Caro leitor ou leitora,
Este é mais um primoroso texto do leitor Daniel S. de Araújo, gentilmente nos ofertado para publicação aqui no Ae.
Trata-se de uma preciosidade por contar os primórdios da indústria aeronáutica no Brasil, que certamente será do agrado de quem é ou não “aeroentusiasta”.
Boa leitura!
Bob Sharp
Editor-chefe
AUTOentusiastas
PAULISTINHA: O MAIOR TREINADOR DE PILOTOS DO BRASIL
Por Daniel S. de Aráujo
Em 1935, nascia a aeronave que daria origem a uma das maiores lendas da aviação brasileira: O Paulistinha.
Inicialmente batizado de Ypiranga, o Paulistinha foi produzido durante os anos 1940 e 1950 e até hoje diversas aeronaves ainda estão em vôo, seja na missão de formação de pilotos, seja por pura recreação de seus proprietários, sempre com a confiabilidade e a robustez de um projeto consagrado, cuja linha-mestra foi implantada por Clarence Gilbert Taylor no Taylor Cub E-2 de 1930.
Taylor & Piper
Clarence Gilbert Taylor e seu irmão Gordon Taylor fundaram em 1927 a Taylor Brothers, com a expectativa de produzir uma aeronave barata, que pudesse se tornar tão popular quanto Henry Ford havia transformado o automóvel nos Estados Unidos.
O empreendimento não vingou, contudo um engenheiro que havia ganhado dinheiro na indústria do petróleo (e contribuído com os US$ 400 iniciais da empresa Taylor Brothers) adquiriu a massa falida da empresa, reorganizando-a e colocando Clearence Taylor como presidente e assumindo a gerência financeira da nova empresa. O engenheiro, na época com 49 anos de idade, chamava-se Willian Thomas Piper.
A Taylor Aircraft Company começou a produção do Taylor E-2, aeronave que logo iniciou sua fama nos Estados Unidos pela sua facilidade de produção e preço.
Devido a desentendimentos de Clarence Taylor com Willian Piper e Walter Corey Jamouneau (um engenheiro aeronáutico que introduziu melhorias no Taylor Cub — a contragosto de Taylor), ocorreu a cisão das companhias ficando a Piper Aircraft com o Cub e Taylor indo para Ohio e fundando a Taylorcraft
O empreendimento brasileiro
O projeto do Taylor Cub acabou dando origem a uma série de aeronaves “similares”, isso mesmo dentro dos Estados Unidos. Ao longo do mundo, não seria diferente e em São Paulo, mais precisamente no Campo de Marte, a Empresa Aeronáutica Ypiranga, inicialmente fabricante de planadores, iniciou a produção do protótipo do EAY-201 Ypiranga: era um monoplano de asa alta, com estrutura da fuselagem em tubos de aço soldados e asas feitas em madeira, quase um clone do Taylor Cub (usando inclusive, o mesmo motor radial Salmson 9AD de 9 cilindros, 3 litros e 45 cv também experimentado em 1931 por Clarence Taylor).
O primeiro Ypiranga produzido recebeu a matricula PP-TBF:
A aeronave foi submetida a testes no Rio de Janeiro e tendo sua aprovação concedida, foi matriculada de PP-TBF e foi a primeira aeronave de fabricação brasileira registrada no RAB — Registro Aeronáutico Brasileiro.
Essa aeronave foi mantida pela Empresa Aeronáutica do Ypiranga por algum tempo e vendida a alguns pilotos, até que em 1942, após um pequeno acidente, ela foi recomprada pela Empresa Aeronáutica Ypiranga, sofrendo modificações no leme e em toda a sua estrutura e seu motor Salmson, substituído por um motor boxer Franklin 4AC-199, 3,25 litros e 65 cv. Somou-se à reforma do protótipo a construção de quatro aeronaves de pré-serie que acabaram sendo vendidas e distribuídas aos aeroclubes dentro da Campanha Nacional de Aviação.
A Campanha Nacional de Aviação e a popularização do Paulistinha
Nos anos 1940, a falta de pilotos de aeronaves era patente. Havia pouquíssimas escolas de aviação e o número de pilotos brevetados era ínfimo, consistindo-se em um problema, pois num contexto de tensões mundiais, havia a necessidade de formação de pilotos.
Neste contexto, Assis Chateaubriand, proprietário do conglomerado de mídia Diário Associados, iniciou a Campanha Nacional de Aviação, com o slogan “Dêem asas ao Brasil”. A campanha visava angariar recursos privados de pessoas e empresas visando à doação de aeronaves, construção de pistas, e criação de aeroclubes visando incrementar a formação de pilotos privados. Essa campanha, que começou em 1940 e terminou no inicio dos anos 1950, teve seu apogeu em meados dos anos 1940 e é neste contexto de nascimento de uma aviação civil no país que Francisco “Baby” Pignatari faz sua incursão na indústria aeronáutica, acaba transformando um setor da sua empresa, a Laminação Nacional de Metais na CAP – Companhia Aeronáutica Paulista, em agosto de 1942.
Dos vários projetos que desenvolveu, o mais famoso e de sucesso comercial foi o EAY-201 Ypiranga, cujo protótipo, o PP-TBF, fora adquirido junto com os ativos da Empresa Aeronáutica do Ypiranga, recalculado por engenheiros do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas – São Paulo), modificado (novamente, mas agora em detalhes menores) ainda em 1942 e fazendo seu vôo de homologação em janeiro de 1943 com a nova denominação, CAP-4 Paulistinha, e com a produção iniciada em abril deste mesmo ano.
Segundo o jornalista Roberto Pereira de Andrade, o número de CAP-4 produzidos foi de 777 aeronaves entre 1943 e 1949. Contudo, esses números são questionáveis, pois naquele tempo os registros e o rigor de matricula não eram tão grandes quanto hoje, os números da Campanha Nacional de Aviação são muito díspares, variando de autor para autor (Fernando Moraes, biógrafo de Assis Chateaubriand, fala em 800 aeronaves doadas até 1946 — lembrando que desse ano em diante já ocorre o declínio da campanha — não é razoável a doação de 600 aeronaves entre 1946 e 1951). Somam-se a isso as histórias que corriam na época onde a mesma aeronave recebia matrículas diferentes em questão de dias (para parecerem diferentes e inflarem os números da campanha). E é importante salientar que não foram apenas Paulistinhas que foram doados, outras aeronaves de outros fabricantes, aeronaves importadas e mesmo de fabricantes brasileiros também foram adquiridos e doados.
Outro fato que torna questionável o número de 777 CAP-4 produzidos consiste na necessidade do Ministério da Aeronáutica ter de adquirir aeronaves de treinamento primário, já no início dos anos 1950, em função de perdas, numa época que muitos aeroclubes da época da Campanha Nacional de Aviação já terem desaparecido, conforme veremos a seguir.
O Neiva 56 Paulistinha
No início dos anos 1950, percebendo a diminuição da frota de treinadores dos Aeroclubes em virtude de acidentes e falta de manutenção, o Ministério da Aeronáutica, através do DAC (Departamento de Aviação Civil), fez uma encomenda de 80 Piper PA-18 Super Cub. José Carlos de Barros Neiva, que até então fabricara apenas planadores, passou a considerar a volta do Paulistinha. Com o aval do Ministério da Aeronáutica, Neiva negociou os direitos de produção do Paulistinha com Francisco Pignatari e tendo-os adquirido, reformulou a aeronave, especialmente na instrumentação, localização dos tanques de combustível e com a colocação de um motor mais forte, o Continental “C-90” (O-200), de 3,29 litros e 90 hp. As primeiras 20 aeronaves entregues ao Ministério da Aeronáutica, contudo, foram produzidas com motor Lycoming O-235 de 3,85 litros e 100 hp, segundo dizem, por conta do Ministério da Aeronáutica ter esses motores em estoque.
A Sociedade Neiva chegou a vender alguns Paulistinhas a pilotos particulares e produziu seis aeronaves de pulverização agrícola (na época, era comum aplicar B.H.C. — “pó de broca”, como é o nome popular — por via aérea nos cafezais). Também foi tentado o lançamento de um Paulistinha “rebocador” de planadores (denominado P-56D, com motor de 140 hp) contudo não saiu do protótipo. Anos depois começaram a ocorrer conversões.
Mais de 270 aeronaves Neiva 56 Paulistinha foram produzidas e entregues aos aeroclubes brasileiros e muitas delas, junto com seus irmãos mais velhos, os CAP-4, permanecem até hoje em operação plena, formando pilotos, na simplicidade plena de voar de maneira mais singela, livre, sem o auxilio da eletrônica embarcada.
A tentativa de volta do Paulistinha e o sepultamento do treinador brasileiro
Na década de 1980, o problema dos aeroclubes voltou à tona, com aeronaves de treinamento parados por falta de peças, elevados custos de manutenção inviabilizando o reparo de aeronaves e a burocracia estatal na manutenção e reparo dos aviões, causando o sucateamento de muitas aeronaves.
Naquele tempo, a entrada para a pessoa obter um brevê era via aeroclube, uma entidade sem fins lucrativos e que muitas vezes, seja por falta de demanda mínima devido ao alto custo da aviação (sofreu uma inflação descomunal em um período de 50 anos), má gestão ou improbidade administrativa, acabava tornando-os dependentes do DAC e do Ministério da Aeronáutica.
Com este cenário, era importante a revitalização e a renovação da frota de aeronaves de treinamento, visando dinamizar o parque de instrução de pilotos.
Veja no site do Aeroclube de Bragança Paulista em http://www.acbp.com.br/aeronaves/p-56c.htm os “três” Paulistinhas no mesmo aeroclube. O PP-HGB é um CAP-4, o GXN, um P-56C original e o GYB, um P-56C remotorizado pela Aeromot na década de 80. Observe a diferença da carenagem (cowling) de cada aeronave. Cada uma está com a sua original.
Alguns Paulistinhas 56 foram revitalizados em um programa de remotorização e reforma oficial, feito pela empresa Aeromot de Porto Alegre, contudo o projeto mais concreto para um treinador brasileiro partiu da empresa sediada no Campo de Marte, em São Paulo, a Aristek.
Essa empresa, dedicada à reforma e manutenção de aeronaves, adquiriu um CAP-4 e fez modificações que julgou pertinentes, como a colocação de um sistema elétrico, rádio VHF e transponder, tornando-a apta a operar em grandes aeroportos. Foi colocado um motor Lycoming O-235 de 115 hp, na espera da licitação para a compra de treinadores primários pelo DAC.
Contudo, o que se viu foi um acordo bilateral entre Brasil e Argentina, articulados pelos presidentes José Sarney e Raul Alfonsín, pelo qual a Embraer venderia Tucanos à Força Aérea Argentina e o Brasil faria a contrapartida na aquisição de aeronaves de treinamento. As opções brasileiras eram o consagrado Piper PA-18 (descendente direto do Taylor E-2 Cub) fabricado na Argentina pela empresa Chincul (que no mesmo ano de 1989 acabara ficando exclusiva na montagem e fabricação dos monomotores Piper, anteriormente feitas também pela Neiva) ou o desconhecido Aero Boero, uma aeronave de concepção análoga ao Paulistinha, mas contendo diversas deficiências construtivas e de projeto, nas versões de 115 hp e de 180 hp (rebocador de planadores). E naturalmente, como já se era previsto em se tratando de Brasil, a escolha recaiu sobre o Aero Boero (com a chancela de um grupo de pilotos brasileiros que foram à Argentina testar a aeronave), rendendo uma encomenda de 420 aeronaves, 350 AB-115 de treinamento e 70 AB-180 rebocadoras de planador.
O PA-18, então produzido na Argentina também…É uma espécie da “Paulistão” porque é uma aeronave maior, apta a receber motores de até 180 hp, possui flapes, partida e sistema elétrico.
O “Paulistinha” (Taylor Cub?) do Rio de Janeiro
Na década de 1930, o industrial Henrique Lage, entre os diversos ramos de atuação de suas empresas, resolveu apostar na construção aeronáutica. Assim, criou a Fábrica Brasileira de Aviões, responsável pela construção das aeronaves biplano Muniz M-7 e M-9 para a aviação naval e civil, e no início dos anos 1940, Henrique Lage incumbiu seu corpo técnico em construir uma aeronave monoplano de asa alta, semelhante (igual?) ao Taylor Cub americano e ao Ypiranga, Paulista.
Surge assim o HL-1, uma aeronave de asa alta, feita de tubos de aço soldados e asa com estrutura em madeira. O motor era o Continental A-65 (O-170) de 2,8 L e 65 hp. Externamente, diferia do Paulistinha, pois os montantes das asas eram montados de maneira paralela, e não em “V” como no Paulistinha e nos Piper Cub.
Foram produzidos por volta de 140 aeronaves (números aproximados), sendo uma encomenda inicial de 15 HL-1, 8 HL-1A que diferia do protótipo pelos motores carenados e tanque de combustível de maior capacidade, e uma leva maior, de mais de 115 aeronaves, dos chamados HL-1B, de motores com cilindros expostos (como os da fotografia) e capacidade de combustível reduzida, visando atender a encomenda do Ministério da Aeronáutica de aeronaves de treinamento primário. Atualmente não se sabe da existência de nenhum HL-1 em condições de vôo.
Epílogo: a batalha que o PP-TBF perdeu
Como vimos, o PP-TBF foi a aeronave que deu origem ao Paulistinha. Voou em aeroclubes, formou pilotos. Foi testada e experimentada. Nasceu com motor radial, foi vendida. Caiu. Reformada, voou novamente como Ypiranga e motor boxer. Reformada novamente, tornou-se o protótipo do CAP-4. Tornou a voar, caiu, arrumaram. Terminou seus dias em 1963, voando, sendo agregado ao acervo da Fundação Santos-Dumont em total estado de vôo e exibido no Parque do Ibirapuera no extinto Museu da Aeronáutica.
Com os problemas de infiltração do prédio onde estava (típica da arquitetura pseudofuncional e tida como “arte” por “intelectuais”), o acervo foi removido (junto com o PP-TBF) na década de 1990 para o Cemucam (Centro Municipal de Campismo – da Prefeitura de São Paulo mas localizado em Cotia). E lá está o PP-TBF, que tão importante foi para a indústria aeronáutica brasileira, repousando junto com seu irmão, o PP-TLS, o segundo Paulistinha de pré-série produzido ainda pela Empresa Aeronáutica Ypiranga e que tantos pilotos formou em Marília (SP) onde viveu sua vida inteira, repousando esperando o dia que virará sucata e lembranças, graças à incompetência e o descaso com a história.
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DSA