“I’d trade all my tomorrows for one single yesterday.”
(“Eu trocaria todos os meus amanhãs por apenas um ontem.” – Janis Joplin, Me and Bobby Mcgee)
Intelectualmente, é fácil é refutar a nostalgia. Afinal de contas, é inútil ter saudade do passado, porque ele simplesmente passou. Vale mais a pena arrumar outra coisa legal para fazer e tocar a vida pra frente. Lógica simples, clara, irrefutável.
Mas por que então permanecemos ligados fortemente ao passado, sofrendo por tudo ser diferente e irreconhecível hoje? Por que permanecemos comprando carros modernos que desesperadamente tentam se ligar de alguma forma ao passado, de Porsche 911 a Fuscas, de Fiat 500 a Rolls-Royces? Se é ilógico se prender ao passado, por que o fazemos tão freqüentemente?
Simplesmente porque não há lógica na emoção. Já foi dito que a nostalgia é o desejo de estar em casa, uma concisa e perfeita definição. É uma maneira mais ampla e civilizada de dizer: eu quero a minha mãe. Por isso a nostalgia não é popular entre jovens, mas o é entre os que passaram desta fase: na vida adulta há poucas certezas e caminhos conhecidos. O apelo do conhecido, certo, sem erro, é muito atraente. Sonhamos com a segurança e familiaridade do passado que, como nossas casas, como o colo de nossas mães, nos parece deliciosamente seguro e aconchegante.
E é um sentimento ainda mais inevitável quando se fala de automóvel. Diferente de outros casos de nostalgia, é possível ainda hoje experimentar carros do passado. Diferente das pessoas, um automóvel, se bem cuidado, não muda a sua aparência, não fica mais fraco, e dificilmente morre por completo. Diferente de nós, mesmo se ferido gravemente, absolutamente tudo pode ser consertado. Um automóvel bem cuidado com muito tempo de vida é uma verdadeira máquina do tempo, um testemunho vivo de sua época, um pedacinho do passado que pode ser experimentado hoje. Dentro de um carro antigo se vive uma época passada, como um casulo de 1970 (ou outro ano qualquer) se movimentando por 2014. E tem gente que ainda não entende por que os amamos tanto…
Não há vergonha em ser nostálgico, portanto. Na verdade, toda a lógica de que não se pode revisitar o passado não é válida para os automóveis. Existem carros de mais de 100 anos que sobreviveram duas gerações de donos e ainda podem servir de máquina do tempo para uma nova geração de entusiastas. Podemos, sim, voltar para casa.
Mas muitas vezes essa volta pode ser decepcionante. O carro continua evoluindo a passos largos, e um carro moderno pode ser surpreendentemente incrível. Para pessoas que não se mantiveram em contato com carros mais velhinhos, sair de algo moderno e andar num carro de 20 anos pode ser um choque. Por outro lado, não há como negar o apelo da simplicidade, intimidade e cumplicidade que os carros mais velhinhos demandam. Andar de carro antigo é algo que requer dedicação e intimidade com a máquina, coisa que pode ser facilmente dispensada num novo.
Qual é o melhor, então, para o entusiasta? Foi exatamente por isso que, por ensejo de pegar um BMW 320i ActiveFlex novo para avaliação, resolvemos fazer este post comparando-o à minha conhecida BMW 328i Touring de 1996. Será que perdemos mais que ganhamos, ou o carro moderno realmente, como deve ser, suplanta o mais velhinho em absolutamente tudo?
A primeira coisa que vou fazer ao falar sobre este assunto é tentar jogar alguma luz sobre o assunto do carro usado ser bem melhor que o zero-km. Muita gente entre os entusiastas vive dizendo que é burrice comprar carro novo, que o melhor é comprar algo usadinho mais interessante, porque é a mesma coisa, bem mais barata. Acho que estou em boa posição para falar sobre isso, porque tenho dois carros com mais de dez anos na garagem, e eles são os únicos meios de transporte da família, mas já tive vários carros comprados zero-km também. E sobre isso tenho a dizer que quem acha mesmo que carro usado é melhor que novo só pode estar dentro de duas situações: ou não tem dinheiro para manter um carro novo decente (meu caso) e não quer admitir este fato, ou é simplesmente masoquista. Carro usado é mais barato para ter e manter, sem dúvida, mas a paz de espírito de um carro zero-km é uma das melhores coisas que já tive. E se negar essa paz de espírito apenas por causa de dinheiro, se você tem este dinheiro, é de uma pobreza sem fim. Estou devendo a alguns leitores que pediram um post sobre o que é viver no dia-a-dia com um BMW de 20 anos de idade, mas ainda não o fiz porque seria imensamente longo e enfadonho. Posso resumir dizendo que quando tiver sucesso em trocar todas as peças do carro, as que troquei em primeiro lugar vão precisar de reposição. É um trabalho que nunca acaba.
Não, o que vamos comparar aqui não é custo de manutenção ou preço de compra e venda. Quem acha que pode ter tudo que um BMW zero-km tem por uma fração de seu preço comprando uma usada sofre da síndrome de Gérson, ainda que em estágio não-terminal e passível de cura. Vamos tirar isso logo da frente e explicar que não é isso que queremos dizer. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como dizia o saudoso mestre Rui Blanco.
O que queremos saber aqui é se a óbvia evolução técnica do carro moderno só trouxe vantagens, ou se perdemos algo no caminho. Esta é a questão.
Comparando velho e novo
O BMW série 3 é um bom modo de comparar carros velhos e novos. Sempre o carro-chefe da marca bávara, a marca vinha por muitos anos recebendo críticas por engordar e anestesiar seus sedãs série 3. Depois de duas gerações de imenso sucesso entre os entusiastas (E30 de 1982 a 1991 e E36 de 1991 a 1998), os carros passaram a ficar cada vez maiores, mais pesados e menos ágeis, a cada nova geração. Mas com o aparecimento do modelo atual (F30) em 2011, parece que a tendência se reverteu, e segundo a empresa, era uma tentativa de estar mais perto das gerações mais amadas da 3, especialmente as E36, como a perua 328i desta comparação.
De cara, um carro do lado do outro, pode-se ver que a série 3 cresceu em tamanho nesses 20 anos que separam as duas. Mas não muito. O entre-eixos aumentou (de 2.700 para 2.810 mm), bem como a largura, ambos visivelmente. O comprimento total aumentou também (de 4.433 para 4.624 mm), mas a posição do motorista no carro, o pequeno balanço dianteiro e a contida altura total mostram claramente que o novo é uma evolução do velho.
Dentro, se vê onde a largura aumentou. As colunas A e B, e a soleira de porta são larguíssimas no 320i. Carros modernos são construídos para proteger seus ocupantes em acidentes, e portanto são inerentemente maiores que similares antigos, mantendo-se o volume interno inalterado. Mas no caso do 320i, o volume interno também cresceu. O E36 é um carro bem pequeno por dentro, chegando a dificultar seu uso para famílias com crianças acima de 12 anos. É realmente compacto, principalmente comparada com o 320i moderno, que apesar de não ser também enorme, já é um carro com um espaço interno bem mais aceitável, principalmente na largura e no banco traseiro.
O acabamento interno, e o nível de equipamentos é também muito superior no carro mais novo, que conta inclusive com uma tela colorida multimídia bem no meio do painel, controlada pelo famoso i-drive no console. A única mídia (nada de multi aqui, é mídia no singular) original dos E36 era um rádio com toca-fitas e uma disqueteira de seis discos no porta-malas. Evoluímos muito aqui…
Mas o mais impressionante é que o 320i, aos 1470 kg, pesa apenas algo em torno de 50kg a mais que a perua 328i. Realmente impressionante, se pensarmos que o carro mais novo é bem maior e mais equipado.
Dirigindo
A BMW é conhecida por nunca economizar em motor: sempre estão no estado da arte em seu tempo, e evoluem sempre mesmo dentro de uma mesma geração, incessantemente. Sendo assim, os motores são bem diferentes um do outro. Existem marcas que continuam usando os mesmos motores a 20 anos, apenas com evoluções pequenas, mas não é o caso da BMW.
O 320i vem equipado com um quatro-em-linha de dois litros, turbocomprimido, que tem absolutamente tudo que se deseja num motor absolutamente atual: turbina twin-scroll (dupla voluta) com resfriador de ar de admissão, injeção direta, duplo comando de válvulas no cabeçote e o sistema Valvetronic de variação contínua de levante de válvulas, que permite dispensar a borboleta de admissão. Sem esquecer o Duplo Vanos (Variable Nockenwellen Steuerung), o variador de fase nos dois comandos de válvulas. São 184 cv a 5.000 rpm, e uma curva de torque extremamente plana a partir de 1.250 rpm, na cota de 27 m·kgf.
O motor da 328i, por outro lado, apesar de bem menos avançado, ainda não faria feio em muito carro moderno: um pequeno seis-em-linha de 2,8 litros, aspiração natural, inclinado a 30 graus no cofre para manter um capô baixo, com duplo comando de válvulas no cabeçote e quatro válvulas por cilindro. No comando de admissão há também o sistema Vanos. São 193 cv a 5.300 rpm, e um torque de 28 m·kgf a 3.950 rpm.
Com peso similar, há pouca diferença de desempenho. Meu sentimento é que andam o mesmo, em qualquer situação, o que confirma-se com os números do 320i publicados: 0-100 km/h na casa dos 7 segundos baixo, e 235 km/h de final. A diferença está no consumo de combustível: minhas médias de consumo andando forte na perua são de 8 km/l, e o 320i marcou 10 km/l na mesma situação (ambos dados dos incrivelmente precisos computadores de bordo). E não esqueçamos que o carro novo é bem maior e mais equipado.
Mas o que esses números não contam é como esses motores se comportam ao entregar este excelente desempenho. Aqui temos uma grande diferença de conceito entre os dois. O carro mais novo é exclusivamente automático, equipado com a excelente caixa ZF de oito marchas. A perua 328i 1996 podia ser automática ou manual de 5 marchas. Era a época em que automático se deixava em Drive, e se você quisesse trocar as marchas você mesmo, tinha que trocar de carro. A minha é manual, claro.
O 320i é bem mais gostoso, se falando de motor, do que o Citroën DS3 que recentemente comparei a um robô. Apesar de também silencioso, emite um urro gostoso (que sinceramente espero ser real e não produzido artificialmente) mas bem baixinho, e empurra bem mais, de uma forma mais progressiva. É suave e gostoso como um seis-em-linha, e portanto este medo, o de que os série 3 perderiam com 4 cilindros em vez de 6, pode ser descartado já de cara. O câmbio automático é simplesmente o melhor que já experimentei, telepático em uso normal e absolutamente perfeito em estradas truncadas, onde se pode mandar marchas para baixo ou para cima manualmente de forma precisa, rápida e obediente. Como se reduz acionando a alavanquinha para frente e se sobe puxando para trás, é instintivo e, francamente, delicioso. A posição da alavanca é alta, bem à mão, perfeita. Nunca tinha experimentado um automático com conversor de torque que me deixasse realmente satisfeito, mas este o fez.
Acelerar minha velha perua é uma coisa totalmente diferente. Há o pedal da embreagem, há o câmbio de acionamento mecânico para manobrar. E o motor se comporta bem diferente. E quando se acelera com vontade até o limite de giros em cada marcha é que a maior diferença aparece.
O pequeno seis-em-linha é uma jóia, urrando de uma forma tão penetrante que arrepia os cabelinhos da nuca. Você pisa na embreagem e troca a marcha rapidamente, e de novo curte a arrepiante viagem até quase 7.000 rpm. O som deste motor não é alto demais, mas se ouve bem, e ele é sofisticado, belo, um som que vale já o carro inteiro. É um motor que é bem mais presente, vivo, que chama mais atenção, desde que se liga o carro até a faixa vermelha. Ele conecta com os centros de prazer do entusiasta de uma forma única. O quatro em linha da 320i, apesar de excelente, é bem mais invisível, principalmente em marcha-lenta e em médias rotações, só se tornando mais visceral quando se quer realmente andar forte. É tão forte quanto a perua, e certamente mais econômico, mas em motor, a vantagem é clara para a velha E36, ainda que seja uma vantagem totalmente subjetiva.
Mas isso não acontece com a estabilidade e conforto de rodagem. Aqui, o 320i é o claro vencedor. Acompanhar o BMW novo com o antigo em estrada truncada foi um sacrifício tanto para mim quanto para o PK, que me acompanhou na troca de cadeiras. Dentro do 320i, o motorista não pode errar nunca: pneus maiores com muito mais aderência, suspensão absorvendo muito melhor as irregularidades, cambio superveloz que nunca erra marcha, o controle eletrônico de estabilidade e tração. Andando forte, mas tranqüilo, me divertindo horrores com o 320i, vi repetidas vezes, num misto de alegria e pavor, o PK fazendo curvas de lado pelo retrovisor. O comportamento em curvas é simplesmente impecável, e o controle de estabilidade/tração atua de forma integrada e sem obstrução de seus comandos, tornando o carro incrivelmente fácil de andar rápido. E não se engane: ainda assim, devido ao equilíbrio do chassi e à tração traseira, divertidíssimo.
A 328i é mais difícil de andar no mesmo ritmo. Tem que se usar o câmbio, fazer seus punta-tacos para igualar rotação nas reduções de marcha, tem que se tomar cuidado ao acelerar saindo de curvas para não sair demais de traseira. É mais cansativo e mais intenso, mas como o carro é tão equilibrado quanto o 320i, é também puro prazer. O 320i é nitidamente superior: se fosse uma corrida ia ganhar fácil. Mas quando você acerta uma curva perfeitamente na E36, entrada, meio e saída, e acaba a curva equilibrando a saída de traseira no acelerador, bem… Foi você que fez tudo sem ajuda de ninguém. É uma sensação realmente boa.
Mas não há como negar que, além de ser bem mais veloz em curvas, o 320i é também muito mais confortável. A suspensão isola perfeitamente todo impacto, e mantém o interior tranqüilo. O carro isola bem mais o mundo exterior, e é extremamente relaxante, com seu câmbio automático e baixo nível de ruído. A direção de assistência elétrica pode não ser tão precisa e comunicativa como a da E36, mas é precisa e comunicativa o suficiente, e é uma delícia de usar, com peso perfeito sempre, e um gostoso volante de diâmetro pequeno (o da E36 é enorme, 385mm de diâmetro).
Novo ou antigo?
Eu simplesmente adorei o 320i Activeflex. O carro soma tudo que gosto na minha perua 328i com todo o conforto, confiabilidade, segurança e utilidade de um carro moderno. Não há comparação na verdade: o carro novo é mais confortável, mais econômico, mais espaçoso, e bem mais rápido em curvas, e com todo o equilíbrio e comportamento que fez a marca famosa. Um carro de luxo em tamanho compacto, mas que numa estrada truncada faz uma imitação bem convincente de um Porsche. E que é capaz de fazer 14 km/l em viagens. Eu fiquei muito impressionado, e sim, se pudesse, compraria um para usar no dia-a-dia em detrimento de minha perua E36. O carro novo é melhor em tudo, por uma boa margem, sem perder o espírito esportivo da série 3. Impressionante. Meu mais novo sonho de consumo.
Mas. sinceramente, se tivesse dinheiro para comprar um 320i novinho, ainda assim não venderia minha perua. Porque naqueles momentos em que você quer apenas dirigir, bem… Ainda quero poder trocar as marchas com aquela alavanca mecânica, quero usar o pedal de embreagem. Quero ouvir o urro de admissão do seis em linha aspirado. Quero me envolver mais com o ato de dirigir, quero me cansar, quero passar medo, errar, consertar, tentar de novo. Minha velha perua foi, sim, ultrapassada em todos os sentidos pelo carro mais novo, mas ainda assim, continua sendo algo sensacional, de outra forma. É diferente apenas, não melhor ou pior. Diferente.
Novo ou antigo? Eu quero os dois!
MAO