Ainda estava muito frio. Um frio tão denso e penetrante que era impossível de ignorar, e que tornava o calor vindo do motor, algo que chegava a incomodar em dias mais quentes, totalmente irrelevante. A noite estava escura como um breu, e apenas os fachos dos imensos faróis Lucas eram visíveis à sua frente. A seu lado, seu amigo e navegador Lewis Pearce roncava alto, incapaz de continuar trabalhando depois das três da manhã.
Mas Donald Mitchell Healey estava feliz como nunca estivera. A neve e o gelo que tornaram seu progresso tão lento até há pouco, finalmente desapareceram. Enfim, mesmo naquele chão coberto de cascalho, podia esticar as pernas de seu carro. Ouvia feliz o berro dos oito cilindros em linha, suave e confiável, forte como um trem. Ouvia o grito agudo do compressor Rootes, e sentia a aceleração vigorosa que permeava toda a experiência. A felicidade de voltar a competir no Rali de Monte Carlo, que vencera em 1931, era completada pelo fato de que o carro que estava dirigindo fora projetado por ele mesmo, durante nove meses de trabalho aparentemente incessante.
Mais que isso, havia ajudado a construir e preparar este e os outros dois protótipos existentes até ali também. Tudo que precisava agora era repetir a vitória de 1931 para alcançar fama eterna, e pedidos suficientes para que o carro entrasse em produção regular, até ali algo ainda duvidoso. Os outros dois protótipos foram grande sucesso no salão de Earl’s Court no outono passado, mas ainda não o suficiente para que seu sucesso fosse algo garantido. A placa dos três carros eram as iniciais do criador: DMH1 era o carro que dirigia, preparado para rali, e DMH2 e DMH3, os reluzentes carros de exposição.
Pensando nisso, Healey resolveu se concentrar mais. Acelerou fundo novamente, se ajeitou no banco, esqueceu o cansaço e aumentou o ritmo, que já era forte até ali. O carro era obediente, potente, veloz e ágil como ele previra; um verdadeiro puro-sangue à vontade com o ritmo forte. Quando percebeu que já era quatro da manhã, viu placas que lhe indicaram que já estava próximo da fronteira da Dinamarca. Bom progresso. Apertou o volante mais um pouco, cerrou os dentes e aumentou ainda mais o ritmo; o carro vai agüentar, vou ganhar esta prova de lavada.
Instantes depois, em meio ao breu completo da noite, ouve um berro agudo estranhíssimo, alto, penetrante, vindo de algum lugar à sua frente. Sacode com a mão esquerda em seu companheiro Lewis gritando:
— Acho que o compressor vai explodir! Acorda!!!
Lewis acordou apenas a tempo de sentir a pancada. Algo acertara o carro bem na roda dianteira direita com incrível violência, fazendo o carro rodar várias vezes no sentido contrário ao que estava indo… Depois de alguns momentos atordoantes onde não entendiam nada, puderam ver o que acontecera: a poucos metros de onde estavam o trem de carga que os acertara finalmente conseguia parar totalmente, e dois maquinistas corriam esbaforidos em sua direção. Dirigindo muito rápido na madrugada, Donald não percebera a Cruz de Santo André, a sinalização internacional de linha férrea logo adiante. O barulho que Healey ouvira antes do impacto era o apito do trem…
Healey sai do carro e vê o estrago: a frente do carro, incluindo aí o caríssimo motor, estava completamente destruída. Nada à frente do curvão sobrara intacto. Escapara por um triz de uma morte dolorosa e épica, mas tudo que conseguia pensar é que tudo estava acabado; nada de vitória em Monte Carlo e champanhe no castelo do príncipe de Mônaco. Nada de publicidade gratuita para o seu carro. Provavelmente, por conseqüência, nada de produção em série. E mais: destruíra completamente sua mais querida criação, seu fiel DMH1. Sentou no chão, e sentindo que a correria que começara há um ano antes no escritório do Coronel Claude Holbrook (presidente da Triumph) acabara de terminar de forma drástica, colocou a cabeça entre as mãos e, sem ter o que fazer além disso, chorou.
Imitação é a maior forma de elogio
Em 1933, o jovem Donald Healey era apenas um piloto de rali conhecido por sua aptidão mecânica. Logo, depois de algum tempo na Riley, era contratado pela Triumph em Coventry, para ser chefe de seu departamento experimental. Àquela época, depois que a Bentley parara de competir oficialmente em 1930, a Inglaterra seguia sem um representante nas corridas de carros esporte e rali, algo que então perturbava os entusiastas da Ilha. Tommy Wisdom, jornalista respeitado e influente, usa sua amizade com Healey para tentar convencer a Triumph a fazer um carro esporte de primeira linha.
Healey e Wisdom marcam uma reunião com o Coronel Holbrook sobre o assunto. O Coronel era também ele um patriota, além de interessado em mover a sua marca para um mercado acima daquele que operava então, com carros mais potentes, mais caros e de maior prestígio. Gostou muito da idéia, portanto, mas havia um problema. Não havia dinheiro suficiente.
Os três bolam um plano então: como não existia dinheiro para desenvolver algo do zero, iriam copiar o melhor carro esporte de então, o Alfa Romeo 8C 2300, o carro que Sir Henry “Tim” Birkin, o mais famoso dos “Bentley Boys”, tinha usado para vencer Le Mans novamente depois que a Bentley parou de criar carros para a prova. Healey iria começar já o trabalho, e iria à Itália conversar com a Alfa Romeo sobre suas intenções e sondar um possível acordo. Holbrook liberou 5 mil libras esterlinas, o que Healey calculou ser suficiente para fazer uma meia dúzia de carros. Algumas vitórias em competições e alguns testes em revistas gerariam interesse suficiente para, então, iniciar-se uma produção normal.
Healey compra imediatamente um Alfa Romeo 8C 2300, e o leva a seu departamento na Triumph. O carro é totalmente desmontado e as peças mandadas à sala de desenho. Lá, os desenhistas criam desenhos técnicos de cada uma das peças do Alfa, até o último parafuso e arruela. Enquanto este trabalho se desenrolava, Donald Healey faz suas malas e parte para Milão, na Itália, casa da Alfa Romeo. Seu contato lá era nada menos que um dos maiores gênios da engenharia automobilísica até hoje: Vittorio Jano.
O que acontece em seguida é uma conversa até hoje amplamente desconhecida, sobre a qual se especula muito. Healey diz que Jano disse não se importar que copiassem seu carro, ainda mais uma empresa tão famosa quanto a Triumph. Diz que a Alfa Romeo estava interessada em motocicletas então, e que no futuro talvez, em retribuição, a marca inglesa pudesse ajudá-los com seu conhecimento nesta área. Segundo Healey, Jano achou um elogio ser copiado pela Triumph.
O que se sabe de fato é que nenhum acordo formal foi fechado ali. E que a ligação do carro de Healey com a Itália nunca mais seria mencionada pela Triumph, ou imprensa inglesa contemporânea. E que independente de qualquer coisa, o trabalho de cópia do 8C 2300 continuou a todo vapor em Coventry. A Alfa Romeo? Nunca pediu reparação, ou mesmo se pronunciou a respeito.
O Triumph seria chamado de Dolomite, uma prova de rali italiana, e também uma pista sobre a origem de seu desenho. O carro acabou bem diferente do Alfa original, afora, obviamente, o motor. Este era praticamente idêntico ao carro italiano, mas com a cilindrada reduzida de 2,3 para 2,0 litros, via redução de diâmetro dos cilindros. Dizem que nenhuma peça é intercambiável entre os dois motores, mas olhando eles e as especificações é algo difícil de acreditar.
E que motor era aquele. Fundido em alumínio, era constituído de dois blocos de quatro cilindros em linha, e um cabeçote único, com dois comandos (suportados por cinco mancais cada), duas válvulas por cilindro a 90 graus entre elas, e uma vela central. O trem de engrenagens que movia estes comandos no cabeçote, além do compressor tipo Roots, ficava no meio do motor, onde se uniam os dois blocos. Os dois virabrequins suportados por cinco mancais cada eram também unidos no centro.
Os cilindros tinham diâmetro de 60 mm (65 mm nos Alfas) e curso dos pistões de 88 mm, e a taxa de compressão era de 6,5:1 (5,75:1 nos Alfas). O compressor girava a 1,5 vezes a rotação do virabrequim, e dava um máximo de 0,7 bar ao motor. Inicialmente, com carburador Zenith duplo (alimentado por bomba elétrica), eram 120 cv a 5.500 rpm, mas com um pouco de desenvolvimento e um carburador SU, chegou-se a 140 cv à mesma rotação. Healey diz que seis meses depois de comprar o Alfa Romeo, tinha um motor sendo testado.
O único câmbio que era possível ser comprado para o carro acabou sendo o Wilson pré-seletivo fabricado pela Armstrong-Siddeley. Era um câmbio pesadíssimo, que provavelmente pesava o mesmo que o motor, mas pelo menos funcionava bem, inclusive em competição. A suspensão era por molas semi-elípticas e amortecedores de atrito Hartford nos dois eixos, rígidos e rebaixados nas extremidades. Era extremamente rígida, como era a prática então, e boa parte do trabalho de suspensão era realizado pelo chassi, de baixa rigidez.
Os freios originalmente eram cópias dos enormes tambores de 406 mm do Alfa, mas acionados hidraulicamente (varão no 8C 2300). Porém, por não conseguir um material de sapatas que funcionasse a contento, Healey acabou por criar tambores menores (305 mm) mas mais largos, de eficiência similar, com a ajuda da Lockheed.
Capaz de chegar a quase 180 km/h, e tendo uma dirigibilidade à altura, o carro causou furor na imprensa inglesa. Um verdadeiro puro-sangue inglês, finalmente, dizia a imprensa, apesar de sabermos suas reais origens. Parecia destinado a grandes coisas.
Mas não era para ser. Como sabemos, tinha um trem no meio do caminho. E mais uma surpresa para nosso herói quando voltou para casa.
O fim, e um novo começo
Quando voltou de Monte Carlo, Healey descobriu que a Triumph estava em sérias dificuldades financeiras, parte de um desastre contábil criado por sua diretoria, que iria culminar em 1938 com a falência da empresa. O projeto foi imediatamente cancelado. Donald andou com um dos Dolomites por algum tempo como seu carro pessoal ao redor de Coventry, mas logo os carros e todas as peças sobressalentes, desenhos e moldes foram vendidos. A empresa High Speed Motors comprou o lote e, dizem, terminou mais dois carros que foram vendidos como “HSM”.
Depois da guerra, Donald Healey criou uma pequena empresa para fazer carros esporte usando o motor Riley de 2,5 litros e cabeçote “Hemi”(comando no bloco mas com câmara hemisférica). Seus carros tiveram sucesso, e mantiveram sua empresa relativamente lucrativa, mesmo com baixa produção, até o fim dos anos 40. Uma breve ligação com a Nash americana criou o Nash-Healey, e deu a vontade para Donald em conseguir fabricar veículos em maior série. Criou então um pequeno e belíssimo carro esporte usando motor Austin de quatro cilindros, e em 1952 mostrou-o no Salão de Londres. Leonard Lord, chefe da Austin, visitando o salão, gostou tanto do carro que firmou um contrato para produzi-lo em grande escala. Nascia o Austin-Healey, um nome hoje conhecido mundialmente, e que deu fama e fortuna a nosso amigo Donald. Fama e fortuna além de seus sonhos mais loucos…
Coisa que, muito provavelmente, não aconteceria se o Dolomite tivesse dado certo e sua carreira na Triumph tivesse prosperado junto com a empresa, como imaginava naquela fria madrugada dinamarquesa em 1935, minutos antes de acabar chorando ao lado de seu carro destruído.
Não é incrível? Faz a gente pensar que realmente, alguém ou algo muito poderoso e com um grande senso de humor tem um plano prontinho para cada um de nós. Não faz?
MAO