O meu kit plástico do B-58 deve ter uns 35 anos. Pintado com pincel e montado no mesmo dia, nunca reformado, está com os adesivos amarelados, e já teve o trem de pouso consertado umas três vezes, vítima de movimentos efetuados por pessoas estranhas aos detalhes do aviãozinho.
Tem vários defeitos se formos olhar com olhos de plastimodelistas dedicados ou fanáticos (que não sou), mas eu gosto demais dele, muito mesmo. Não dá para saber por quantas horas já o olhei, voei e fiquei mudando os ângulos em que o coloco sobre e dentro dos móveis, para sempre chegar à mesma conclusão: para mim é o avião mais bonito de todos, em todos os tempos, mesmo eu tendo paixões desenfreadas por outros, como o F-105 Thunderchief ou o Sukhoi 34, isso só para ficar nos militares.
Mas a infância é importante, e foi saindo dela que montei meu Hustler.
O que é um SSB
O grande mérito do B-58 foi ser o primeiro SSB — Supersonic Bomber — bombardeiro supersônico a entrar em operação, voando pela primeira vez em 11 de novembro de 1956.
Nos anos logo após a Segunda Guerra Mundial, a necessidade de um bombardeiro que voasse mais rápido já pressupunha um raio de ação limitado. Até mesmo um caça que conseguisse ultrapassar a velocidade do som parecia um desafio impossível. Aviões grandes tendem a ter alcances maiores que os pequenos, mas assim que a velocidade do som é ultrapassada, a relação sustentação/arrasto (L/D, lift/drag) diminui muito, com um arrasto enorme para a sustentação que é preciso para manter a aeronave em voo, ou seja, muita potência é requerida para se manter altas velocidades, algo lógico.
Exemplo hipotético: um bombardeiro a jato com 45 toneladas de peso, voando a Mach 0,85, pode atingir essa velocidade com empuxo de 2.270 kgf, pois com um bom projeto aerodinâmico, a relação L/D pode chegar a 20. Mas para voar a Mach 2, com mesmo peso e sustentação, o arrasto chega a 11.350 kgf, com L/D de 4. Onze toneladas que precisam ser empurradas constantemente para manter a velocidade de duas vezes a do som. Ou seja, é necessário cinco vezes mais empuxo, o que pode significar no mínimo cinco vezes mais consumo, que pode diminuir muito a distância máxima alcançada. Assim, por essas conclusões, um bombardeiro supersônico era algo de pouco interesse.
Além dessas considerações aerodinâmicas básicas, os motores levavam os problemas mais além. Mais fácil seria uma propulsão por motor foguete, como foi feito no Bell X-1, o primeiro a atingir a velocidade do som e ultrapassá-la, em 14 de outubro de 1947. Esse conceito elimina o problema de desenhar tomadas de ar eficientes para o motor a jato, além de não existir o arrasto aerodinâmico causado pelas entradas. Mas os foguetes levam combustível e comburente, ocupando ainda mais espaço na aeronave. Melhor mesmo deixar o comburente ser o oxigênio, e se preocupar apenas em carregar o combustível. Isso significa que para ser eficiente, trabalhando bem em baixas e altas velocidades, as entradas de ar dos motores precisam variar em perfil e área, o mesmo ocorrendo com a saída dos gases.
Contra a pressão frontal do ar em velocidade, é bem complexo fazer componentes da tomada de ar ter movimentos precisos e na hora exata, e na saída, as temperaturas é que são a preocupação principal, já que naquele tempo, para se voar supersônico, a pós-combustão era sempre necessária, aumentando muito a temperatura no escapamento.
Para tentar deixar menos preocupante a questão do alcance e combustível, se pensava em fazer o bombardeiro um avião-parasita, carregado por uma nave-mãe, que voaria até o mais perto possível do alvo, e depois da missão deste, o recolheria para voltar para casa. Como foi dito no post sobre o M-50, os russos também pensaram nisso, e rapidamente dentro dos EUA utilizou-se as lições aprendidas do programa Ficon feito para o B-36 pela mesma Convair , e essa história de parasita logo morreu.
Descrição geral
O Comando de Pesquisa e Desenvolvimento Aéreo da USAF (United States Air Force) emitiu em 1949 um aviso para se iniciar uma competição entre indústrias aeronáuticas, chamado de GEBO-II (Generalised Bomber Study 2), de maneira a se conceituar o melhor bombardeiro possível de atingir a velocidade do som, para rápido ataque e fuga.
No ano seguinte as respostas começaram a chegar, com propostas usando um mínimo de 4 e um máximo de 16 motores (!). Mas a melhor e mais palpável resposta veio da Convair (Consolidated Vultee Aircraft), em janeiro de 1951, baseada no XF-92 experimental, um avião bem menor, mas com asas em delta.
A Convair já era fornecedora da USAF há tempos, e havia um forte time de engenharia liderado por Raymond C. Sebold. O programa do B-58 ficou sob a direção de August C. Esenwein, que escolheu a configuração em delta sem profundores, com fuselagem bem magra, lembrando um caça longo com dois tripulantes em tandem (um atrás do outro). O grande trunfo da Convair foi fazer um casulo externo que alojava o combustível a ser inicialmente queimado, e as bombas. Em caso de missão real de guerra, após gastar o querosene e lançar as bombas, esse enorme casulo poderia ser alijado, diminuindo a área frontal e o peso do Hustler, ajudando na redução de consumo na volta à base. Uma solução genial, já que fazia o avião com pequena área frontal e muito menos peso do que se a fuselagem toda fosse maior para acomodar tudo que era necessário, além de diferentes missões poderem ser planejadas de acordo com os equipamentos colocados nos diferentes casulos. A versatilidade era muito ampliada dessa forma.
A submissão inicial do programa à USAF foi batizada de FZP-110, com peso de 107.000 lbs (48.578 kg), raio de ação de 1.500 milhas náuticas (nm) ou 2.778 km, com corrida de bombardeio — a velocidade de ataque a alvo — de Mach 1,7. Os motores seriam três General Electric J53, com dois sob as asas e um na cauda, com 7.945 kgf de empuxo cada, sem pós-combustores.
Em março do mesmo ano, a Convair recebeu o contrato da USAF para a fase I, ou seja, o desenvolvimento do conceito em um nível detalhado, agora chamado de USAF MX-1626. Iria competir com a Boeing, que teve o MX-1712 contratado para o mesmo tipo de desenvolvimento complementar. Esse era o procedimento normal, e ambos recebiam verbas vultosas, mesmo se sabendo que um dos concorrentes não ganharia o contrato para produção.
No final de 1951, a Convair havia evoluído o desenho básico para a proposta FZP-016, sem o terceiro motor mas com o J53 agora com pós-combustão e empuxo de 10.760 kgf, adicionando ainda o terceiro tripulante, o operador de sistemas de defesa. Assegurava-se assim Mach 2 após longos estudos, com a vantagem que o avião poderia voar a Mach 0,9 em baixa altitude e alcançar as 1.500 nm de raio de ação. Efetuaria ainda além de bombardeio, lançamento de mísseis, reconhecimento, ataque ao solo e interceptação de longo alcance. Seria então um avião de notável versatilidade, apesar disso nunca ter se concretizado totalmente.
Houve então uma melhoria na área de motores que ajudaria tudo. A GE, sob comando na área de turbinas a gás de Gerhard Neumann, decidira pela construção de um turbojato protótipo com pás do compressor de ângulo variável, ou seja, a incidência com que as pás enfrentavam o ar para comprimi-lo (algo como os turbos de geometria variável que temos hoje em alguns carros de projeto moderno e nos diesel de caminhões há algum tempo). Melhorava assim a proporção compressão-consumo, permitindo maior empuxo para uma mesma quantidade de combustível. Importante também saber que com área ainda menor de entrada de ar, se mantinha o empuxo antes dessa alteração. Ou seja, motor de menor área frontal, com menos consumo e mais empuxo. O motor foi denominado Variable-Stator Experimental Engine – VSXE, apelidado imediatamente de “very sexy” (a turma da aviação tem um ótimo humor), funcionou pela primeira vez em 1951, e se tornou o J79 em produção. O sistema de pós-combustão, que significa jogar a lenha na fogueira como já foi explicado em outros textos, passava a incorporar a novidade de ter pás reguláveis, e poderia atuar progressivamente, não sendo mais “tudo ou nada”.
Para a fuselagem, já estava sendo desenvolvida a “regra de área” (area rule), onde o arrasto da aeronave poderia ser minimizado ao se manter a área frontal igual em todo comprimento do avião. Ou seja, seguindo da frente para trás, onde as asas começam, a fuselagem deveria diminuir, buscando manter a mesma área frontal de impacto contra o vento ao longo do comprimento. Por isso a elegante cintura de vespa do Hustler. Esses estudos prosseguiriam e evoluiriam por muitos anos, e outros aviões saíram de projetos da Convair utilizando essa conceituação, como o Delta Dart. Outras fábricas também empregaram esse recurso.
Para aproveitar o motor agora menor, o avião da Convair viria a adotar quatro motores abaixo das asas, e mudou a designação para MX-1964. O avião da Boeing seria também ótimo, mas durante o programa do bombardeiro supersônico a Boeing venceu a concorrência que se tornaria o B-52, este subsônico e de ultralongo alcance, e no típico comportamento pragmático do governo americano, o programa do supersônico não ficaria com a mesma empresa. Esse é um tipo de pensamento que levou ao desenvolvimento do país de forma homogênea, fomentando empregos em diversas regiões, algo que ao longo das décadas é visível como muito positivo, basta comparar Brasil e Estados Unidos no quesito distribuição de tecnologia, padrões de vida e trabalho e localização de empregos de salários decentes, que lá estão espalhados e aqui, concentrados.
Assim, em agosto de 1952 a Convair foi anunciada como a contratada para a fabricação do primeiro bombardeiro supersônico, que seria operado pelo Strategic Air Command – SAC (Comando Aéreo Estratégico ) e haveria quatro tipos de casulos a serem carregados abaixo da fuselagem. Um para bombas de queda livre (FFBP, free fall bomb pod), outro para câmeras de reconhecimento, um com míssil de cruzeiro supersônico (CBP, cruise bomb pod) e outro com equipamento eletrônico de reconhecimento, com sensores mas não câmeras fotográficas.
Isso configuraria o primeiro sistema de armas da história da aviação, algo que viria a ser comum depois de anos, com um exemplo mais recente e próximo de nós sendo o Saab Gripen que foi comprado pela FAB, que pode ser configurado como caça, bombardeiro ou avião de ataque ao solo com a troca de módulos eletrônicos e armas.
Sendo a Convair a detentora do negócio com a USAF, ela seria a responsável por tudo que estaria entre os diversos sistemas de armas e os operadores da força aérea. Assim, os números sob o comando da Convair eram assustadores. Eram 22 empresas coordenando os trabalhos básicos e grandes (major subcontractors), com 1.223 fornecedores de matérias-primas e componentes padrão, mais de 2.400 fornecedores de peças e conjuntos específicos do avião e para operações dos vários sistemas, e mais de 12.000 outras empresas para serviços e componentes.
Em 10 de dezembro de 1952 a Convair recebeu a notificação final do Pentágono, informando que o MX-1964 passara a se chamar oficialmente B-58, com cartas de contrato sendo emitidas em seguida para 16 unidades de B-58A, e para a General Electric com os J79 necessários. Depois o contrato seria alterado para dois XB-58 protótipos, onze YB-58 protótipos para desenvolvimento e mais 31 casulos. Os dois XB-58 não tiveram os casulos, e são sempre os aviões magrinhos nas fotos, com os motores J79-1 de pré-produção.
A estrutura desses aviões significavam apenas 13,8% do peso total carregado, já que quase toda a asa e outras partes grandes eram feitas em sanduíche de liga de alumínio, com os revestimentos polidos colados com adesivo orgânico, ou parafusados com elementos de titânio onde acesso fácil fosse necessário. As asas tinham longarinas, mas não nervuras, sendo a colmeia de abelha o elemento estrutural que distribui as cargas de modo mais homogêneo possível. Os bordos de ataque e outras áreas de impacto frontal com o ar deveriam resistir a 127 °C, e as áreas de maior temperatura ainda foram feitas com esse mesmo processo de sanduíche, formando a mítica e resistente colmeia de abelha, com os revestimentos de chapa de liga de alumínio fixados por brasagem (como se faz em radiadores de carros), aderindo com perfeição após duas horas a 177 °C e 12 bar.
As asas em formato de delta não tinham aletas móveis que se estendem automaticamente no bordo de ataque (slats), como aviões de menor velocidade a jato já tinham, mas foi projetada com uma conicidade, ou seja, inicia com uma leve curvatura para baixo a partir da raiz na fuselagem até ser muito menos curvada na extremidade mais longe da fuselagem. O efeito é similar ao dos slats, fazendo a camada limite de ar aderida à superfície da asa ter a menor espessura possível, gerando movimento e velocidade no ar logo acima, e consequentemente, energia de sustentação.
Com pequena espessura e os trens de pouso sendo alojados nelas, as asas exigiram carenagens na parte de baixo e de cima para poder acomodar os trens. Para evitar asas mais espessas, os pneus foram escolhidos em dimensões muito pequenas, com oito em cada perna principal, e mais dois na dianteira, para um total de 18 rodas. As pernas do trem de pouso eram as maiores já vistas no que se refere a comprimento, devido à altura das asas em relação ao solo por causa dos motores e ao ângulo do avião em decolagem e pouso, pouco acima de 17°, além do espaço necessário para colocação e retirada dos casulos. Essa combinação de pernas longas e pneus pequenos foram o ponto principal e de problemas ao longo da década de operação do Hustler. Os trens de pouso foram projetados para uso a até 492 km/h, os mais “velozes” de sempre, mas devido aos pneus serem pequenos para caberem nas asas esguias, a velocidade periférica da banda de rodagem era muito alta, e estouros após o pouso ocorreram muitas vezes.
A cinemática de ambos é notável, com os principais recolhendo para trás, após dobrar a perna principal e mais a ligação menor dianteira. O trem dianteiro subia e rotacionava para trás, já que apenas dobrar para trás não era possível devido à posição do nariz do casulo, que ficava bem próximo.
As superfícies de comando das asa, chamadas de elevons por combinarem a função de profundores (ou elevadores) e ailerons, ocupavam um oitavo da área das asas e podiam ser movidos 20º por segundo, impulsionados por quatro unidades de movimento.
As naceles dos motores tinham entradas circulares, com os pontas ou spikes retraídas para decolagem, permitindo grandes volumes de ar entrando nos quatro motores. Em velocidades cada vez maiores, as pontas eram avançadas. De controle automático, se falhassem seriam quase fatais, podendo arrancar um motor da asa. O som do movimento dos spikes era audível por dentro do avião, mesmo a duas vezes a velocidade do som, e facilmente entendíveis pela tripulação quando funcionavam bem ou se tivessem problemas, causando um buzz noise (zunido) que servia como aviso antes das luzes de alerta de problema acenderem.
A área frontal do avião era pequena ao extremo, e isso fazia o avião ser desconfortável, antes do SAC exigir bancos de maior espaço e conforto. O general Curtis LeMay, comandante do SAC, ao sair de dentro do mock-up na fase de projeto disse: “ Não cabe meu traseiro”. LeMay comandou a força de bombardeiros americana de 1948 a 1957, e é dono de uma frase notavelmente realista, e que jamais se coadunaria com a vida politicamente correta e chata de hoje:
I’ll tell you what war is about. You’ve got to kill people, and when you’ve killed enough they stop fighting. (Eu vou lhe dizer o que é a guerra. Você tem que matar pessoas, e quando você matar o bastante, eles param de lutar).
A fuselagem era tão estreita e esbelta que o cockpit para os três tripulantes ocupava quase metade do volume dela. Isso fazia a aparência do Hustler lembrar muito a de um caça muito grande com motores enormes debaixo das asas, e não tanto um bombardeiro de oitenta toneladas. O espaço interno foi desenvolvido a ponto de se tornar muito menos problemático, com relativo conforto, já que o SAC tinha seus requisitos muito detalhados para bancos de tripulantes, que sempre estariam submetidos a muitas horas de voo, sentados e sem poder andar.
O piloto tinha o parabrisa em forma de “V”, dividido em dois, belíssimo, depois o bombardeador/navegador apenas com janelas laterais, com o equipamento mais complexo já colocado em um avião até aquela data, o ASQ-42(V) da Sperry, que combinava sete subsistemas: proa, vertical, navegação, visualização de alvo, bombardeamento, indicadores e mau funcionamento, todos servidos pelo radar dentro do nariz, um radar do tipo Doppler na cauda, uma plataforma inercial no centro do avião , o Astrotracker, que travava a posição de estrelas selecionadas acima da aeronave e as usava como referência, altímetros-radar nas duas extremidades do avião e um computador para reunir todas essas informações. Computador analógico, obviamente. O sistema tinha que interligar dúzias de variáveis, todas ao mesmo tempo. Uma bomba atômica não poderia ser lançada sem considerar erros de navegação, altitude acima da que ela foi projetada para explodir, velocidade e direção dos ventos em diversas altitudes, densidades do ar, força de Coriolis, atitude (ângulo) do avião, velocidade horizontal e vertical do avião no ponto de lançamento.
O sistema da Sperry foi depois modificado para acompanhar o solo, para os voos a baixa altura que passaram a ser necessários depois dos sistemas de radar evoluírem muito e causarem mudanças de estratégia de penetração em território inimigo, para desagrado do SAC de maneira geral, que tinha o costume de voar longe, alto e rápido, planejando ataques a uma altitude em que o inimigo nem mesmo veria facilmente o que o atacou.
O terceiro tripulante era o DSO (Defense Systems Operator – operador de sistemas de defesa), cuidando dos alertas dos radares apontados para frente e para trás. O seu sistema era o ALQ-16, que tinha confundidores de radar (jammers), e o ALR-12. Este tinha os dispensadores de chaff , pequenas tiras metal para produzir reflexos nos radares inimigos e camuflar eletronicamente o B-58. Eram cinco caixas desse recurso localizadas atrás de cada alojamento dos trens de pouso, nas asas. Esse tripulante também via a imagem do radar de cauda, que permitia mirar e disparar o canhão rotativo M61A1 de seis canos de 20 mm de calibre, que tinha 1.120 projéteis, caso um interceptador seguisse o Hustler. Em torno desse canhão o cone de cauda era submetido a temperaturas altas em caso de disparo, sendo, portanto, articulado. Formado por anéis cônicos montados um dentro do outro e se empurrando por molas, ele se expandia ou encolhia conforme a temperatura.
Os três ocupantes entravam por coberturas superiores individuais, e cada um ficava alojado em uma cápsula, que podia ser fechada na frente e selada por capas para ejeção por cima. Isso funcionava à velocidade máxima de Mach 2, quando a pressão do ar era de 6.000 bar. A cápsula caía livre até 3.000 m, quando o paraquedas se abria. Imagine cair desde os 19.300 m até 3.000 m torcendo pelo funcionamento de seu salvador de nylon…
Essas cápsulas flutuavam na água, tinham forma para serem usadas como um bote, e tinham água, ração de emergência, protetor solar e vara de pesca com isca. Só depois de quase quatro anos em serviço, em 1963, é que a validação foi concluída, com um urso marrom vivo sendo ejetado a 1.706 km/h a 13.716 m de altitude.
Mas as pequenas altitudes passaram a ser prioridade, e muitos ensaios foram feitos a 150 metros do solo. O motor de produção normal foi o J79 na versão 3B, que conseguia manter um funcionamento com eficiência ótima a Mach 0,925 voando a essa altura do solo. Dessa forma, foi realizado um voo sem escalas de Fort Worth, Texas, sede da Convair, até Edwards, Califórnia, a base aérea campo de provas da USAF a essa velocidade, cobrindo 2.253 km.
A estrutura era feita para trabalhar a +2 /0 g com peso máximo de decolagem, e até 3 g com peso de 45.000 kg, e não havia sistema para amortecer turbulências que são muito comuns voando tão baixo. Isso abusava da estrutura, e já se previa que a vida útil das células seria assim reduzida em relação ao uso em grandes altitudes.
A apresentação do avião ao ar livre (roll-out) foi feito em 31 de agosto e 1956, quando muita gente nunca havia imaginado como seria o Hustler, que foi desenvolvido da forma mais discreta possível. Só em 11 de novembro foi feito o primeiro voo, e Mach 1 foi atingido em 30 de dezembro.
A quantidade máxima de combustível JP-4, armazenado na fuselagem e no casulo dava um total de 57.534 litros. Mesmo assim depois das decolagens ele era reabastecido em voo para prosseguir com a missão, e para atingir velocidade supersônica se passava combustível da dianteira para a parte de trás do avião, para manter o equilíbrio.
O projeto de aerodinâmica foi muito bem cuidado em todos os detalhes. O B-58 se aproximava para pouso com 333 km/h e pousava com 277 km/h, velocidades que podem ser consideradas baixas para uma velocidade máxima de duas vezes a do som, e similares a de aviões de passageiros atuais, até mesmo mais leves.
Algumas unidades de treinamento foram construídas e batizadas de TB-58, esses tem janelas maiores após a do piloto, e visibilidade para frente mesmo do banco traseiro, para permitir um trabalho mais simples de treinador, que senta atrás, e aluno.
Em dezembro de 1959 a USAF incorporou o Hustler em serviço ativo, e logo em setembro do ano seguinte, o B-58 ficou em segundo lugar, atrás apenas de uma tripulação de B-52 na competição interna do SAC, sendo o melhor avião a acertar os alvos fictícios a baixa e também grande altitude, para incredulidade das tripulações de B-47 e B-52, que já tinham vários anos de uso e por isso mesmo já consagrados e bem aprendidos pelas tripulações.
Recordes e similares
Os B-58 da 43ª Ala baseada em Little Rock, Arkansas, bateram alguns recordes importantes. Um deles foi percorrer 2.000 km com até 2.000 kg de carga a uma velocidade média de 1.708,75 km/h. O troféu Thompson, com os mesmo requisitos, mas aplicável a um circuito de 1.000 km, foi vencido com uma média de 2.067,6 km/h carregando 2.000 kg.
O troféu Blériot, criado por Louis Blériot, o primeiro piloto a atravessar o Canal da Mancha, e destinado a quem voasse a mais de 2.000 km/h por um mínimo de 30 minutos foi vencido pela primeira vez por um B-58, que fez um circuito saindo e voltando da base aérea Edwards comandado pelo sistema ASQ-42 (V), percorrendo 1.073 km em 30 min e 43 segundos, resultando em uma velocidade média de 2.095 km/h nos 30 minutos.
Saindo da base da USAF Carswell, junto de Forth Worth, Texas, em 26 de maio de 1961, uma tripulação voou até Nova York a Mach 0,93 e depois acelerou, reabastecendo sobre a Gronlândia, e pousando em Paris para o Salão bienal. Bateu-se o recorde de travessia do Atlântico, com o tempo desde Nova York sendo 3 h 19 min 51 s, para 1.752 km/h de média.
Em 5 de março de 1962 uma outra tripulação também da 43ª Ala de bombardeiros saiu de Carswell para oeste, para um ponto sobre o Pacífico próximo de Los Angeles, depois para leste até Nova York, em seguida de volta a Los Angeles, com tempo de 4h 41 min 11 s, para média de 1.682 km/h, incluindo os reabastecimentos no ar. Esse voo resultou no Troféu Bendix para a tripulação, na última edição que premiava feitos relacionados a velocidades. Hoje o prêmio se chama Honeywell Bendix, e é dedicado a avanços na segurança aérea.
Em 16 de outubro de 1963 foi feito um exercício para demonstrar a real capacidade de bombardeio estratégico supersônico. O B-58 de matrícula 61-2059 partiu do Japão, base da USAF Kadena, e após cinco reabastecimentos e com um motor sem pós-combustão após o último deles, o que limitou a velocidade a Mach 1,4, pousou em Greenham Common, base da RAF (Força Aérea Real) próxima de Londres. Mesmo com esse problema, a velocidade média foi de 1.510 km/h e cinco horas foram passadas em velocidade acima daquela do som, das 8 h e 35 min totais de voo. O melhor de tudo foi o nome de batismo dessa aeronave para o exercício, Greased Lightning (relâmpago engraxado), na linha de bom humor aeronáutico.
Nos ensaios de saída de ataque (scramble), desde o momento de ligar os motores até a decolagem não se passavam mais de 5 minutos, um tempo que nenhum outro avião grande conseguia superar. O recorde nessas operações de saída foi estabelecido em 2 min e 10 segundos, na competição entre as alas de bombardeiros do SAC.
É chegada a aposentadoria
Em 31 de janeiro de 1970 foram desativados da USAF, devido aos seus altos custos e à necessidade constante de reabastecimento aéreo para qualquer missão que se fizesse real. Isso tudo ocorria mesmo com o seu sucessor, o XB-70, que voaria a Mach 3, não tendo sido construído e aprovado para produção, ficando apenas nos protótipos.
Além disso, os esforços estruturais por voar mais baixo do que inicialmente definido, e muito rápido a maior parte do tempo, já mostravam que as células que foram projetadas com vida útil de 7.000 horas não poderiam ir muito além de 1970 sem grandes reformas, e claramente os custos seriam enormes.
Muitas variantes foram estudadas, entre elas o Convair 58-9, uma versão bem diferente, para 52 passageiros, que seria uma primeira opção civil para esse uso, antes dos muito maiores Concorde, Boeing SST e Lockheed 2000, os aviões de passageiros grandes que foram conceituados alguns anos à frente. Pelos custos de combustível já se pode supor que mesmo que fosse construído, 52 passageiros teriam que pagar um preço alto pelas viagens, já que o Concorde, com 100 passageiros era quase sempre economicamente inviável.
Mais uma aeronave excepcional via sua aposentadoria chegar de forma desagradável e deixando seus fãs entristecidos.
O museu da USAF, em Dayton, Ohio, tem hoje em seu acervo um exemplar magnífico, o vencedor dos troféus Blériot e Bendix, matrícula 59-2458 e apelidado de Cowtown Hustler. Tem quase toda sua superfície externa polida a um nível quase de espelhamento, como nunca foram os aviões em uso normal, o que o torna uma joia de valor inestimável. Um dia irei até lá me ajoelhar diante dele, e acredito que lágrimas cairão diante de tamanha beleza.
Para saber mais
O livro básico para conhecer os detalhes do B-58 é de Jay Miller, um autor de dezenas de livros que é um adorador de detalhes e de achar o fio da meada e puxá-lo até não mais poder. Apenas para se entender melhor, o autor explora a sequência de fatos técnicos, militares e políticos que levaram até a criação do avião nos quatro primeiros capítulos, incluindo as origens da asa em formato triangular (delta), desde 1903. Apenas no quinto capítulo, na pagina 27, é que o B-58 entra em cena. O título é Convair B-58 Hustler – The World’s First Supersonic Bomber, da editora Aerofax. Tem centenas de fotos e no mínimo mais uma centena de desenhos, além de texto enorme e detalhado. O ponto negativo é que por não ser um livro caro, foi muito contido na quantidade de páginas e no tamanho das ilustrações, e muitas delas para serem apreciadas em sua totalidade necessitam de lupas. Não há também muitas fotos coloridas. Tem 152 páginas, mas não se engane por isso, há muito para ver e ler nelas.
No YouTube há muitos vídeos com o B-58, já que ele foi um dos aviões mais bem documentados da época da Guerra Fria, e até mesmo um de boa qualidade que mostra o primeiro voo está disponível.
Também as operações a baixa altura do solo são ótimas de se assistir:
Um pouso de emergência excepcionalmente bem executado:
https://www.youtube.com/watch?v=dZu_ONVE90Y
Além daquele com a conquista do Bendix Trophy:
Dados principais
Motores: quatro General Electric J79-GE5 – empuxo 4.540 kgf, 7.082 kgf com pós-combustão
Envergadura 17,32m
Comprimento 29,49m
Altura 8,9 m
Área alar 143,35m²
Carga alar 215 kg/m²
Peso vazio sem casulo 25.202 kg
Peso máximo de decolagem 73.973 kg
Peso máximo após reabastecimento aéreo 80.342 kg
Velocidades:
– máxima ao nível do mar 1.128 km/h
– altitude de 12.000 m, Mach 2 (aprox. 2120 km/h)
– de cruzeiro 985 km/h
Alcance sem reabastecimento 7.593 km
Raio de ação de combate 3.220 km
Teto de serviço 19.300 m
Razão de subida com peso máximo 88 m/s (17.400 ft/min)
Coeficiente de arrasto 0,0068
JJ