Recall, o termo inglês para chamar de volta ou convocar, é usado na indústria automobilística para indicar que veículo precisa de reparo obrigatório nos serviços autorizados da marca. Como eu já sei há tempo que o Ae não utiliza esse termo, mas convocação, me aterei à essa diretriz de redação.
Erros de projeto, problemas de qualidade internos e/ou nos fornecedores, especificações errôneas de matéria prima etc, são as principais causas para início de uma convocação.
Em 1970 a Ford inaugurou o processo de convocações no Brasil ao convocar 65.000 proprietários do Corcel a comparecer às concessionárias da marca para um ajuste no sistema de direção do veículo.
O problema que originou a convocação foi o desgaste prematuro dos pneus dianteiros em sua banda de rodagem lado externo. Para se ter uma idéia da grandeza do problema, veículos com apenas 3.000 km rodados já apresentavam desgaste excessivo dos pneus dianteiros.
Na época, a engenharia da Ford Willys ficou temerosa que a convocação pudesse arranhar a imagem do Corcel perante a opinião pública. Mas, ao contrário, a iniciativa resultou numa confiança ainda maior do consumidor na marca, ressoando na mídia como uma iniciativa responsável e honesta por parte da Ford.
Cabe um parêntese técnico para entender melhor a causa do problema.
A geometria do sistema de direção/suspensão é parte responsável pela garantia da estabilidade do veiculo tanto em linha reta quanto em curvas. O seu correto alinhamento é fundamental para garantir este atributo. Além disso, a durabilidade dos pneus, das buchas e articuladores também dependem desta interação.
Os principais ângulos pertinentes ao alinhamento do sistema de direção são a inclinação do pino-mestre (king pin inclination), o câmber, o cáster e a convergência (toe-in). Como o pino-mestre físico não existe mais faz tempo — hoje a manga de eixo articula-se em duas juntas esféricas ou articuladores — convencionou-se chamar esse ângulo de inclinação do eixo de direção (steering axis inclination).
Neste post vamos somente abordar a convergência, que está ligada com o assunto em questão.
A convergência diz respeito à posição da roda em relação ao eixo longitudinal do veículo e esse ângulo é convergente ou divergente, mas pode ser zero também.
A convergência/divergência das rodas influi fortemente na estabilidade direcional e também no desgaste dos pneus. Convergência em excesso causa o desgaste da banda no lado externo do pneu ou, inversamente, o excesso de divergência causa o desgaste da banda no lado interno do pneu.
De uma maneira geral, sendo as rodas motrizes as dianteiras, sob potência elas tendem a fechar na direção da trajetória, enquanto que em situação de freio-motor ou sob ação de frenagem elas tendem a abrir. Não sendo motrizes, portanto livres, as rodas tendem a abrir quando veículo anda. É para compensar este efeito que normalmente as rodas dianteiras motrizes são alinhadas com divergência e as rodas livres, alinhadas com convergência. Como a convergência também pode variar com a movimentação da suspensão em seu curso total de compressão e extensão, o posicionamento da caixa de direção e o ângulo dos seus braços de ligação com cada manga de eixo são também importantes para o melhor compromisso de variação de alinhamento.
Para explicar ao leitor o que causou o problema de desgaste dos pneus, vamos ter que ir às origens, entender o “Projeto M” que originou o Corcel.
O “Projeto M” indicava um valor de convergência referenciado a uma determinada altura de suspensão, ou seja, para alinhar o sistema de direção a suspensão deveria estar comprimida até um valor nominal, simulando o carregamento do veículo. Desta maneira, a variação de convergência com a movimentação da suspensão ficaria otimizada a partir de um ponto inicial, minimizando as variações de alinhamento.
O “Projeto M” indicava valor de convergência entre zero e 3 mm por roda, sendo também 3 mm a soma total. Além disso, recomendava este valor para uma altura referenciada de 97 mm. Exemplificando, se uma roda apresentasse 3 mm a outra roda deveria ser zero (0+3=3). Se uma roda apresentasse 1,5 mm a outra deveria ser no máximo 1,5 mm (1,5+1,5=3).
Convergência entre zero e +3 mm. O termo convergência foi o erro no desenho original que ocasionou todo o problema. Deveria ser divergência.
Veja também os valores da linha zero da longarina com o solo, para diversos carregamentos do veículo. H réglage é altura de regulagem para alinhar a convergência, H vide, altura de referência para veículo vazio e H charge, altura de referência para veículo carregado.
O Corcel foi lançado em 1969 adotando a especificação de convergência entre 0 e 3 mm por roda erroneamente como no desenho original (primeiro equívoco) e sem limitar a 3 mm o seu valor total (segundo equívoco, pois 6 mm é um valor absurdo, seja convergência ou divergência).
Consciente , a engenharia acelerou o processo de correção do problema efetuando a convocação para aplicar a alteração da especificação do alinhamento de direção para 0-3 mm divergente e limitando a 3 mm o total. Para melhorar ainda mais as tolerâncias do sistema, foi recomendada a instalação da caixa de direção em sua posição nominal de maneira a minimizar as variações de alinhamento resultantes da movimentação da suspensão em todo o seu curso. Na realidade, a posição da caixa ficou centrada no furo oblongo de seu suporte de fixação na carroceria, tendo ali sido fixada definitivamente.
Mesmo dificultando o processo de alinhamento na linha de montagem, a suspensão passou a ser comprimida na altura de regulagem conforme o projeto original.
Assim, os modelos 1971 em diante já tinham os valores de alinhamento corrigidos na produção e no manual do proprietário, resolvendo definitivamente o problema de desgaste prematuro dos pneus dianteiros.
Com a geometria corrigida e com os novos pneus radiais como opcionais, o raio mínimo de curva do Corcel ficou um pouco maior devido à pequena variação dos ângulos resultantes no diagrama de Ackerman, passando de 5,05 m para 5,44 m.
E ficou a lição aprendida. Para evitar uma convocação, todo cuidado é pouco!
Hoje em dia os processos virtuais de projeto, softwares de última geração para cálculos estruturais e de dinâmica veicular, entre outros, passam muita confiança aos engenheiros que, às vezes, esquecem de avaliar aquilo que projetaram.
As próprias indústrias limitam o número de protótipos funcionais por confiar cegamente nos processos virtuais de desenvolvimento e também por economia. Julgo ser um erro homérico e que pode sair muito caro para a fabricante.
A experiência adquirida pelos antigos engenheiros que tinham toda a teoria e a prática latentes em seu dia a dia e que projetavam o veículo com uma caneta na mão e uma régua de cálculo e/ou uma simples calculadora na outra, deveria continuar a ser prestigiada. Aliás, os japoneses fazem isso muito bem. Como exemplo, a Honda mantém os mestres aposentados em um time especial de consultoria interna dentro da empresa e desta maneira todos saem ganhando.
É por este motivo que gosto de mesclar os jovens engenheiros com os mais velhos. É uma mistura que sempre vai dar certo e de quebra, ajuda a evitar os possíveis e temidos recalls.
CM
Material ilustrativo do acervo do autor