Sem patriotadas, mas até hoje acho o projeto do Torino argentino um dos mais lindos que a indústria automobilística de qualquer país já fez. Pessoalmente gosto de diversos carros, independentemente da nacionalidade, mas pensar que este foi um desenvolvimento sul-americano me enche de orgulho.
Claro que tantos anos depois poderia até fazer alguma ressalva quanto ao design, mas nem isso. Sou totalmente parcial quanto ao veículo e ainda não encontrei no YouTube o som do motor que seja de fato fidedigno ao que era o “Toro”, como nós, argentinos, chamávamos a máquina. O do 380W era pura música. E olha que eu era pequena a primeira vez que apareceu o Torino cinza metálico cupê do meu pai lá em casa. Inesquecível.
Na Argentina sempre houve um grande entusiasmo pelos carros. Juan Manuel Fangio até hoje é admirado e considerado um dos melhores pilotos de Fórmula 1 de todos os tempos e embora Carlos “Lole” Reutemann jamais tenha ganhado um campeonato (foi vice quando em 1981 perdeu para Nélson Piquet por somente um ponto e na última corrida do ano, em Las Vegas), o coração dos argentinos anda sobre quatro rodas. Nós adoramos carro em geral e o público para as provas é sempre muito significativo, sejam do tipo Stock Car, ralis de regularidade, de velocidade, Turismo Carretera, qualquer um. E lá, mesmo quem não tem um carro muito possante adoraria ter um.
Mas voltemos a uma das minhas paixões de infância. O Torino foi fabricado na Argentina por uma indústria nacional chamada Indústrias Kaiser Argentina (IKA) graças a um acordo com a American Motors Corporation e baseado no Rambler American (que minha mãe tinha) — um parrudo carro típico americano. Os primeiros carros totalmente feitos lá são de 1966, daí a ser considerado o primeiro carro argentino realmente, até que em 1975 a Renault comprou a IKA, que passou a ser Renault Argentina.
O meu modelo favorito sempre foi o 380W, com motor de 3,8 litros Tornado Superpower 230 e seis cilindros em linha e seus três carburadores duplos Weber 45. Tudo junto 3,8 litros e W dos carburadores, resultaram no nome 380 W. Motor dianteiro, tração traseira. Eram 218 cv que atingiam 200 km/h. O consumo? Bem, só começou a ser problema o desempenho de 6,5 km/litro a partir da crise do petróleo, em 1973. Mas com um avião como aquele, quem se preocupava com o marcador da gasolina? No máximo se olhava para outro marcador, o de velocidade. Era puro prazer de dirigir. E de ver. O design de Pininfarina era maravilhoso. Até o emblema, de um touro empinado como se fosse o “cavallino rampante” da Ferrari ficou lindo.
O apelo do carro era tão grande que nem o próprio Fangio resistiu. Quando o pentacampeão mundial de Fórmula 1 soube no início de 1969 que haveria uma prova de intermináveis 84 horas no circuito alemão de Nürburgring, foi pessoalmente conseguir uma vaga para o 380W. A história em si daria um filme no estilo “Rush” — e já tenho algumas músicas para sugerir de trilha sonora. Apesar de já aposentado dos grids da Fórmula 1, Fangio juntou uma equipe fantástica de preparadores de carro e pilotos e em seis meses conseguiu ter três unidades para correr na Alemanha, totalmente fabricadas com peças argentinas — exceto os carburadores que eram italianos, por exigência do regulamento. Uma ligeira modificação no desenho do carro, que havia sido desenvolvido para uso urbano pelo estúdio Pininfarina, e pronto. Só embarcar as três unidades e retirá-las na Europa.
No dia 20 de agosto de 1969 se deu a largada. No primeiro Torino, Luis Di Palma, Carmelo Galbato e Oscar “Cacho” Fangio. No segundo, Eduardo Rodríguez Canedo, Jorge Cupeiro e Gastón Perkins e no terceiro Eduardo Copello, Oscar Franco e Alberto “Larry” Rodríguez Larreta. Eram épocas românticas do automobilismo e para minimizar a punição de ter descontada uma volta para cada parada nos boxes os pilotos sempre que possível consertavam os carros na beira da pista — incluindo trocar pastilha de freio e arrumar o cárter.
Apesar de estarem sempre entre os primeiros, dois Torinos não terminaram a última parte da prova. Um por problema elétrico e outro porque saiu da pista e seu chassis ficou dobrado no meio — o que lhe valeu o apelido de “bananinha”. O terceiro Torino teve um problema com o escapamento que provocou uma penalização por “excesso de ruído” que apesar do conserto feito pelo próprio piloto no estilo McGyver, com um pedaço de arame e amianto mesmo, representou redução no número de voltas válidas, que caiu de 334 para 315. O Lancia que ganhou completou 322, seguido de um BMW com 318 e um Triumph, com 315.
De um total de menos de 20 carros que terminaram a corrida, o Torino chegou em quarto lugar, mas que foi comemorado como se fosse um primeiro. Afinal, aquele carro que vinha do fim do mundo havia ameaçado fábricas tradicionais que se preparavam há anos para essa prova? E, de quebra, foi o carro que deu mais voltas no competitivo circuito alemão. Um desses Torinos está no museu Juan Manuel Fangio, na cidade de Balcarce, no interior de Buenos Aires, onde nasceu o piloto.
Aproveitei que estava escrevendo esta coluna para falar com meu famoso tio César, um autêntico autoentusiasta que teve três Torinos, um atrás do outro. Ele adorou rememorar esses tempos. E diz que só não teve mais desse modelo porque saiu de linha, mas mesmo assim havia feito questão de comprar um dos últimos zero-quilômetro. O primeiro foi um 380W branco, preparado por uma oficina especializada (sempre houve muitas na Argentina) chamada Lutteral, meio rebaixado para dar um efeito-solo, com tomadas de ar laterais para ventilar os discos de freio e mais uma parafernália de acessórios que nem ele lembra quais eram. Fazia o maior sucesso — até que uma noite foi roubado. Meu tio dá a data exata disso: 25 de agosto de 1972.
Não me atrevi a perguntar se ele lembra com tanta precisão quando conheceu a minha tia, por exemplo, que não sou louca. Mas desse fatídico dia ele se lembra em detalhes — até onde estava e com quem. Com o dinheiro do seguro comprou outro Torino, agora um 380 cor de cobre. O 380 tinha somente um carburador, mas era igualmente um foguete e depois, outro 380 vermelho, modelo 1982, um dos últimos antes que saísse de linha. “A sensação de dirigir um Torino sempre foi incomparável e os que tínhamos um éramos invejados por todos”, lembra ele, que desde então teve vários outros modelos de carro e os dois últimos foram BMW. “O ronco do motor dava vontade de dirigir o carro, nem que fosse para andar um quarteirão até a loja da esquina”, lembra com saudade.
Até algum tempo atrás, donos de Torino se reuniam na Av. General Paz com a Av. Constituyentes, em Buenos Aires. Era lindo ver esses carrões bem conservados e o entusiasmo de seus donos.
Oficina – Estes tios meus vieram muitíssimas vezes ao Brasil — e quase sempre de carro. Numa delas, a bordo de um Torino, perto de Pantano Grande (RS), a luz do painel se acendeu indicando que o alternador não estava carregando e meu super tio parou imediatamente num posto de gasolina cheio de caminhões. Perguntou onde havia uma oficina mecânica e indicaram um galpão bem próximo. Apareceu então o, digamos assim, mecânico de plantão — um sujeito de havaianas, short, camiseta e gorro de lã (em pleno verão!) e somente três dentes na boca. Abriu o capô e ligou o motor. Concordou com meu tio. Era o alternador e, segundo ele por causa de um rolamento que havia travado dentro do alternador, que elevara a temperatura, esquentado o eixo da bobina e provocado o derretimento da solda de um dos arames da bobina. Na teoria, simples de consertar — depois de esfriar o motor, claro.
O problema era conseguir o rolamento para substituir o que havia travado. “Vamos ficar aqui por vários dias” pensaram minha tia e meus primos. Mas o mecânico, muito decidido, começou a desmontar o alternador, enquanto meu tio suava frio de ver o “filhinho” dele ser escarafunchado assim. Retirado o alternador, o sujeito o colocou sobre uma mesa e o desmontou totalmente. Aí foi meu tio quem pensou que iam ficar em Pantano Grande o resto de suas vidas. O misto de corinthiano com McGyver pegou um dos rolamentos e foi até o posto de gasolina. Voltou intermináveis vinte minutos depois com um punhado de rolamentos na mão. Testou um por um até que um deles fez com que sorrisse e mostrasse todos os três dentes da boca. Era da medida exata. Foi até o posto e voltou com mais um igual. Montou o alternador, o colocou no Torino e ligou o motor. Tudo perfeito e, de novo, ele mostrou o amplo sorriso banguela. Meu tio, apesar do receio inicial, confirmou que estava tudo OK e de tão pouco dinheiro que o mecânico pediu ele deu o dobro.
Meus tios seguiram até Porto Alegre, onde pernoitaram e nunca mais souberam do mecânico de Pantano Grande. Mas quando em 1988 meu tio vendeu esse Torino para comprar um Renault Fuego cupê, o alternador era aquele consertado em Pantano Grande com aqueles mesmos rolamentos, sem nunca mais ter dado algum problema.
Aliás, essa era outra característica do carro. Robusto, para dizer pouco. Não dava problemas apesar de que os motoristas exigiam o máximo dele. Mas acho que era isso o que o Torino gostava — de correr. E respondia à altura, sem reclamar, sem quebrar. Puro prazer de dirigir.
Opala – O acabamento do Torino também era um primor. Os bancos de couro (legítimo, claro!) combinavam com a cor externa do carro, o painel de madeira e couro era um charme e tinha uma linda separação entre os bancos da frente com uma espécie de gabinete que fazia as vezes de porta-luvas onde se encaixava também a alavanca do câmbio, curta, ultramoderna. Até hoje meu tio lembra do lindo volante do “Toro”, com seus raios metálicos e aro de madeira. Apesar de ser cupê, era bem confortável. Além dos carros do meu tio andei muito no do meu pai e nem minha mãe nem eu nos lembramos de algum outro problema exceto uma vez que quebrou a embreagem na estrada, ainda do lado do Brasil, quando ele ia com um amigo para Buenos Aires. A solução foi seguir sem usar o pedal e fazer o conserto já em terras portenhas.
O “Toro” do meu pai fazia o maior sucesso na rota São Paulo–Rio Claro por onde andávamos muito. Isso quando parava no posto de gasolina, porque na estrada ninguém nos via direito, pois era como um clarão, zumbindo e ultrapassando Mavericks e Opalas, para desespero dos motoristas daqueles que eram considerados o “must” da época. Uma vez, o dono de um Opala pediu para meu pai abrir o capô do carro quando estávamos num posto de gasolina fazendo um lanche. Ele queria conferir como era o carro que o havia deixado para trás com tanta facilidade alguns quilômetros antes. Depois de uma cuidadosa olhada naquele motor lindo, disse algo assim como “OK, tá explicado” e foi embora resignado.
Mudando de assunto: Pode-se discutir se locutor esportivo tem de dar emoção à narração ou não, mas assassinar o idioma não tem desculpa. Por que a insistência em dizer que um piloto de Fórmula 1 vai ao “limite extremo”? Se é limite, tem de ser extremo, senão não é limite — é meio, três quartos, dois oitavos, sei lá, mas o limite só pode estar no extremo.
NG