Hoje vou começar contando-lhe uma história que conto sempre que algum amigo reclama de férias curtas. Nesta época em que os empregos sumiram e parece que não voltarão, esse esporte tem sido pouco praticado, é verdade. Mas em condições normais de temperatura e pressão, é uma reclamação que ocorre com tanta freqüência que é dita pela vasta maioria das pessoas sem que seja necessário engajar o cérebro na operação.
O engenheiro F.W. Hodges com certeza devia estar reclamando fortemente disso no inverno de 1906/1907 (no hemisfério norte). Veterano de empresa, já trabalhava ali quando a Alexander Wilson and Co. se tornou a Vauxhall Iron Works, Ltd, em 1897. Foi ele que projetara o primeiro automóvel da empresa, quando o tradicional fabricante de motores a vapor marítimos resolveu diversificar para esta área, em 1903. Com o sucesso da fabricação e venda de automóveis, e a necessidade de uma fábrica maior, Hodges se mudara de Londres para Luton junto com a Vauxhall em 1905, onde desde então era o engenheiro-chefe. Achava então que sua posição na empresa era incontestável, e sentia-se parte integrante e indivisível dela.
Em 1907 decidia aproveitar esta condição para tirar férias estendidas. Nada em que trabalhava então parecia não poder esperar a sua volta, então resolveu fugir do frio inverno inglês e partir para o quente Egito assim que aparecesse a primeira neve, e voltar apenas no ano seguinte, quando o inverno acabasse. Para Percy Kidner, o diretor-geral, disse que qualquer coisa que fosse necessária em caráter especial podia ser endereçada a seu braço direito então, um jovem engenheiro de 24 anos que trabalhava na prancheta ao lado da mesa de Hodges, traduzindo seus pensamentos em desenhos técnicos detalhados. E partiu ao fim de 1907, feliz da vida, para suas merecidas, e longas, férias.
Naquela época pouco se gastava em propaganda como a conhecemos hoje. Para se tornar conhecida e importante, com conseqüente aumento em vendas, uma marca precisava de sucesso em competições. Competições automobilísticas eram realizadas então com carros pouco diferentes dos vendidos ao público, e eram seguidas de perto por uma assistência entusiasta desta nova e incrível máquina chamada automóvel, que começava a livrar a humanidade de suas algemas geográficas.
Percy Kidner decide então inscrever uma equipe Vauxhall no recém-anunciado “2000 Mile Trial” do RAC (Royal Automobile Club). Mas para que tivesse algum sucesso, pede então ao jovem engenheiro que melhore de alguma forma a potência do modelo tipo C 20-hp. O jovem agarra essa oportunidade com unhas e dentes; finalmente conseguiria colocar em funcionamento suas idéias avançadas. Em breve, como veremos, definitivamente entraria para a história do automóvel: seu nome era Laurence Henry Pomeroy.
Pomeroy tinha estudado francês na faculdade, e para melhorar seu conhecimento, lera vários livros técnicos na língua gaulesa. Segundo ele, um deles versava sobre as vantagens de altas velocidades de pistão, e fluxo otimizado por válvulas de tamanho generoso. Parece óbvio hoje, mas em 1907, na infância do automóvel, ainda eram conceitos exóticos. O que não impediu Pomeroy de usá-los em seu motor especial. Criou um motor de 4 cilindros em um bloco só, com admissão no cabeçote e escapamento no bloco (cabeçote em F, como no motor BF-161 do Jeep e Aero-Willys), e que dava agora 38 hp a 2.500rpm, a partir de 3.054 cm³, o que era positivamente incrível: o motor 3,3-litros do qual derivava dava 23 hp a 1.500 rpm!
Os carros foram vitoriosos no 2000 Mile Trial, com Kidner ao volante, que ficou maravilhado com a potência e dirigibilidade dos carros de Pomeroy. O futuro havia chegado, de repente, pensou, tamanha a evolução que percebia nos novos Vauxhall. Em seguida uma equipe destes carros, com seu inconfundível radiador em “V” e sua carroceria afilada e sem portas, teve sucesso também nas provas de 1000 milhas em homenagem ao Príncipe Henry da Prússia, fazendo com que todos os exemplares vendidos para o público subseqüentemente ficassem conhecidas como Vauxhall “Prince Henry”.
E de Frederick William Hodges, o antigo chefe de Pomeroy, nunca ninguém ouviu falar mais. Eu não tenho dificuldade alguma de lembrar de Pomeroy hoje, 100 anos depois destes eventos acontecerem, mas tive que consultar um livro para lembrar do nome completo de Hodges. Espero que ele tenha curtido bastante suas férias egípcias, porque quando voltou, seu lugar estava ocupado por seu antigo funcionário…
O Vauxhall 30-98
A Vauxhall desta época era bem diferente de hoje. Era uma marca que se firmava em carros de luxo, caros, com viés esportivo. Se hoje é uma ínfima parte da gigante GM, fornecendo transporte barato para as massas, a Vauxhall de 1913 tratava seus cientes individualmente, vendendo a eles o que eram, efetivamente, artigos de luxo caríssimos.
Em 1913, um destes clientes importantes vai até Luton com um pedido. Seu nome era Joe Higginson, o criador do Autovac, um acessório popular na época que bombeava combustível do tanque por vácuo para um tanque secundário, que depois por gravidade alimentava o carburador. Higginson era um esportista, e vinha pedir um carro especial que, além de poder ser usado no dia-a-dia, pudesse ser usado para vencer as muito populares provas de subida de montanha.
Pomeroy usa a clássica receita de hot-rodder: pega o maior motor que tinha, o quatro-em-linha de válvulas laterais e 4 litros do D-Type, e coloca-o no compacto e esportivo modelo “Prince Henry”. Muitas modificações são aportadas ao motor para melhorar ainda mais o rendimento: o curso do pistão é aumentado para 150 mm e o diâmetro do cilindro aumenta 5 mm para um total de 98 mm, fazendo a cilindrada total chegar a generosos 4,5 litros. Comando de maiores duração e levantamento, e válvulas maiores, são adotados. O câmbio era de quatro marchas — claro, sem sincronizador, ainda não inventado. A excelente dirigibilidade do Prince Henry permanece no novo carro, bem como os freios, que apesar de normais para a época, hoje parecem terrivelmente inadequados.
Só existiam tambores nas rodas traseiras. Estes eram acionados por uma alavanca vertical, operada pela mão direita, que tinha posições fixas feito um freio de estacionamento moderno. O pedal do freio, localizado à direita do acelerador, acionava o freio da transmissão, que devia ser usado apenas em emergências junto com a alavanca, visto que sozinho tinha efeito quase nulo. Andando rápido, o procedimento era o seguinte, se uma curva fechada aparecesse: puxa-se a alavanca de freio dois ou três dentes, deixa ela lá quieta nesta posição, dupla embreagem trocando marcha com a mesma mão do freio e igualando rotações, mão no freio de novo dando um pouco mais de freio caso necessário, solta freio e acelera. E tem gente que reclama dos carros modernos…
Parece horrível, mas todo mundo que dirige o 30-98, mesmo nos dias de hoje, nunca deixa de se apaixonar com ele. Direção precisa, pesada parado mas uma delícia andando, motor forte e torcudo, estabilidade e atitude em curvas que inspiram confiança. Logo estes procedimentos se tornam naturais e uma velocidade bem alta pode ser mantida, com diversão total. O carro propicia uma profunda e direta ligação com uma máquina precisa, feita à mão, com o cuidado para ser uma experiência prazerosa ao volante. Um puro sangue inglês analógico como nunca mais se veria. Um autor inglês chegou a dizer que o 30-98 “mostra tudo de bom que a indústria desaprendeu nos últimos 100 anos”.
O significado do nome, Vauxhall E-type 30-98, é ainda envolto em controvérsia, mas a explicação mais aceita é a seguinte: o motor produziria teoricamente 30 hp a 1.000 rpm e 98 hp, máximo. O carro recebeu um radiador plano também, algo que apesar de menos original e carismático que o do “Prince Henry”, era mais eficiente. Higginson recebeu mais do que pedira; o 30-98 não apenas ganhou todas as subidas de montanha de que participou em 1913, mas também bateu o recorde da famosa prova de Shelsley Walsh. A revista Autocar disse: “Um desempenho deste tipo é uma recomendação por si só. Nenhuma palavra a mais é necessária. ”
Além do carro de Higginson, mais 12 foram feitos para alguns clientes especiais antes que a Primeira Guerra Mundial, eclodida em 28 de julho de 1914, parasse com a produção de carros civis em Luton. A produção só é retomada ao fim do conflito, em 1918, quando a empresa fornecia somente uma garantia neste carro especial: se o cliente quisesse prova que o carro podia passar de 100 mph (160 km/h), era levado ao autódromo de Brooklands, onde era cronometrado para provar.
O carro era fornecido pela Vauxhall com dois tipos de carroceria: a mais comum, chamada Velox (nome usado depois em outros carros da empresa), era um tourer bem compacto de 4 lugares derivado do “Prince Henry”. Existia também, a custo extra, a Wensum, também um tourer compacto de quatro lugares, mas sem portas ou teto conversível, e com inspiração náutica em seu desenho: parecia uma lancha do rio Tâmisa, inclusive com deque de madeira na popa. Obviamente o chassi podia ser vendido sem carroceria, e a Grosvernor criou também para estes clientes um roadster bem popular.
Em 1919, Pomeroy deixa a empresa para trabalhar nos EUA e em seu lugar fica Clarence King, que acaba ficando com a dura tarefa de, nos anos 20, manter um carro de 1913 ainda interessante para uma clientela muito exigente. Para sua sorte, o carro, apesar de decididamente pré-guerra em seu desenho, ainda era bom o suficiente para manter seus clientes apaixonados fiéis. Os australianos, principalmente, adoravam o 30-98 e compraram metade da produção total do carro. Com dinheiro curto (a Vauxhall nunca fora até ali algo lucrativo, diga-se de passagem), King consegue mudar apenas o motor, deixando o resto como estava, fora algumas pequenas modificações incrementais (como freio dianteiro a partir de 1925).
O novo motor aparece em 1922, no novo OE-type 30-98. Menor que o anterior com 4,2 litros, era porém mais potente e mais avançado: comando no bloco mas válvulas de admissão e escapamento no cabeçote, para 115 cv a 3.300 rpm. Mais veloz e divertido, este era o carro-chefe da Vauxhall quando, em 1925, a General Motors compra a empresa, e muda totalmente seu foco: de carros esporte caros para grande série e baixos preços. Como disse o historiador Michael Sedgwick: “Quando a GM chegou duas coisas importantes aconteceram: a tinta azul voltou ao livro caixa, ao mesmo tempo que, pela outra porta, a diversão foi embora. ”
A produção segue bem baixa até 1927, quando acaba a produção deste incrível e memorável clássico. Com o tempo, principalmente depois dos anos 70, a empresa se tornaria o que é hoje, Opel com emblema diferente.
Mas uma grande parte dos 600 30-98 produzidos permanece por aí até hoje, uma alegre lembrança de uma empresa que morreu com seu fim em 1927, mas que por algum motivo permanece sendo usada pela GM como um símbolo de um tempo há muito passado. Pelo menos, nos força a lembrar dela, o que, no fim das contas, está valendo.
MAO
Nota do editor: Laurence Henry Pomeroy morreu em 1941, de ataque cardíaco, aos 58 anos, mas em 1908 teve um filho, Laurence Evelyn Wood Pomeroy, que se tornaria proeminente jornalista técnico-automobilístico, tendo sido editor técnico da revista inglesa Motor. Veio a falecer em 1966, também aos 58 anos e de mesma causa que seu pai. Em sua carreira escreveu livros magníficos, entre eles The Mini Story, de 1964, referência para quem gosta de livros sobre automóveis em geral e sobre o Mini, em particular (tenho-o, em versão francesa). Este livro e outros são disponíveis na Amazon.com. Acesse o site, a lista de livros que Laurence E.W. Pomeroy escreveu é rica./BS