Dearborn é uma cidade da região metropolitana de Detroit, a capital americana do automóvel, e local da sede mundial da Ford Motor Company. Habitual entre os americanos é o respeito e culto pelo passado de sua nação, e como uma das mais importantes empresas americanas, a Ford não poderia deixar de ter seu acervo. Apesar de obviamente utilizar o nome de seu fundador, o museu é uma empresa independente da fábrica dos carros, não é mantida por ela.
Na biografia de Henry Ford, “The People’s Tycoon: Henry Ford and the American Century” (O magnata do povo: Henry Ford e o Século Americano), o autor Steven Watts detalha o interesse de Ford em resguardar a história de seu país, que começou com a coleção pessoal iniciada em 1906, e depois, já dono de uma das maiores fortunas do mundo, a busca e compra de um enorme número de itens por anos a fio, para depois começar a organizá-los. Se você tem interesse em saber de verdade quem e como era Henry Ford, com tudo de bom e de ruim que ele tinha, leia este livro. O seu acervo está no museu, mesmo que nem tudo esteja exposto todo o tempo, pois a área de 49.000 m² onde estão veículos, máquinas e itens residenciais, mais os 360.000 m² do Greenfield Village, não são suficientes para mostrar tudo de forma correta.
O complexo é também conhecido como The Henry Ford, e abrange além do museu fechado que visitei, o Greenfield Village que não tive tempo de vasculhar, uma área ao ar livre com várias construções transplantadas, como a primeira fábrica de Ford, o laboratório de Thomas Edison, a casa dos irmãos Wright junto com a sua oficina de bicicletas, e várias outras. No Greenfield Village há alguns Ford T que rodam pelas ruas internas, levando os visitantes. É outro lugar em que preciso voltar um dia, e entender do que se trata de forma detalhada.
Mas vamos ao que há de mais veicular no museu, começando pela entrada, onde depois de um belo corredor de acesso, se chega ao saguão principal, e um Douglas DC-3, talvez o mais importante avião comercial de todos os tempos, está suspenso bem defronte à entrada. Este foi voado por 84.875 horas, algo como quase dez anos no ar. Seu período de serviço regular foi de 1939 a 1975.
O Flivver é um pequeno avião apenas para o piloto, com dimensões definidas pelo desejo de Henry Ford de fabricar uma aeronave que coubesse em seu escritório. Foram construídos apenas três ou quatro desses, o número correto nem mesmo existe nos registros da empresa, e ele tem um motor de apenas 35 hp. Voava até a 85 mph (136 km/h), e pode-se dizer que foi uma tentativa de fazer um avião popular, pecando principalmente por ser um monoplace, não permitindo ninguém além do piloto.
O Ford Trimotor já fez bem mais sucesso, sendo um avião de passageiros de verdade, para 15 passageiros mais piloto e copiloto. Tinha construção metálica, e a superfície externa em chapas onduladas de alumínio, era responsável por boa parte da resistência. Voando pela primeira vez em 1925, teve 199 exemplares construídos, e foi usado em muitos países, tanto em operações civis quanto militares. Dezoito deles ainda existem, oito em condições de voo.
Passando para os automóveis, principal motivo para visitar o local, procurei pelo quadriciclo de Ford, construído por ele em 1896 e primeiro carro da marca. Lá estava em toda sua pequenez física e grandeza histórica, com os nomes de seus parceiros, David Bell, James Bishop, George Cato e Edward Huff, todos devidamente creditados. Está explicado que Henry poderia ter feito seu primeiro modelo movido a eletricidade ou a vapor, como dezenas de outros pioneiros da indústria haviam feito, mas ele escolheu o motor a combustão interna movido a gasolina pela praticidade. O motor era de dois cilindros horizontais em linha, 4 hp a 500 rpm e 0,97 litro de cilindrada, e o câmbio de duas marchas à frente sem marcha a ré. Junto do Ford há outros modelos iniciais de marcas como a Oldsmobile, com um exemplar de 1903 e um Locomobile a vapor de 1899.
O carro mais caro no ano de 1956 fabricado nos EUA era um Lincoln Continental Mk II, a marca de luxo da Ford. Custava US$ 10 mil, e Frank Sinatra teve um. Ao lado dele está estacionado uma das grandes realizações do mundo dos motores, um dos seis Bugatti Royale que existem. Esse tem carroceria alemã, fabricada em Munique, por Ludwig Weinberger, como indica a plaqueta, é conversível e está em estado de perfeição. Grande, muito grande, apesar de ter apenas duas portas, e a carronalidade (personalidade dos carros) está presente aos montes. Junto do Continental é mais fácil entender o tamanho do Royale.
Oposto a isso tudo é o Scripps-Booth Cyclecar de 1913, exemplo de carro barato e simples ao extremo. A transmissão final externa choca hoje, mas era até comum naquele tempo. O ponto interessante é que não era por corrente metálica, que requer lubrificação por graxa, mas por correia dentada de borracha, para mais silêncio e menos risco de ferimentos graves em caso de quebra. Tem apenas dois lugares em tandem, um atrás do outro, com o passageiro na frente. Mas ele durou pouco tempo em produção, devido ao preço do Ford T, que em 1917 custava 25 dólares a menos, e levava 5 pessoas, com capota e para-brisa. Era um carro para entusiastas radicais, minoria já naquela época.
Mas quando se fala em refinamento de automóveis no início do século 20 sempre se lembra da marca Duesenberg. O museu não poderia deixar de ter um carro desses, e o modelo J de 1931 com carroceria Victoria conversível é o escolhido. Carro lindíssimo para a maioria, mas quem não conhece vai achar apenas que é um “calhambeque” grande (arrepios de Frederick e August lá do alto). Com 265 hp, chegava a 116 mph (186 km/h) , imagine que maravilha poder dirigir ou ter algo assim naquele tempo. Os Duesenbergs são considerados como os melhores carros do mundo por muitos historiadores devido à sua qualidade e desempenho para a época em que foi criado. Veja matérias aqui nesses links:
Duesenberg, o melhor
O outro Duesenberg
Detalhes de um Duesenberg
Duesenberg J 1931
Há um Escort GLX americano de 1981, o primeiro ano de fabricação por lá, e de estilo muito pior do que o que tivemos no Brasil. O nosso era quase idêntico ao europeu, exceto por níveis de acabamento e motorização. Fomos sortudos, já que aquela grade, faróis, pneus com faixa branca e enormes para-choques dão um desgosto grande só de olhar. Pela altura e posição das rodas dianteiras, estava sem motor.
Um Honda Accord 1983 foi o primeiro carro de marca japonesa a ser fabricado nos EUA, em Marysville, Ohio. O museu tem o exemplar número 1 do modelo, e fica patente a importância e independência com que o acervo é tratado, expondo carros importantes de muitas marcas, de várias épocas e, dessa forma, não poderiam faltar o Volkswagen sedã, nosso querido Fusca, e nem mesmo um magnífico Corvette, colocado junto de um Ford Taurus, mostrando dois carros modernos e importantíssimos a seu tempo.
Além deles, um Chevrolet Corvair e um Bel Air 1956 compõe, uma “rua” com carros importantes de vários fabricantes e épocas.
Decepção total foi não encontrar o Lotus 38/1, o primeiro carro com motor central-traseiro a vencer a 500 Milhas de Indianápolis, isso em 1965. Antes dele, até 1962, apenas carros com motor dianteiro corriam nessa prova. Os carros do museu são frequentemente emprestados para eventos ou outras exposições, e não tive sorte de ver essa joia da história das corridas. Coloquei uma foto apenas para ilustrar o carro que não vi, com Clark a bordo, em Indianápolis.
Para compensar essa ausência, a chance de ver de pertinho carros mais antigos que buscavam velocidades nunca antes atingidas pelo homem é impagável. O 999 foi (foto de abertura) um carro desenhado e construído por Henry Ford com ajuda de sua ainda pequena equipe em 1902. Vê-lo de perto, todo gasto, em sua absoluta nudez e crueza me faz pensar que é o mais próximo que um carro pode chegar de uma cadeira elétrica, apesar dele ser movido a gasolina mesmo.
Um ano antes o próprio Henry havia vencido uma corrida contra Alexander Winton, outro fabricante cuja marca era seu nome de família, em uma corrida de 10 milhas (16,1 km) em um hipódromo em Grosse Pointe, no carro chamado apenas de Sweepstakes, e resolveu fazer algo mais selvagem, que foi justamente o 999. Com todas as possíveis melhorias que eram conhecidas naquele tempo, o 999 chegou a 147,05 km/h em 1904 com Ford no comando e seu mecânico de anos de parceria, Ed “Spyder” Huff no acelerador. De arrepiar. Tinha entre 70 e 100 hp estimados, já que nunca se mediu a potência de forma científica, provida pelo motor de quatro cilindros em linha e 18,9 litros de cilindrada.
Há várias locomotivas de épocas e usos diferentes, algo incrível de se imaginar dentro de um edifício como este, antiga fábrica da Ford. A mais impressionante é a máquina da classe Allegheny,de 1941, um monstro de 603 toneladas movido a carvão, com quatro cilindros, que chegava a 60 milhas por hora (96,5 km/h). A potência chegava próximo de 8.000 hp, podendo rebocar uma composição de mais de 1,5 km. Duraram pouco, apenas 15 anos de uso para as 60 unidades fabricadas. As máquinas a diesel eram mais econômicas e de operação muito mais simples, e a Allegheny foi fabricada quando estas já começavam a despontar. Um dos maiores problemas das máquinas a vapor é o tempo de aquecimento da água para gerar vapor em pressão e quantidade suficiente para tirar as composições de milhares de toneladas da imobilidade. Esta maravilha da era das locomotivas a vapor chegou ao museu por meios próprios, quando foi desligada para sempre.
Outra máquina que chama atenção é um snow plow (um arado para neve em tradução livre) canadense com desenho de defletor, que pegava a neve acumulada e jogava para os lados. Não tem motor próprio, sendo engatada à frente de uma locomotiva. Pesa 20 toneladas e essa em exposição é de uma sequência de 36 que foram construídas entre 1920 e 1929. Graças a máquinas como essa era possível não interromper a ligação entre cidades canadenses e do norte dos EUA nas épocas das piores nevascas.
Incrível mesmo é estar bem diante de outros carros históricos da Ford, como o Mustang I, o protótipo com motor central-traseiro apresentado em 1962. O carro é completamente diferente do que foi aprovado para produção, está sem restauração e até é possível ver um pequeno amassado na borda dianteira, entre as letras FORD. Conhecido por fotos, nunca imaginei que pudesse ser tão atraente ao vivo. Um daqueles carros que precisa ser visto de perto antes de emitir opinião sobre sua aparência. Como se não bastasse, ele está ao lado de um dos primeiros Mustangs de série, um conversível branco que tem o número de chassi 100001, mas que pode ou não ser o primeiro a ser concluído na fábrica. As informações sobre o qual é o primeiro são muitas, e só isso já dá um texto à parte.
Outro que paralisa os entusiastas das corridas é o GT40 Mark IV, o modelo de melhor aerodinâmica de todos, vencedor de Le Mans em 1967 com pilotos americanos: Dan Gurney e A.J. Foyt. Falei mais sobre ele aqui nesse texto, cheio de números.
Continuando nos carros de corrida, um Fusion da Nascar que venceu Daytona em 2011, batido, ralado e sujo como saiu da corrida, e cheio de papeizinhos coloridos que são lançados para o ar na comemoração grudados à sua carenagem. Só parece um Fusion, pois é um carro de chassi tubular.
Os Miller-Ford foram carros feitos para Indianápolis. Utilizando motor da marca, Harry Miller, um fabricante primeiro de carburadores, depois de motores e em seguida de carros completos, não conseguiu sucesso devido a quebras de componentes não relacionados aos motores. A caixa de direção ficava muito próxima do coletor de escapamento. Com o aquecimento, as engrenagens da direção se expandiam e travavam, defeito claramente ocorrido pela pressa em fabricar os dez carros que haviam sido planejados, dos quais apenas quatro ficaram prontos e foram para a competição de 1935. O carro tinha suspensão independente nas quatro rodas, algo incomum para o tempo e para a aplicação, que tinha o eixo traseiro rígido como premissa para resistência. E tinha tração dianteira. Uma pena, seria lindo ver essa beleza cruzando a linha de chegada.
Há uma parte da exposição com carros dotados de motores diferentes, como um Chrysler movido a turbina a gás, fabricado em 1963, e um GM EV1, elétrico, carro de história conturbada por quase todos dos 1.117 produzidos em 1996/1997 terem sido retomados dos clientes terminado o período de leasing (nunca foram vendidos), gerando protestos de toda ordem. O fato é que a GM não pretendia continuar com o programa e, além disso, teria que continuar prestando assistência técnica e fornecendo peças, o que seria inviável por ser uma série muito pequena.
A história gerou um filme — sensacionalista, sem fundamento— de 2006 exibido nos cinemas (não no Brasil) intitulado “Who Killed The Electric Car?” (Quem Matou o Carro Elétrico?). Quarenta deles foram doados a universidades, museus e outras organizações educativas, mas com o sistema de propulsão desativado. A bateria ainda era hidreto metálico, muito inferior à de íons de lítio que estava despontando. A GM não se furtaria a produzir um carro elétrico conveniente, de quatro lugares (apenas dois no EV1), o que aconteceria em dezembro de 2010: o Chevrolet Volt.
Notável também o Woods Dual-Power, com motor a gasolina e outro elétrico, um híbrido com o conceito atual, mas fabricado em 1916, fazendo um século agora.
Pela primeira vez pude ver um motor Wankel aberto, com o mítico rotor triangular de faces curvas, e sua simplicidade e lógica sobre os nossos motores alternativos se faz muito forte. Um dia isso precisa dar certo para produções normais e de grande escala. Acelerar, frear até parar, acelerar no sentido contrário, frear e parar, para repetir todo esse processo com os pistões centenas de vezes por segundo é algo que parece pouco inteligente quando se vê o funcionamento de um motor rotativo.
Várias limusines presidenciais americanas estão no local, sendo digno de nota o Lincoln Continental, nome código SS-100-X, onde John Kennedy foi assassinado. Lúgubre mas quase inacreditável poder estar perto desse carro. Exposto, tem capota fixa, diferente de como foi usado pelo presidente americano naquele dia fatídico. O motivo é que o carro foi blindado depois do ocorrido, e ficou em serviço até 1978, quando foi enviado ao museu.
Muito mais está no Henry Ford Museum, mais um daqueles lugares a serem visitados com muita calma. Uma visita apenas é pouco. Há também a possibilidade de fazer o tour pela fábrica River Rouge, próxima do local, onde as picapes da marca são fabricadas, além de extensa programação de eventos sobre vários assuntos.
O museu fica na 20900 Oakwood Boulevard, junto do Centro de Desenvolvimento da Ford, em Dearborn, a 10 km do aeroporto de Detroit.
Site do museu: https://www.thehenryford.org/
JJ