Charles Franklin “Boss Ket” Kettering foi um grande inventor, engenheiro e empresário americano que ficou famoso por inventar a partida elétrica para automóveis e, a partir disso, criar o gigante de autopeças Delco. Quando a Delco foi vendida para a General Motors em 1918, Kettering se tornou o principal pesquisador científico da empresa, onde trabalhou durante 27 anos chefiando a GM Research Corp., e liderando avanços em absolutamente todas as áreas da tecnologia automobilística, de tinta para carrocerias até motores Diesel pesados. Kettering tem 186 patentes em seu nome, e muito do mundo moderno se deve a ele.
Boss Ket era também um grande entusiasta da ciência e da pesquisa, e um comunicador de primeira. Ficou famoso para o grande público americano quando, a partir de 1945, começou a aparecer fazendo pequenos discursos de 5 minutos sobre pesquisa, tecnologia e ciência, no intervalo de um programa de música clássica de sucesso da rede de rádio NBC, todo domingo. Depois publicados em forma de livro pela GM (chamado “Short Stories of Science and Invention”), estes pequenos discursos são verdadeiras pérolas de conhecimento do mundo real e prático, uma linda ode à tecnologia como única forma de fazer a humanidade evoluir de verdade, de forma palpável. Mostra a ciência como coisa não para gênios, mas para pessoas normais que trabalham mais que o normal, e com isso prega o trabalho duro e a paciência como as grandes virtudes que são. Prega também a união da ciência teórica (escola) e da experimentação prática (indústria) como único caminho para o progresso. Um homem realmente especial.
Mas queria falar aqui sobre um conceito que permeia todos estes textos, que acho que é perfeito para a história que resolvi contar hoje. E este conceito é o que a humanidade progride por causa de seu esforço coletivo, que nenhum gênio sozinho conseguiu nada sem “subir nas costas de outros gênios”. Para ilustrar isso, Kettering conta que para existir o rádio no qual os americanos o escutavam, a eletricidade teve que ser descoberta, depois entendida, e mais um sem-fim de avanços tiveram que ocorrer, em tempos e lugares distantes uns dos outros, até que o rádio pudesse existir.
Conta também a história de que, desde milhares de anos atrás, os nativos da ilha de Samoa criavam fogo usando um acendedor de bambu que nada mais era um cilindro e um pistão, onde se colocava musgo seco no cilindro, e batendo o pistão com força, por compressão o musgo incendiava. O alemão Rudolf Diesel, ao conhecer este acendedor numa loja de produtos exóticos em Augsburgo, tem a ideia de um motor com ignição por compressão. E a invenção de Diesel não seria o que é hoje sem várias empresas que o desenvolveram por anos a fio, pois os motores de Rudolf eram arcaicos monstros gigantes criados para substituir usinas a vapor, que nunca seriam usados em veículos. A ideia permanece e avança para lugares às vezes inimagináveis para quem as teve. Como dizia Kettering: “Ideias são mais permanentes que pessoas. ”
O Jensen FF de 1966, revolucionário carro inglês com freios antibloqueio e tração integral permanente em veículo de alto desempenho, muito antes do famoso Audi quattro de 1980, é um exemplo claro disso. À primeira vista, parece apenas uma criação superavançada isolada, que apareceu de repente, vendeu pouco, e foi esquecida, sem ligação alguma com os carros que depois popularizaram estes sistemas tão importantes. Mas, na verdade, a ideia que criou este carro apareceu muito antes dele, e permanece viva, evoluindo incessantemente, até hoje. Uma ideia bem mais permanente que um só carro.
Se o leitor me permitir, vamos voltar bastante no tempo antes de chegarmos ao Jensen, mas prometo que valerá a pena.
Harry Ferguson
Nossa história começa na vila de Growell, perto de Belfast, na longínqua Irlanda do Norte, onde Harry Ferguson nasceu. Quarto filho numa prole de onze, Harry nasceu em 1884 e passou sua infância e adolescência na fazenda da família. Apesar de não gostar nem um pouco do duro trabalho agrícola, estas origens bucólicas marcariam profundamente a sua vida. Aos quinze anos de idade, parte para a capital Belfast, para trabalhar numa oficina de bicicletas, grande novidade mecânica de então. A tal oficina em breve estava trabalhando também com automóveis, a outra novidade do momento, e Harry descobre ali sua vocação: o motor de combustão interna e os veículos que ele tornava possíveis.
Todo tipo de veículo lhe chamava a atenção, inclusive a outra novidade recente: os aviões. Seu monoplano de 1908 usava um motor JAP V-8 de 35 cv, e, com Ferguson no comando, foi o primeiro a levantar voo na Irlanda do Norte. Também era ativo nas competições automobilísticas da época, e sua fama aumentava a cada dia. Logo, com ajuda de um sócio capitalista, abria sua própria oficina, e se tornava agente da marca Vauxhall para a Irlanda.
Mas sua primeira grande invenção vem em 1917: o arado Ferguson, conhecido também como “Belfast”. Durante a Primeira Guerra Mundial, época de grandes incentivos à agricultura na Irlanda do Norte, sua empresa se especializara em venda de tratores. Ferguson, ele mesmo um menino criado em fazenda, ao vender os tratores entende rapidamente as dificuldades e a baixa eficiência de se acoplar os arados tradicionais nos novos tratores, e desenvolve o primeiro arado desenhado especificamente para estes veículos.
A partir desta invenção, teria seu nome para sempre ligado aos tratores agrícolas e talvez seja o maior nome da indústria deste tipo de veículo. Criou o acoplamento de três pontos, hidráulico, que permitia não apenas rebocar o arado, mas levantá-lo quando não em uso, algo hoje universal. Fez tratores com Henry Ford, se separou na justiça dele ganhando indenização milionária, fez tratores com David Brown (o DB da Aston Martin), também se separou dele. Criou sua própria fábrica de tratores na Inglaterra, em sociedade com a Standard Motors, ao fim da Segunda Guerra Mundial. O seu Ferguson TE20 de 1946, conhecido como “Little Gray Fergie” é talvez o mais famoso de todos os tratores ingleses, de um tremendo sucesso.
Tony Rolt
Anthony Peter Roylance Rolt foi um clássico “gentleman driver” inglês. Bem nascido, educado em Eton, Rolt sempre teve dinheiro para comprar e manter grandes carros de corrida, como o Triumph Dolomite Eight que usou em 1937, antes de adquirir o famoso ERA R5B Remus do Príncipe Bira, o riquíssimo corredor siamês. Desde cedo entendeu o valor de uma boa preparação dos carros, e para garantir isso contratou o veterano Freddie Dixon para ser seu chefe de equipe.
Mas Rolt era também militar formado em Sandhurst, e portanto ao redor de 1939 seus crescentes compromissos militares tornaram impossível sua atuação em corridas. Em maio de 1940, já em plena guerra, é transferido para Calais. na França, bem no momento que chegavam lá também os alemães. Rolt foi capturado e passou o resto da guerra tentando escapar: foram nada menos que oito épicas tentativas frustradas de várias prisões, a última envolvendo a construção de um planador a ser lançado do teto de sua última prisão, o Castelo de Colditz, na cidade mesmo nome na região da Saxônia, na Alemanha.
Depois da guerra, nosso herói volta às competições (eventualmente ganhando Le Mans mais de uma vez com Jaguar C-type da equipe de fábrica, o primeiro carro de corrida com freios a disco), mas o que nos interessa aqui é que também forma uma empresa de tecnologia com seu amigo Dixon, a Rolt-Dixon Research. Em 1948, constroem um carro de corrida experimental para demonstrar suas ideias. Chamado de “The Crab” (O Caranguejo), o carro tinha tração permanente nas quatro rodas, e também direção nas quatro rodas.
Tony Rolt e Harry Ferguson se conhecem
Foi neste ponto que Rolt conhece Harry Ferguson. Já em idade de aposentadoria, e próximo de vender sua fábrica de tratores para a Massey-Harris (o que no futuro faria a nossa marca de trator mais conhecida: Massey-Ferguson), o velho engenheiro inovador fica muito impressionado com o tal caranguejo de Rolt. Como vinha estudando sistemas de tração nas quatro rodas para seus tratores, sabia das vantagens inerentes do sistema, e compra a ideia imediatamente.
Compra de uma forma totalmente literal, na verdade: em 1950 a empresa muda o nome para Harry Ferguson Research. Rolt e Ferguson se tornaram bons amigos, mas Dixon logo partiria, ressentido do fato que o magnata dos tratores tomou conta de tudo e colocou seu nome no prédio. Ao fazer isso, falha em notar que Ferguson trouxe dinheiro, experiência e profissionalismo à então pequena empresa. Para substituir Dixon, é contratado outro nome expressivo: Claude Hill, antes da Aston Martin. Hill seria uma pessoa essencial na empresa, desenvolvendo pacientemente o diferencial central, pino-mestre de todo o sistema que ficaria conhecido como “Ferguson Formula” no futuro.
Quando finalmente se aposenta da Massey-Harris-Ferguson em 1954, Harry passa a se dedicar exclusivamente à ideia de popularizar a tração integral. Acreditava, corretamente, que este sistema era claramente superior em segurança, tração e aderência se comparado a qualquer outro, e portanto tinha potencial para uso universal. Um exemplo análogo eram os freios nas quatro rodas: após inicial ceticismo generalizado, se tornara universal a partir de 1920, quando suas vantagens se tornaram óbvias.
Começa criando uma série de carros de passeio experimentais, para demonstração da viabilidade do conceito. Em 1959, seu protótipo R5 já era uma interessantíssima perua com tração integral, mas o interesse da indústria e do público ainda era baixo. E quase ninguém reparou que além da tração integral, a perua também tinha algo que hoje todo carro precisa ter para ser vendido: ABS.
O sistema Dunlop Maxaret
A Dunlop inglesa é pioneira em freios a disco. Na Segunda Guerra Mundial, o avanço da velocidade e peso das aeronaves rapidamente fez a capacidade de frenagem dos tambores chegarem ao limite, e com a adoção dos freios a disco, estes rapidamente se tornaram universais. Analogamente, nos anos 1950 o automóvel também aumentava sua velocidade e peso exponencialmente, fazendo com que o desenvolvimento do freio a disco automobilístico aparecesse. A Dunlop se junta à Jaguar para vencer Le Mans com freios a disco em 1953, acelerando muito o desenvolvimento e aceitação do novo sistema.
Mas com a maior potência de frenagem aparece também o fantasma do travamento prematuro das rodas. De novo o desenvolvimento começa no ar: a partir de 1952, os novos aviões de passageiros a jato são os primeiros a receber o sistema mecânico antitravamento da Dunlop, chamado de Maxaret. Como não poderia deixar de ser, a Dunlop imagina que o que é bom para avião é bom para carro, e tenta vender seu sistema Maxaret para a indústria.
O sistema era simples conceitualmente, se um pouco complexo e caro em execução: uma unidade de sensoriamento, mecânica, era acoplada a cada roda. Nesta unidade, uma pequena roda de peso calibrado gira junto com a roda do veículo, acionada por um acoplamento em que uma mola é usada para detectar quando a desaceleração da roda é muito grande (travamento). Quando a mola deflete denotando travamento, abre passagens para o fluido hidráulico de frenagem, diminuindo a pressão e a força de frenagem. A mola se alivia com a diminuição da desaceleração, e fecha a passagem novamente, voltando à frenagem máxima. O ciclo se repete ad infinitum, enquanto for necessário, evitando o travamento.
Mas a Dunlop não conseguia vender o sistema para fabricantes de automóveis, por motivos óbvios: as vantagens eram menosprezadas, e o preço do sistema era alto. Se até hoje pilotos de rua e pista preferem frear por eles mesmos se puderem, imagine nos anos 1950, época em que os homens eram homens e as mulheres agradeciam por isso…
Mas uma oportunidade incrível aparece quando Harry Ferguson bate à porta da Dunlop. A ideia do norte-irlandês era simples: a unidade diferencial central de seu sistema de tração integral permanente já era capaz de detectar travamento dos eixos dianteiro e traseiro por sua desaceleração, tal e qual era feito pelo Maxaret tradicional, mas nas rodas. O sistema Ferguson é todo baseado no controle da diferença de rotação entre os eixos, então neste caso bastava uma única unidade de sensoriamento do Maxaret montado integralmente na unidade central Ferguson, para o sistema funcionar. Seu custo ficaria diluído no sistema de tração, e todos ficariam felizes!
Uma diferença do Maxaret quando aplicado no sistema Ferguson é que ele não atua diretamente na pressão hidráulica do sistema. Quando a unidade de sensoriamento detecta travamento iminente, é acionado um microinterruptor, que por sua vez aciona eletricamente uma válvula (por meio de uma solenoide) que modula a pressão do vácuo no servofreio.
O P99 e Stirling Moss
Em 1959 Tony Rolt e Ferguson concordam que para realmente provar as vantagens da sua agora madura “Ferguson Formula” de tração integral e freios antibloqueio, teriam que vencer corridas. Só com vitórias em competição de primeira linha as vantagens do sistema se tornariam inquestionáveis. O entusiasta, como sabemos, é um bicho incrédulo que resiste muito a qualquer coisa que determine mudança na sua maneira de dirigir.
É criado então um carro de Fórmula 1 chamado de P99. Com a experiência de Rolt, o pequeno e baixo carro tinha um motor Coventry-Climax 2,5-litros dianteiro, suspensões por triângulos superpostos e, é claro, tração total permanente dividida e 50% para trás e 50% à frente (a unidade de distribuição de torque podia ser ajustada, com as engrenagens corretas, em qualquer distribuição de torque desejada), seguindo a distribuição de peso do carro, e freio antibloqueio Dunlop Maxaret integrado. O equipe era a de Rob Walker, cuja experiência em vários tipos de carro sem dúvida ajudou.
Depois de algumas corridas sem sucesso, no Gold Cup de 1961, no autódromo de Oulton Park, Stirling Moss dirige o P99 a pedido de seu amigo Rob Walker. Numa pista molhada (mas sem chuva), Moss faz uma corrida brilhante usando as vantagens da tração integral e vence a corrida. Seria a última vez que um carro de motor dianteiro ganhava uma corrida de Fórmula 1, e a primeira e última vitória da tração integral na categoria. Mas em 1961, realmente chamou a atenção de todo mundo: uma vantagem teórica finalmente se mostrava real. De uma hora para outra, todo mundo na F1 (e em Indianápolis) começou a investigar sistemas similares.
Mas infelizmente Harry Ferguson não viu nada disso: alguns meses antes, inexplicavelmente, morreu, aos 76 anos, no meio de um dia de trabalho, sem ver sua vitória na F-1 ou um carro de rua ser vendido com seu sistema.
Entra em cena a Jensen Motors
É neste momento na história que entra pela porta Richard Jensen. Richard e seu irmão Alan nos anos 1930 fundaram a empresa que levava seu sobrenome, que basicamente vendia veículos comerciais, mas criava carrocerias especiais sob encomenda para automóveis também. Em 1934, a pedido do famoso ator americano Clark Gable, faz uma carroceria especial para um chassi Ford V-8; o carro fica famoso e faz tanto sucesso que 20 cópias são vendidas. Uma série de modelos de luxo baseados na mecânica Ford se seguem até o início da Segunda Guerra Mundial.
Em 1952, a empresa recebe o contrato para produzir as carrocerias do Austin-Healey; contrato extremamente vantajoso, de grande volume, que manteria a empresa lucrativa até 1967. Em paralelo a isto, a Jensen continuava a produzir alguns poucos carros especiais e caros com sua marca: o primeiro Interceptor de 1949, com mecânica Austin seis-em-linha de 4 litros, seguido pelo avançado 541 em 1952. O 541 era todo em compósito de fibra de vidro, e usava modernos freios a disco Dunlop. Em 1962, o motor Austin era substituído por um potente V-8 Chrysler americano, e era lançado o novo C-V8 , uma evolução do 541.
Os Jensen eram caros e especiais carros de turismo: velozes mas de pernas longas para viagens com todo conforto, segurança e velocidade. Não eram carros esporte, mas tinham orgulho de ser tecnologicamente avançados para sua época: de embreagem de comando hidráulico a freios a disco, uma quantidade enorme de equipamentos foi introduzida no mercado inglês pela marca dos irmãos Jensen.
Richard Jensen era o motor disso. Ele mesmo um fornecedor da indústria, era ativo nas entidades de classe, e com vários contatos importantes. Estava sempre procurando novidades tecnológicas que pudessem ser incorporadas em seus carros antes de todo mundo. Há muito tempo observava, atento, a empresa de pesquisa de Harry Ferguson, mas depois da vitória do P99 em Oulton Park resolveu tomar uma atitude: firmou um acordo para desenvolvimento do sistema, para uso inicialmente no C-V8. Em 1965, já existia um protótipo rodando, mas que não chegaria em produção; esta estava reservada para o substituto do C-V8: o Jensen Interceptor.
Um novo Jensen
Em 1965, paralelamente a estes acontecimentos, a Jensen estava em um ponto marcante de sua história. Os irmãos Jensen, em idade de aposentadoria, já em 1959 tinham fechado um acordo que passava o controle da empresa para o conglomerado Norcros. Quando chega o ano de 1963, Alan se aposenta, e a Norcros decide que é necessário um novo executivo-chefe para a empresa.
Richard Jensen, porém, persistia na empresa e continuava a puxar adiante o desenvolvimento do sistema FF que começara alguns anos antes com a empresa de Harry Ferguson. O desenvolvimento era lento, todavia, por força de sucessivos novos contratos de produção cheios de problemas diversos: primeiro o Volvo P1800, depois o Sunbeam Tiger, foram produzidos na Jensen. Em 1965 é apresentado o protótipo do C-V8 FF, no Salão de Londres, mas o carro estava no fim de sua vida, e seria substituído no ano seguinte, e portanto o lançamento do sistema fica para seu substituto, algo que não estava muito claro qual seria até ali.
A empresa estava numa encruzilhada, na verdade. Além da saída iminente dos fundadores, o contrato para produção do Austin-Healey estava chegando ao fim e nenhum substituto parecia possível. Richard Jensen e o designer Eric Neale desejavam lançar o projeto P66, um roadster esportivo com motor V-8 Chrysler, para substituir o Austin-Healey, e manter o C-V8 em produção. Mas a nova diretoria preferiu cancelar os dois carros e se concentrar num substituto do C-V8, mas com estilo totalmente diferente.
Eric Neale, o desenhista dos Jensen desde o primeiro Interceptor de 1949, foi colocado de lado, seus desenhos foram considerados antiquados, e logo pediria demissão. Por consequência, o novo Jensen teria design italiano, encomendado à Carrozzeria Touring, de Milão. Nascia assim o Jensen Interceptor, e sua versão que finalmente colocava nas ruas o sistema Ferguson, Jensen FF (Ferguson Formula).
O desenho do Interceptor era belíssimo, até hoje atraente. Um grande GT, com frente intimidante de quatro faróis, um longo capô e uma grande porta traseira de vidro lá atrás, tinha interior refinado e de qualidade. O motor, localizado na frente mas atrás do eixo dianteiro, era um Chrysler 383 V-8, de 6,2 litros e 33 0cv, acoplado a uma caixa Torqueflite automática de três marchas. O eixo traseiro rígido era um Salisbury, localizado por feixes de molas semi-elípticas, amortecedores Armstrong e uma barra Panhard.
Na frente, eram dois triângulos superpostos, com dois amortecedores e molas por roda, e barra estabilizadora. Os freios eram a disco Dunlop nas quatro rodas e a direção por pinhão e cremalheira com assistência hidráulica. Ao contrário do 541 e do C-V8 que o precederam, com carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro, a carroceria do Interceptor era toda em chapa de aço.
Apesar do preço alto, o carro foi um sucesso imediato: o belíssimo cupê rapidamente se tornou um símbolo de status, principalmente na Inglaterra, onde um GT com mais de 6 litros de cilindrada já era por si só coisa de gente muito rica.
O Jensen FF
Apesar de obviamente derivado do Interceptor, o FF era diferente o suficiente para ser considerado um outro modelo. Para começo de conversa, o entreeixos era maior. Para acomodar o diferencial dianteiro, o carro cresceu, da parede de fogo para frente, nada menos que quatro polegadas (101,6 mm), para um total de 2.770 mm de entreeixos, e como a posição do motor ficou inalterada, este ficou mais longe do eixo dianteiro, melhorando a distribuição de peso. A bitola dianteira também era mais larga em 25 mm, para ficar igual à traseira nos 1.445 mm. Estas modificações básicas exigiram uma carroceria diferente, coisa que a Touring conseguiu fazer disfarçando muito bem as diferenças, mas ao mesmo tempo dando uma personalidade bem diferente ao FF. Uma lição em desenho bem feito da tradicional casa italiana.
Na frente, os paralamas foram alargados e a grade dianteira tem os cantos bem mais geométricos, retos, do que no Interceptor. Entre a roda dianteira e a porta, uma abertura de exaustão de ar extra foi adicionada à já existente no Interceptor, e voilá: estilo quase idêntico, com mudanças sutis, mas que inexplicavelmente dão um ar mais ousado e exclusivo ao FF. Se você não explicar as diferenças, poucos percebem…
Mas a principal mudança, claro, era o sistema Ferguson Formula. Consistia em uma unidade diferencial e de divisão de torque acoplada à caixa automática Torqueflite, que então separava o torque em 37% para a dianteira e 63% para a traseira. O sistema de diferencial central permite diferenças de rotações entre os dois eixos, dentro de limites preestabelecidos, e controlados por duas embreagens multidisco. O diferencial em si é epicíclico; o suporte dos satélites é a entrada do torque da transmissão, a engrenagem anular é a saída para ao eixo traseiro, e a engrenagem solar a saída para o eixo dianteiro, através de corrente Morse Hy-vo. A diferença de diâmetro entre a engrenagem anular e a solar dá a diferença de torque entre os dois eixos (37/63 no caso). Esta unidade central também agrega o sensor do sistema antibloqueio de freio Dunlop Maxaret. O diferencial traseiro era autoblocante da marca Salisbury Power-Lok.
O resto do carro seguia o desenho do Interceptor, inclusive com seu potente V-8 Chrysler 383, mas os amortecedores eram Armstrong Selectaride, reguláveis em três posições. A direção por pinhão e cremalheira tinha assistência hidráulica, da marca inglesa Adwest. Os pneus eram Dunlop RS5 (6.70-15), diagonais, trocados depois por radiais em 1970. Uma característica marcante do FF, que viria a limitar muito suas vendas, era o fato de que só era vendido com volante do lado direito; o posicionamento do diferencial dianteiro e da transmissão não permitia a sua instalação do lado esquerdo. O carro também era caríssimo, mais de seis mil libras esterlinas no lançamento, dinheiro suficiente na época para comprar um Ferrari ou um Aston Martin. Ou dois Jaguar…
Mesmo assim, a imprensa adorou o carro. A extrema segurança e facilidade de se andar muito rápido, no seco ou no molhado, que se sente hoje dirigindo um Audi RS 7, já era reportada pela imprensa inglesa 50 anos atrás ao dirigir o Jensen FF. A revista Car o nomeou “Carro do ano” de 1967, quebrando a tradição de nunca eleger carros desta faixa elevada de preço.
Disse a Autocar: “… parece que os pneus vão escapar de seus aros antes do carro derrapar e perder a aderência no seco. No molhado podem aparecer ângulos de deslizamento ligeiramente maiores, mas o carro permanece comportado da mesma forma, e o FF contorna a curva numa linha perfeita.”.
“… no FF você pode cravar o pé ao entrar em uma curva desconhecida e “cega”, sabendo que a frente vai sempre puxar para dentro o quanto for necessário, e que a traseira vai sempre segui-la sem abrir o arco. Quando se acostuma com isso, é possível voar através de estradas sinuosas sem quase precisar tirar o pé para as curvas e ondulações, a velocidades aparentemente impossíveis. Os passageiros frequentemente ficam apavorados, sem saber o quanto estão seguros na realidade. Eventualmente, somente na neve conseguimos chegar ao limite do FF, e ali a traseira sai primeiro, mas suave, progressiva, e fácil de ser controlada.”.
A revista também elogiou a controlabilidade nas frenagens de emergência com o freio antibloqueio, mas não se converteu imediatamente ao sistema, como fez com a tração total. Como seu experiente piloto conseguira distâncias iguais de frenagem sem o sistema atuando, reclamou do estranho pedal pulsante (coisa a que nos acostumamos hoje) e realmente não aceitou totalmente as vantagens do sistema. Como já disse, nós, os autoentusiastas, somos resistentes a mudar nossa maneira de dirigir, e demoramos a aceitar mudanças que interfiram nos nossos comandos.
Mas sem dúvida alguma, o Jensen FF era realmente um grande GT: confortável e silencioso, impulsionado pelo potente, suave e silencioso V-8 Chrysler, era capaz de devorar as estradas a velocidades incríveis. E com a segurança extra dos freios antibloqueio e da tração total, podia fazê-lo em qualquer tipo de condição climática, chuva , sol ou neve. Se alguém tinha dúvidas sobre o valor da tração integral, elas eram debeladas numa volta neste carro. Realmente algo excepcional e memorável.
Mas suas vendas permaneceram limitadas, e sem poder ser vendido fora dos países com mão inglesa, sua fama permaneceu pequena, quase limitada aos conhecedores e iniciados. Depois de 1969, saiu de catálogo, apenas alguns poucos carros sendo feitos, sob encomenda, até a falência da Jensen em 1975. Um total de apenas 320 carros foram produzidos pela Jensen em nove anos.
Na F-1, também, após vários experimentos de quase todas as equipes durante a segunda metade dos anos 60, a tração total é abandonada, por sua complexidade e peso extras. Sem vencer mais também em competições, fica meio esquecida por todos.
Em 1971, a empresa de pesquisa de Harry Ferguson se torna parte do gigante de autopeças GKN. O conglomerado resolve novamente tentar promover o sistema Ferguson Formula, criando conversões para Ford Mustang e Zephyr, mas sem muito sucesso. Um último carro para demonstrações é criado, seguindo a tradição dos protótipos “R” dos anos 1950. Nele, a GKN aproveita para promover não somente o sistema Ferguson, mas também suas várias divisões de autopeças.
Chamado de GKN FFF100, era na verdade um Jensen FF com uma nova carroceria (desenhada por William Towns), e com modernização de detalhes. Mas debaixo do capô estava um enorme V-8 Hemi 426, preparado por Keith Black, e equipado com dois carburadores de corpo quádruplo, para produzir algo em torno de 600 cv. Esse monstro ficou famoso por bater todos os recordes vigentes da famosa prova de 0-100 mph-0 (100mph=160 km/h), mesmo com o chão molhado! Fazia a prova em 12.2 segundos no molhado, e em 11,5 segundos no seco.
A empresa também publica um paper na SAE americana, em 1971, que ajuda a conseguir um contrato com a AMC/Jeep americana, uma história contada no detalhe aqui. Mas o fato é que a tração permanente em veículos de alto desempenho cai, por um bom tempo, no esquecimento.
Ferdinand Piëch
O grande elo perdido neste assunto, o fio de continuidade desta incrível ideia germinada em várias cabeças geniais que permitiu que ela não caísse no esquecimento, acontece muito longe dali, no subúrbio de Zuffenhausen, perto de Stuttgart, na Alemanha. Ali o jovem Ferdinand Piëch, neto do fundador da Porsche e herdeiro de sua personalidade e habilidade técnica, chefiava a engenharia experimental e o departamento de competições.
Muita gente não sabe, mas a Porsche, antes de ser um fabricante de carros, é uma empresa de engenharia; muitas das inovações da empresa são lançadas em seus veículos. Por causa disso, raramente paga royalties para usar inovações de outros; seria como ajudar a concorrência. Podemos apenas especular, então, por quanto tempo a empresa estava acompanhando o desenvolvimento do sistema Ferguson, mas sabemos de fato que um dos primeiros pedidos de compra no lançamento do FF veio da AFN Ltda, empresa que até 1955 fabricava os automóveis Frazer-Nash, mas que então era o representante da Porsche no Reino Unido.
A fila de espera fez com que a Porsche só fosse receber o seu Jensen FF (o chassi 119/008) em Stuttgart em julho de 1967, mais de um ano depois do pedido. O carro roda mais de quatro mil milhas (6.400 km) em teste na Porsche, no departamento chefiado por Piëch, e no ano seguinte discretamente retorna à AFN na Inglaterra para ser vendido como um carro usado.
O que acontece depois é história conhecida: com a terceira geração da família Porsche engajada em sangrenta batalha pelo poder na empresa familiar, em 1972 os irmãos Ferry Porsche e Louise Piëch decidem tirar seus filhos (e qualquer outro membro da família) das operações da empresa para sempre, tentando evitar que os conflitos acabassem por prejudicá-la.
Ferdinand Piëch logo se torna diretor de engenharia da Audi em Ingolstadt, e ali, capitaneia o desenvolvimento do primeiro Audi quattro, lançado em 1980, com um sistema de tração permanente nas quatro rodas com diferencial central, similar em conceito básico à fórmula de Ferguson. O Audi quattro, além de fazer sucesso de público e crítica, simplesmente trucida a oposição no Campeonato Mundial de Rali, e muda para sempre a categoria. Finalmente a tração total permanente se populariza, principalmente em carros de alto desempenho e se torna cada vez mais popular.
Galeria: O canal “Classic Driver TV” colocou recentemente o Jensen FF com seu seu descendente direto em espírito: o Ferrari FF (assista aqui)
De outro lado, a Bosch nos anos 1970 desenvolve um sistema antibloqueio de freios muito parecido ao Maxaret original, mas com sensores eletrônicos nas rodas muito mais baratos, resultando em um sistema muito mais eficiente, e hoje, várias gerações depois, de uso praticamente universal.
Certamente, este sucesso não foi mera coincidência ou genialidade repentina dos alemães, nos dois casos… Como nos ensina Kettering, é apenas uma ideia que germinou muito tempo atrás seguindo o seu curso de evolução, mais persistente e permanente que qualquer pessoa. Ou qualquer automóvel, claro, mesmo que esse automóvel seja algo tão importante e interessante quanto um Jensen FF.
MAO