Peço perdão por espremer mais um pouco de suco deste assunto, mas é inevitável. Quando escrevi a recente matéria sobre o Jensen FF, esqueci-me completamente de mencionar outra vertente que continuou o desenvolvimento da tração total permanente para as ruas, e que gerou o último contrato de desenvolvimento com a empresa GKN, herdeira do sistema Ferguson Formula: o AMC Eagle. Já tinha escrito sobre ele no antigo blog Ae, mas me esqueci completamente de mencioná-lo no texto do FF. Corrigir este erro imperdoável é o objetivo de voltar aqui agora. Muito da história que contarei hoje já foi contada por mim aqui, mas é pertinente retornar a ela para explicar as origens do Eagle. E começo falando sobre o carro que deu origem a ele:
AMC Hornet
A American Motors Corporation, ou AMC, foi formada em 1954 com a junção da Hudson e da Nash. Muitos anos depois, em 1969, a empresa compraria também a Kaiser-Jeep, mantendo-se então até 1981 como o último fabricante “independente” dos EUA, quando então foi comprada pela Renault. A empresa francesa ainda manteve certa independência da AMC, mas finalmente, após anos de maus resultados, vendeu-a para a Chrysler em 1987, que estava interessada apenas na marca Jeep, única que sobrevive hoje entre as várias da AMC.
Quando a AMC foi formada, a Nash vendia um carro compacto de sucesso chamado Nash Rambler. O sucesso do carro permaneceu nos anos que se seguiram, praticamente sustentando a empresa, a ponto de nos anos ’60 a Rambler se tornar a marca de automóveis da AMC. Três carros Rambler eram então oferecidos, o American (compacto, tamanho original do Rambler), Classic (médio, concorrente do Chevrolet Chevelle), e finalmente o Ambassador, um carro grande tipicamente americano. No final dos anos ’60 a empresa gradualmente abandonava o nome Rambler em favor de AMC, um grande escorregão estratégico, se alguém me perguntar a opinião. O último Rambler foi o American de 1965 a 1969.
Quem acompanha o AE vai lembrar que uma versão deste carro foi fabricada na Argentina, terra da nossa colunista Nora Gonzalez, que tem uma longa história com ele. Fabricado pela IKA (Industrias Kaiser Argentina) e chamado de Torino, a versão argentina tinha várias diferenças de aparência e personalidade, a maior delas vinda de um magnífico seis-em-linha OHC (overhead camshaft, comando de válvulas no cabeçote) com câmara de combustão hemisférica, herdado da Jeep americana. Mas divago: o que interessa aqui hoje é que em 1969, nos EUA, aparecia um novo compacto para substituir o Rambler American, que levaria agora o nome de AMC. E levaria um nome hoje conhecidíssimo de um Hudson dos anos 1940/50: Hornet.
O AMC Hornet era um compacto americano clássico em mecânica, com motor dianteiro e tração traseira, suspensão independente na frente e eixo rígido atrás. A “novidade” era apenas a carroceria monobloco, sem chassis separado. Era também menor do que o usual então naquele mercado, com entre-eixos de 108 polegadas (2.743 mm). Lançado ao final de 1969 como modelo 1970, era oferecido em versões sedã de duas e quatro portas inicialmente, mas se mostraria uma plataforma muito versátil, gerando um sem-fim de variantes e versões, e se tornando a base de praticamente todo AMC de algum sucesso (fora Jeeps) até o fim da empresa em 1988.
A primeira variante, e de longe a mais controversa, foi lançada num emblemático 1º. de abril de 1970. O primeiro subcompacto fabricado nos EUA, o AMC Gremlin (abaixo) era um Hornet com o entre-eixos reduzido (97,2 pol, 2.469 mm), e sem o terceiro volume correspondente ao porta-malas. O estilo da traseira vinha de um carro conceito baseado no pony car AMC Javelin, de 1968, chamado de AMX-GT. O Javelin “encurtado” de dois lugares entrou em produção com o nome de AMX no mesmo ano, mas não tinha o original desenho de traseira do conceito.
Já o novo subcompacto Gremlin não teria tanta sorte: a traseira truncada do AMX-GT, quando colocada no derivado do Hornet, se mostrou no mínimo controversa, para ser gentil. A maioria das pessoas apenas torceu o nariz em desgosto, fez piada, ou simplesmente achou mais feio que bater na mãe.
Mas apesar disso, não foi um completo fracasso. Oferecido, como o carro do qual derivava, com o seis em linha OHV da AMC em três cilindradas (o maior 258 pol³, 4.227 cm³), o Gremlin era o mais barato carro americano de então, em sua versão mais básica, sem o banco traseiro. Vendeu relativamente bem, pelo preço e economia.
E a família continuava crescendo. Em 1971 vinha uma versão de grande sucesso: a perua, chamada Sportabout. Não existiam peruas americanas deste tamanho, e ela seria a versão do Hornet mais vendida em sua história. Também aparecia uma versão para nós, pessoas inteligentes que se movem rápido: o S/C 360, com o V-8 de 360 pol³ (5.899 cm³) e carburador quádruplo. Mas naquela época em que acabavam os carros musculosos por alto preço de combustíveis e altos seguros, durou apenas um ano. Em 1973, outra versão interessante aparecia: o Liftback. Era um dos poucos hatchbacks do mercado americano, país onde nunca foram muito populares.
Em 1978 toda a família muda: os Hornets receberiam uma reforma visual, várias melhorias mecânicas visando principalmente melhora do conforto, e a AMC decide mudar o seu nome: agora se chamava AMC Concord. Este ano seria o último do feinho Gremlin, que seria substituído por dois carros com o mesmo entre-eixos curto, mas com estilo mais agradável: o Spirit Liftback (fastback) e o Spirit sedan (hatchback).
O Liftback deu cria a um novo AMX de dois lugares, uma versão de alto desempenho, com o V-8 de 304 pol³ (4.981 cm³) da AMC. Um carro que não podia ter vindo de outra época, senão 1978/1979…
A gênese de um 4×4 pioneiro
Como sabemos, a Four Wheel Drive Company de Clintonville, Wisconsin, produzia caminhões com tração total permanente e diferencial central desde 1911. Mas como o uso principal da tração total continuava sendo o fora-de- estrada, situação onde o diferencial central não tem lá muita serventia, a não ser que possa ser do tipo de deslizamento controlado, e não completamente “aberto”. Na Segunda Guerra Mundial, o Jeep mostrou o caminho mais fácil e eficiente para este tipo de veículo fora-de-estrada: sem diferencial central, a tração dianteira só era acionada em pisos de baixa aderência, onde o deslizamento das rodas o permitia. Onde as rodas não podem deslizar, usa-se somente a tração traseira. Este sistema se chamou part-time, ou temporário.
Nos anos 1960 e 1970 viu-se o aumento do uso de veículos fora-de-estrada para recreação e, por consequência, no dia-a-dia das pessoas nas cidades e estradas. Tal uso reduzia a utilidade do sistema part-time, relegando-o para uso muito esporádico, quase de vez em nunca. A Jeep americana, claro, começou a pensar em maneiras de criar mais uso para toda aquela parafernália extra de tração dianteira que ia em seus carros, mas poucas vezes era usada. Rodas-livres, que reduziam o arrasto do eixo dianteiro quando fora de uso, foram adotadas, e a popularização do câmbio automático suavizou um bocado a operação no asfalto dos Jeep CJ e derivados.
Mas em 1973 a Jeep apareceu com uma grande novidade: adotando um diferencial central, bloqueante (por atrito), criou um sistema de tração total permanente chamado Quadra-Trac, que fazia com que as vantagens da tração total pudessem ser aproveitadas também no asfalto.
Ao mesmo tempo, alguém na AMC teve uma grande ideia, vinda da observação do crescimento do uso dos Jeeps como carro de uso diário. “E se, ao invés de civilizarmos um Jeep para que ele faça algo que não foi projetado para fazer, pegássemos um carro de rua, monobloco, e colocássemos nele algo da capacidade para o fora de estrada do Jeep?” O novo sistema Quadra-Trac parecia ser a porta para isso.
Iniciou-se um projeto de investigação com as seguintes diretrizes básicas:
- Desenvolver um veículo com a segurança da tração nas quatro rodas da Jeep, mas com todos o conforto e comodidade de um automóvel de passeio
- Desenvolver a instalação dos componentes mantendo os níveis de ruído, vibração e aspereza de um veículo com tração em duas rodas.
- Desenvolver um sistema de tração total permanente que reaja automaticamente a qualquer situação sem comando algum do motorista.
Imediatamente pegou-se uma perua Hornet e nela se montou a tração nas quatro rodas permanente Quadra-Trac da Jeep. Facilitou muito o fato de que a suspensão dianteira, independente, tinha as molas e amortecedores montados no braço superior, fazendo com que a semiárvore de tração tivesse espaço para passar entre os braços, com um mínimo de modificação.
O veículo funcionou muito bem, e com modificações relativamente simples e baratas, o que animou a equipe de projeto. Mas apesar de atender aos objetivos 1 e 3, ficou muito aquém no número 2. O carro, monobloco ao contrário dos Jeep de chassi separado, transmitia muita vibração e ruído do diferencial central em toda gama de operação.
O espírito de Harry Ferguson ajuda
Estudando possíveis soluções para o problema, um engenheiro da AMC se lembra de ter assistido uma palestra na SAE (Society of Automotive Engineers) em 1971 sobre um sistema de tração permanente que podia ser usado em automóveis de passeio. Um pouco de pesquisa na SAE desencavou um trabalho técnico de 1971, de autoria de O. Webb (com ajuda de Claude Hill) intitulado “GKN Ferguson Formula All-Wheel Control System”. Corria o ano de 1976.
Logo a GKN era contratada como consultora para o projeto. Um protótipo do diferencial central, agora sem o sistema antibloqueio de freios Dunlop Maxaret, mas com o diferencial epicíclico e as embreagens de acoplamento viscoso, é preparado para o Hornet de tração integral. Os resultados foram muito melhores, logo de início: o acoplamento viscoso da GKN-FF se mostrou eficiente em reduzir sobremaneira os níveis de vibração e ruído, dando novo ímpeto para o projeto. O sistema era muito mais suave na distribuição de torque, amortecia impactos e transições, e se travava automaticamente quando as rotações variavam muito.
Um programa oficial de veículo de produção se inicia em julho de 1977, com o lançamento previsto para o final de 1979, como modelo 1980. O diferencial central da Ferguson se mostrou muito bom, mas várias modificações seriam necessárias para produção nos volumes planejados, fazendo que um parceiro americano aparecesse: a New Process Gear se torna o representante americano da GKN-FF, e desenha duas caixas diferentes para a AMC: uma (chamada 219) para os Jeep, com reduzida incorporada, e uma menor chamada 119, sem reduzida, para o futuro Eagle.
O Eagle
O resto do desenvolvimento do carro foi bem simples e direto. O carro era 76 mm mais alto que o Concord do mesmo ano, e seguia a configuração básica do carro de tração traseira. O diferencial dianteiro era um Dana 30, adaptado para receber juntas universais nas extremidades, e preso ao cárter modificado do seis-em-linha AMC de 4,2 litros. Apesar dos primeiros protótipos da FF terem distribuição de 30-70% de torque entre a dianteira e traseira (e um único Hornet V-8 protótipo de alto desempenho usar 33-67%), no final os carros de produção usavam distribuição tradicional da Jeep: 50% do torque para cada eixo.
Originalmente se imaginou o carro apenas em versão perua, mas no lançamento o cupê de duas portas e o sedã de quatro portas estavam disponíveis, completos com pneus de faixa branca, teto de vinil e pequenas janelas traseiras. Carros realmente esquisitos em aparência, estes dois últimos. Na carroceria, fora alguns pequenos detalhes de acabamento (e, obviamente, as alterações de assoalho invisíveis para acomodar os novos componentes mecânicos), eram exatamente iguais aos Concord, a exceção eram para-lamas alargados de plástico, para proteção da carroceria em off-road.
O carro foi lançado em agosto de 1979, e, portanto, antes do Audi quattro, que só foi exibido pela primeira vez em Genebra em março de 1980, sete meses depois. É então o primeiro carro de passeio com tração total permanente da era moderna, se descontarmos o importantíssimo, mas irrelevante no grande esquema das coisas, Jensen FF de 1966.
Para o ano modelo 1981 aparecem as versões de entre-eixos curto: o Spirit sedã se torna o Eagle Kammback, e o Spirit Liftback se torna o esportivo Eagle SX/4. Até um conversível é oferecido (feito sob contrato pela Griffith company), chamado de Sundancer. O Eagle é um sucesso de vendas para a pequena AMC, vendendo 40 mil veículos anualmente em seus primeiros anos, a ponto de que em 1983 cessava a produção dos AMC Concord.
Já em 1981 surgia a opção do sistema de tração part-time tradicional da Jeep, mais barato e muito eficiente no fora de estrada. Com o tempo, este sistema seria o mais vendido, o que mostra que ainda se pensava em tração integral para uso em fora de estrada apenas.
O carro sobreviveu um ano apenas depois da compra pela Chrysler em 1987, e somente na versão perua. E, é claro, infelizmente não teve substituto. Mas tanto ele quanto o Audi quattro foram os pioneiros de uma nova onda de uso da tração total não somente no fora de estrada, mas em qualquer lugar e situação. E é outra ponte do trabalho de Harry Ferguson para os dias atuais.
MAO