eles possuem com os carros à frente, que se relacionam nos carros à frente… É como uma corrente onde cada elo se liga aos elos vizinhos, formando uma enorme rede conectada. Qualquer interferência em um dos elos é propagada a toda rede.
Mas nunca os carros estão exatamente no mesmo lugar na mesma hora, dia após dia, o que torna os acoplamentos diferentes, mas ainda assim o congestionamento ocorre sempre de forma muito parecida. É um macro-fenômeno perfeitamente previsível e reconhecível, mesmo sob condições microscópicas completamente diferentes.
Mas não é só isso. O que dizer do impacto de pontos específicos que atrasem cada motorista por 5 segundos a mais do que deveria por um simples erro de engenharia? Individualmente, o impacto é mínimo, mas a soma de milhares de atrasos com diferentes carros em diferentes pontos da malha viária da cidade são tão capazes de induzir o caos no sistema tanto quanto um carro quebrado (enguiçado)em uma via vital.
O leitor deve então pensar então que a solução é simples: basta eliminarmos os pontos que geram atrasos e o problema estará automaticamente resolvido. Errado. Em sistemas complexos, a eficiência total de alguns elementos conduzem ao colapso de outros , incapacitando o macro-sistema. Sistemas complexos eficientes possuem partes apenas o suficientemente eficientes para que todas as partes operem com uma margem de eficiência satisfatória. Algumas vezes é preciso introduzir um pouco de caos no sistema para obter mais eficiência dele, o que é um tipo de ordem. Quando tentamos maximizar a ordem do sistema, podemos gerar um sistema caótico e menos eficiente.
Um exemplo é construir um túnel para desafogar o trânsito em um ponto e causar o colapso em outro, onde antes o trânsito nunca havia congestionado. O túnel parece a solução lógica para o problema, mas pode causar uma situação pior do que a anterior.
Muitas vezes a melhor resposta a aquele congestionamento pontual é causar pequenos atrasos no fluxo periférico que alimenta aquele local ou dificultando o acesso e obrigando os carros a tomarem outros caminhos, evitando que os carros se acumulem e causem o colapso local. Isto significa fazer o contrário do que aprendemos, tirando proveito da má engenharia de tráfego que irá prejudicar carros individualmente em vários pontos para termos uma melhora do sistema como um todo. Na média, geramos uma perda de tempo para cada carro com as “más soluções de engenharia”, mas ao dificultar o acesso ao ponto de congestionamento, temos uma menor aglomeração e o ponto não entra em colapso, e no final todos ganham.
Um verdadeiro contra-senso, mas mais eficaz (e quase sempre mais barato) que uma portentosa obra viária (onerada quase sempre por propinas). Não é muito lógico para nós, com nossa cultura de que melhor é sempre mais, mas é assim que a natureza desses sistemas complexos funciona. Estas respostas nem sempre são fáceis para nós.
Para um samurai, essa resposta é mais simples de ser entendida por sua cultura ser diferente. Um samurai aprende e pensa no mundo em termos de equilíbrios. Congestionamento é um desequilíbrio do sistema e a solução que ele normalmente busca é aquele que reconduza o fluxo ao seu equilíbrio, e muitas vezes é preciso tomar decisões Yin, desagradáveis, para obtermos um resultado mais Yang, bom para todos. Resta-nos aprender esta lição e aplicá-la.
Controle e limites da Força
Sistemas complexos apresentam diferentes tipos de estabilidade. No modelo Lotka-Volterra temos um ponto de equilíbrio estático e infinitas “órbitas” que são seguidas de forma estável pelo par de populações. Outros sistemas possuem focos de convergência, pontos em torno dos quais o sistema oferece um equilíbrio dinâmico que “espirala” até atingir o foco de estabilidade estática. Em outros sistemas, vemos que as “órbitas” espiralam divergindo do ponto e não são estáveis. E há sistemas como o de Lorenz, que não possuem qualquer ponto de atração ou divergência, nem “órbitas” bem comportadas, mas ainda assim permanecem fiéis aos limites impostos pelos seus atratores, tornando o sistema estável, embora caótico, dentro de limites bem definidos.
Mas sistemas estáveis, quer sejam estáticos ou dinâmicos, possuem limites de estabilidade que precisam ser observados. No modelo Lotka-Volterra, se extinguirmos as raposas, os coelhos se multiplicação em escala exponencial até o infinito, divergindo sem estabilidade. Se extinguirmos os coelhos, as raposas irão se extinguir naturalmente, e o sistema converge para o ponto de estabilidade do sistema morto.
Na verdade, quando expandimos a exploração deste modelo de um ponto de vista matemático, observamos que ele é estável apenas para valores positivos de população, e em valores negativos de qualquer das populações, o modelo é divergente, como vemos no gráfico a seguir. Estes são limites que, se superados, tiram o sistema de seu funcionamento normal.
Por outro lado, como vimos anteriormente, podemos interferir com o sistema dentro de certos limites e ainda assim ele continua operando dentro de sua estabilidade. Este é um indicativo de uma propriedade importante: estes sistemas são altamente tolerantes a falhas. A tolerância a falhas é um fenômeno importante para o controle do processo porque nos dá a oportunidade de errarmos ou sermos imprecisos no tipo e na intensidade da nossa interferência, dentro de certos limites, e ainda assim o sistema irá tolerar a nossa interferência sem perder sua estabilidade.
Porém, mesmo a menor interferência irá desviar o sistema de seu equilíbrio original e direcioná-lo para outro, pelo Efeito Borboleta. Se por um lado isto é a oportunidade para controlarmos o sistema, do outro, é uma forma de perdê-lo em definitivo.
Controlar um sistema complexo e caótico não é a mesma coisa que controlarmos o nível de água numa caixa d’água, a temperatura de um forno, ou a trajetória de um foguete rumo a Marte. Sistemas caóticos não são os sistemas determinísticos a que estamos acostumados. Não é assim como esses sistemas funcionam. Qualquer medida que vise o controle destes sistemas que não vislumbrem sua natureza serão sempre medidas paliativas que precisarão sempre de novas intervenções para se manter. Elas nunca funcionam.
Não adianta querermos estabilizar estaticamente as populações de coelhos e raposas em um ponto inferior ao do equilíbrio estático natural dele pela interferência em suas populações. Nunca vai funcionar. E se tentarmos fazer isso teremos que permanentemente interferir no sistema, eliminando raposas e coelhos, e podemos em algum instante pondo o sistema todo a perder.
Uma forma, ao menos em teoria, de conseguir isso seria migrar o ponto de equilíbrio estático mexendo nos parâmetros do sistema, como diminuindo a fecundidade dos coelhos ou aumentando a eficiência de caça das raposas. Num modelo simples como este, até podemos conseguir, mas esta tentativa pode tanto resultar em um desastre como pode ser inócua em sistemas mais complexos, onde não conhecemos todos os parâmetros nem também todos os comportamentos do sistema.
Outra idéia quase sempre malsucedida é a introdução de mais elementos à dinâmica do sistema, como novas presas e/ou novos predadores. Isso aumenta a complexidade do sistema e aumenta as suas chances de se comportar de forma mais caótica.
Qualquer semelhança entre essas técnicas ruins com a realidade administrativa política e empresarial modernas e seus sucessivos fracassos não é mera coincidência. Controlar um grande sistema complexo é um ato de grande responsabilidade porque impõe respeito à dinâmica e aos limites deste sistema.
Este é o ponto onde precisamos fazer um grande exame de consciência. Nascemos num planeta vivo, onde cada ser vivo é um ente acoplado a milhões de outros e onde cada parâmetro de relacionamento foi incontáveis vezes ajustado ao longo de 4 bilhões de anos de evolução, um sistema complexo e altamente tolerante a falhas por sua própria natureza.
Isto nos deixou mal acostumados, enquanto seres civilizados. Por gerações estamos interferindo com a natureza, mas ela vem sendo forte o bastante para tolerar essas interferências milenares sem sofrer grandes transformações. Isso nos deu a idéia errônea de que podemos agir ilimitadamente sobre a natureza em prol dos nossos desejos e tudo continuará como sempre foi, de que ela é fonte de riquezas sem fim e de que ela nunca irá reagir contra nós a partir das nossas próprias ações.
Nunca interferimos tanto e tão profundamente na natureza, ao mesmo tempo que ainda desconhecemos seus limites de estabilidade. Lembrem-se: não existem escolhas inconseqüentes. Por menores que sejam, elas sempre afetam o ambiente que nos cerca, mesmo que seja jogar um simples papel de bala na rua.
Deveria ser natural entender que temos uma civilização que não é algo que veio da natureza, mas da nossa cultura, e que ao relacionar nossa civilização com a natureza, esta última tende a reagir. A natureza tolera bem uma civilização avançada dentro dos seus parâmetros de tolerância a falhas, mas há um limite para isso e não sabemos onde esses limites estão. Temos uma responsabilidade quanto a isso. Pode ser que cortar uma árvore pareça não irá afetar o mundo, mas quando, de uma em uma, eliminamos mais da metade delas em apenas um século, alguma diferença sensível deve ser observável, e triste de nós se acreditarmos que a origem disso não é nossa.
A natureza não é intocável. Ela pode ser manejada a nosso favor e não há nada de errado com isso. Mas para tal, temos que ter consciência e sabedoria para lidar com ela. Da mesma forma, precisamos aprender que as sociedades humanas são sistemas complexos e possuem estas propriedades tanto na relação entre elas como dentro dos seus elementos constituintes (sociedade, economia, trânsito). Não é com ações políticas, feitas para agradar alguns e tomadas da mesma determinação com que o carpinteiro bate num prego com um martelo que essas coisas funcionam. Não é na canetada que se resolvem os problemas, mas sim sempre buscando o melhor equilíbrio de longo prazo.
Reconhecendo a verdadeira Força
O caos domina todo nosso Universo conhecido. Diferente do que a palavra significa em termos linguísticos, o caos da natureza possui uma força criativa, capaz de condensar átomos em materiais; materiais em planetas e estrelas e assim continuar até a formação dos grandes aglomerados galáticos, assim como é capaz de criar e manter vida e inteligência, além de outras maravilhas que estão além da nossa imaginação. Esta é uma força muito mais poderosa que a mística Força mencionada em “Guerra nas Estrelas”.
A força criativa do caos está por toda a parte, regendo das menores até as maiores estruturas do nosso Universo. Ela está nas pequenas coisas que, somadas, se tornam as grandes coisas e está nas grandes coisas que determinam os destinos das pequenas coisas. Ela é tão onipresente que quase nem a notamos. Por ela, nada é por acaso, e é por isso que quando quando agimos não existem escolhas inconsequentes.
Usar o poder da força do caos é saber reconhecê-la e usar as regras de equilíbrio do tao para direcioná-la para onde é desejado.
Um caso clássico nos trás de volta ao mundo dos modernos samurais. Nos anos 1980 houve uma verdadeira efervescência na indústria pelas modernas técnicas de administração japonesas. Os japoneses vinham se mostrando altamente produtivos e eficientes, e todos correram para copiá-los. Alguns conseguiram, outros nem tanto.
Num dos vários casos onde os japoneses surpreenderam os ocidentais ocorreu numa encomenda da Ford americana para a Mazda japonesa. A Ford tinha demanda de um determinado modelo de câmbio e não tinha capacidade suficiente em sua fábrica. A Mazda já era uma parceira de longa data e tinha capacidade ociosa em sua fábrica e aceitou a encomenda.
Ao receber o primeiro lote de câmbios, a Ford estranhou o preço do conjunto acabado. Era muito mais barato do que a unidade produzida internamente pela própria Ford. Além disso era mais silencioso, apresentava engates melhores e precisos, e oferecia menores problemas durante a fase de montagem do carro. E, conforme o tempo passou, além da manutenção destas qualidades, se descobriu que os câmbios japoneses ofereciam menos reclamações no pós-venda. O prazo de entrega também foi obedecido com boa folga.
Intrigados, os diretores da Ford foram até o Japão para saber que “mágica” a Mazda andava fazendo com seu câmbio. Ao chegar lá, a explicação foi bem simples: antes dos câmbios serem postos em fabricação, os desenhos originais da Ford passaram por uma equipe de engenheiros que apertou todas as tolerâncias (precisão mecânica com que as peças são aceitas os descartadas na linha de produção) das peças do câmbio.
Inicialmente, a idéia é sem pé e sem cabeça. Uma peça de tolerância mais apertada (ou de maior precisão mecânica, como preferir) é uma peça mais cara e mais difícil de ser produzida. Os custos deveriam ser bem maiores e os prazos de entrega deveriam estourar.
É aqui onde entra uma das então modernas técnicas de administração japonesas, chamada de “Método de Tagushi”. O princípio desse método parte exatamente disso: aperto de todas as tolerâncias para formar conjuntos melhores.
A questão é que um câmbio é um conjunto mecânico complexo, com centenas de componentes mecânicos funcionando acoplados.
Pausa na explicação. Já vimos o termo “acoplados” antes, neste texto. Embora em contextos diferentes e sob formas diferenciadas, a idéia básica é sempre a mesma, e este é um conceito importante, porque o que vale para carros no trânsito vale para peças de câmbio ou grupos de pessoas que trabalham juntas.
Quando um câmbio é montado, as peças, todas dentro das tolerâncias nominais, são tomadas aleatoriamente e formam conjuntos. O problema é que, aleatoriamente, alguns câmbios podem juntar um excesso de peças com folga enquanto outros com excesso de peças sem a mesmas folgas. Quando imaginamos que todas as peças que formam o câmbio são folgadas, a folga de uma peça com a outra pode estar dentro da tolerância de fábrica, mas a seqüência de peças todas folgadas pode gerar um mecanismo excessivamente folgado. No extremo oposto desta mesma escala, podemos ter câmbios excessivamente apertados.
Boa parte desses câmbios será recusada, exigindo sua desmontagem para misturar novamente as peças para que elas formem outros conjuntos aceitáveis. Mas existirão câmbios que, embora folgados ou apertados, estarão por muito pouco dentro das tolerâncias de fábrica e podem gerar reclamações após a venda do veículo. Isto valia para a filosofia de engenharia da Ford.
Quando a Mazda apertou todas as tolerâncias, os componentes básicos realmente ficaram mais caros, mas peças mais precisas geravam câmbios mais precisos, e o número de conjuntos que precisavam ser desmontados e remontados diminuía. Ao evitar que os câmbios tivessem que ser desmontados, os componentes misturados para então serem remontados evitou muito retrabalho, o que é uma redução de custos. A linha de montagem dos câmbios trabalha mais “solta” por haver menos problemas de montagem e ela ganha em produtividade, o que também derruba o custo. Além disso, ganha-se em satisfação do cliente, com um conjunto que trabalha como deveria na imensa maioria das vezes e com menos ruídos e desgastes. No fim, os câmbios saíam mais baratos, eram montados com mais facilidade e apresentavam qualidade superior, mesmo obedecendo ao mesmo desenho básico.
A Mazda fez um câmbio melhor e mais barato que a Ford partindo do que a filosofia de engenharia ocidental seguida pela Ford considerava um erro. Funcionou porque a profundidade da percepção do projeto como um todo era muito mais ampla. É possível perceber o toque de um samurai usando as propriedades do tao por trás dos panos?
As técnicas de administração japonesas ficaram muito famosas nas décadas de 1980 e 1990, mas seus resultados nas empresas ocidentais foram muito variados, indo do sucesso ao fracasso total, muito contribuindo para isso uma visão limitada das idéias que norteavam estas técnicas, e muitas vezes suas implementações eram meras cópias do processo original.
A Força e você
É evidente que a força criativa do caos está próxima de você, leitor. E isso acontece a todo instante, mas estamos tão acostumados com ela que nem a percebemos. É por isso que antes de qualquer coisa, é preciso reconhecê-la como tal. Tenha em mente a idéia da rede de corrente, com cada elo se ligando a vários outros.
Olhe para seu trabalho. Como o que você faz se relaciona com o que seus colegas fazem? Percebe como todos se conectam? E se você modificar a forma como faz seu trabalho? Isso certamente vai transformar o ambiente de trabalho à sua volta. E sua família? E seus amigos? A mesma coisa. Mas, e seu país? É possível transformar algo tão grande? Aqui cabe um novo e importante conceito taoísta.
O tao diz que todos somos parte do Todo. O Todo é a soma de tudo, e isso pode ir muito além do nosso Universo conhecido. Evidentemente, um indivíduo é muito menor que o Todo e é impossível para ele transformar sozinho o Todo. Entretanto, a cada indivíduo cabe uma parcela pequena do Todo, e transformar esta parcela é transformar um pouquinho o Todo. Mas o Todo é conectado. Quando você transforma a sua parcela do Todo, estará transformando um pouco as parcelas daqueles às quais você está conectado. Você pode ter um poder limitado para transformar o Todo, mas sua transformação pode irradiar para outras pessoas, e delas para outras, e você pode, indiretamente, transformar uma parcela muito maior do Todo.
Ainda assim, você pode se ver em uma situação onde o Todo pode colocá-lo em uma situação que está acima da sua capacidade pessoal. Para esta situação existe então o conceito do “Wu-Wei”. Wu-Wei significa algo como “agir pelo não agir”, e é um dos elementos básicos do taoísmo. Ele prega que nada seja feito de forma forçada, artificial ou convencional, mas sim que deixe que o fluxo dos acontecimentos sigam seu próprio caminho até que seus objetivos sejam alcançados.
O Wu-Wei é uma filosofia de vida que busca uma forma mais harmoniosa e equilibrada através do tao, mas diferente do que possa parecer, ela não prega o imobilismo ou o conformismo, mas sim que se evite os esforços inúteis. Você é parte do Todo, e se você pode limitadamente influenciar o Todo, o Todo também tem o poder de influenciá-lo,e lutar contra isso é contraproducente. Viver sob o modo Wu-Wei significa viver com menos tensões, com menos sobressaltos.
A figura clássica para explicar o Wu-Wei é a idéia de estar nadando em um rio de forte correnteza. Se nadar contra ela, logo você irá se cansar e morrerá afogado. Se você desistir e não fizer nada, a correnteza o arrastará para dentro da água e você morrerá afogado. Mas se você se concentrar em apenas se manter à tona respirando, poderá seguir com a correnteza até que ela o deixe em um lugar menos turbulento, onde será possível nadar para a margem e se salvar.
A idéia da correnteza é recorrente em nossas vidas. Pense na cultura de que você tem que se esforçar e ser produtivo para alcançar o sucesso e sua promoção no trabalho. É uma grande ilusão. Esta cultura gera uma competição entre pessoas que deveriam se ver como colegas e não como competidores. O prêmio para o vencedor é um só contra muitos que ficarão para trás e ninguém quer ficar para trás.
Em pouco tempo, as pessoas estarão consumindo energia importante apenas para se opor a seus concorrentes, na maioria das vezes de forma inútil porque serão perdedoras. E mesmo que quem consegue sua promoção logo estará reiniciando o ciclo rumo a mais uma promoção, e quem chega ao topo continua sob tensão para não perder o que conquistou. É muito comum que profissionais cheguem a sacrificar a vida familiar em prol de vencer essa competição inútil que nunca termina.
Perceba que o conceito de sucesso e de se esforçar para alcançá-lo é um paradigma amplamente aceito ao ponto de se tornar uma verdade aos olhos das pessoas. Isto cria a correnteza e impõe a todos que se esforcem. Mas isso é nadar contra a corrente, porque o sucesso é para poucos. Quem vive sob o conceito do Wu-Wei se desprende desse tipo de esforço inútil e se concentra apenas em fazer bem seu trabalho. Quando ele deixa de lado a competição, sobra mais energia para o trabalho e uma tensão menor traz um prazer maior de viver. Também sobra energia e tempo para a família, base para qualquer trabalhador saudável. Quando as pessoas à sua volta deixam de vê-lo como competidor, passam a colegas e colaboradores, e isso facilita o seu trabalho e a delas, aumentando a produtividade de todos. Em pouco tempo isso transforma o ambiente de trabalho, e essa pessoa pode ser vista pela gerência como aquele que irradia a união ao invés de separar, com o efeito colateral de aumentar suas chances de uma promoção por mérito.
Wu-Wei não é uma obrigação religiosa do tipo “seja bonzinho para conquistar o paraíso depois de morto”. É uma filosofia de vida para usufruir melhor a própria vida ao invés de brigar com ela.
Quem pratica o Wu-Wei não transforma o meio em que vive pelo esforço direto, truculento e desgastante. Ele transforma irradiando uma ação mais equilibrada para aqueles que lhe são próximos, e destes para os próximos deles e assim por diante. É o agir por não agir.
A prática do Wu-Wei se antepõe a muitos dos vícios e “verdades” da vida moderna como o consumismo. Você comprou seu carro por qual motivo? Utilidade, prazer próprio, status ou para causar inveja nos outros? Se a razão for causar inveja, o caminho estará errado. Você gastará muita energia para ser reconhecido por quem não interessa. Essa energia pode ser aproveitada de forma mais produtiva na sua vida.
Se a razão for status, temos duas respostas. Existem aqueles que precisam de um carro vistoso porque o ambiente social no qual ele vive exige isso (clientes por exemplo). Esta não deixa de ser uma razão utilitária perfeitamente válida. Porém o status pelo puro status é uma razão tão vazia quanto ter para causar inveja. Há objetivos melhores e mais nobres que carecem dessa energia na sua vida.
Se a razão for o próprio prazer é uma resposta válida, mas ela pode ocultar uma outra resposta não tão nobre. Você tem prazer com seu carro depois de 2 ou 3 meses de uso ou logo o carro vira coisa comum e logo você fica ansioso para trocá-lo? A diferença entre essas respostas é a da paixão contra o apego. É sempre bom se perguntar até que ponto realmente aquele carro novo satisfaz um prazer real ou é mera ilusão, e entender o real motivo antes de comprar.
Mas se a razão é utilitária, ela se auto-explica. Em resumo, gaste energia apenas com aquilo que realmente traga felicidade e coisas positivas para sua vida e para aqueles que realmente importam. As ilusões da vida moderna apenas fazem as pessoas nadarem contra a correnteza, e seus atos terão repercussão à sua volta.
Não esqueça nunca: não existem escolhas inconsequentes.
Conclusão
Quando George Lucas criou a saga de “Guerra nas Estrelas”, ele queria apenas criar uma mitologia moderna, contada através das telas dos cinemas. Ao explicar o que seria a “Força”, usou conceitos teológicos e filosóficos do que ela poderia ser. Mal sabia ele que muitos dos conceitos que ele utilizou representariam uma mudança dos rumos do conhecimento e estabeleceriam as bases de uma nova e revolucionária ciência.
Embora seja surpreendente para nós que viemos de uma cultura diferente, a origem dos ensinamentos de onde George Lucas tirou para criar sua “Força” eram o resultado de um aprendizado milenar feito a partir da observação da natureza e do próprio ser humano.
Muitos desses ensinamentos milenares são vistos hoje como mistificações, especialmente para aqueles que não cresceram onde estes ensinamentos eram parte do ambiente cultural original.
Mas há um fato estranho sobre todas elas. Elas podem estar carregadas de explicações teológicas sem pé nem cabeça, com todo tipo de mitologia, mas em sua base há um aprendizado sólido sobre como tudo funciona e o que as pessoas devem ou não fazer e que conseqüências haverão a partir dos seus atos. Talvez não haja um paraíso esperando os bons depois da morte, mas aqui se tornará um inferno se todos se tornarem francos pecadores contumazes.
Mas estes ensinamentos milenares não nos servem apenas como regra de conduta moral, mas também nos ensina como transformar o mundo que nos cerca para que tudo seja melhor para todos. Pode não parecer, mas há boa ciência por baixo disso. E isto é algo a ser respeitado.
Mais do que nunca o mundo se revela complexo e assustador, com diferentes colapsos ocorrendo por todos os lados, e a promessa de uma vida tranqüila parece escapar por entre os dedos. A verdade é que mais do que nunca precisamos nos voltar para as antigas e novas sabedorias, que convergem para as leis da natureza, e que nos ensinam como este mundo complexo funciona e como podemos moldá-lo para nossas necessidades, antes que ele mesmo se volte contra nós.
Precisamos dessa sabedoria no gerenciamento municipal do trânsito, nas políticas externas das nações e na relação da nossa civilização planetária junto ao meio ambiente. As ferramentas estão em nossas mãos. Cabe a nós usá-las pelo bem de todos.
É Natal, e a reflexão sobre seu significado é a razão dessa comemoração. Novamente estamos falando de ensinamentos milenares que deixamos de lado para ver se o presente que recebemos satisfaz um desejo imediato de consumo.
Quando falamos aqui em entusiasmo, falamos em algo mais que simples prazer ao volante. Dentro de uma certa tônica, falamos de uma forma de elevação prazerosa do espírito. Lá no fundo, Porsches e Ferraris pouco importam. O que realmente importa é o que esses carros podem fazer pelo nosso espírito. É essa percepção das coisas que temos de expandir para todos os aspectos das nossas vidas.
Esta é a felicidade que desejo a todos os leitores e leitoras para este Natal, e a sabedoria para enfrentar no ciclo que recomeça no Ano Novo.
E aos fãs de “Guerra nas Estrelas” não vou me despedir com a tradicional frase “Que a Força esteja com você”, pois sei que a verdadeira Força estará entre todos nós.
AAD