No meio desse mundo moderno cheio de gente falando que o entusiasmo por automóveis está morrendo, que os jovens não querem mais saber de mobilidade pessoal, de que carros autônomos vão mudar o mundo, eis que sou convidado para andar na cadeira dois de um Chevette em Interlagos, como já contei aqui.
Confesso que aceitei porque qualquer convite que inclua as palavras “Interlagos” e “Chevette” torna-se irresistível para mim. Não sei explicar o porquê, simplesmente é uma daquelas realidades que apenas se aceita e não se tenta entender. Esperava pouco do evento porém; não ia dirigir afinal.
Me peguei tentando lembrar quando estivera em Interlagos pela última vez. Ir até lá, nos meus primeiros anos em São Paulo, era algo que fazia regularmente, principalmente para ver as incríveis corridas de Opala Stock Car. Foi ali que meu maior ídolo das pistas se tornou o Paulo “Paulão” Gomes. Não Senna, não Piquet, mas aquele insano sujeito barbado e meio fora do peso que deixava para frear o Opala em um lugar que para todos os outros meros mortais era a saída da curva. O Paulão me fazia levantar e me dava frio na espinha; um herói sem medo algum que expandia as fronteiras conhecidas da coragem. Lembro também das Mil Milhas, uma noite sempre memorável passada no gramado, no meio do autódromo, em uma época mais simples e menos policiada em todas as frentes do viver.
Mas fazia muito tempo que não ia até lá, muito mesmo, tanto que tenho até vergonha de falar especificamente quanto. Por décadas depois do fim das corridas de turismo nacional, não tive vontade de voltar aquele templo sagrado da velocidade brasileira. E confesso que não esperava ansiosamente voltar. Hoje, nesse mundo moderno estéril, certamente a experiência empalideceria frente às minhas tão caras memórias do lugar.
Mas chegando ao autódromo, entrando nele com a minha perua e passando pelo túnel debaixo da arquibancada e da reta dos boxes, um frio gelado percorreu minha espinha. Emoção, adrenalina, retorno à casa. Como deixei passar tanto tempo?
Mas o melhor ainda estava por vir. Esperava meia dúzia de gatos pingados, uma pequena confraria de fiéis se reunindo em torno de seus objetos de adoração em um lugar sagrado, uma turma de fósseis obsoletos na realidade, e mais nada. Mas o autódromo estava lotado, e na pista, vi assim que cheguei, velhos Opalas de novo circulando. Totalmente inesperado, mas particularmente emocionante para mim.
O lugar fervilhava de atividade. Indo estacionar, dividia espaço nas ruas internas com monopostos se dirigindo à pista, Opalas, Celtas, e Gols de competição, carros de corrida improváveis de todos os tipos e gêneros. Tendas armadas para todos os lados, onde famílias, amigos, mecânicos amadores e semiprofissionais se reuniam em torno de suas máquinas. Gente de toda idade, cor e credo. Ferramentas, carros, capacetes, macacões. Barulho forte de motor mexido, cheiro de álcool, querosene, óleo, gasolina. Um verdadeiro paraíso. Circulava eu entre aquele movimento todo, incógnito, pensando em como eu podia não saber de toda esta atividade interessante tão perto de casa. Me senti um idiota, mas ao mesmo tempo, feliz por descobrir tanto entusiasmo em forma crua e explícita desabrochando assim em plena luz do dia, para quem quisesse ver. Pode isso? É permitido? Parece que as notícias da morte do automóvel foram realmente exageradas.
Conheci então o Paulo Levi pessoalmente, e seu incrível Chevette 1975 azul, de dentro do qual iria pela primeira vez andar naquela pista que tantas vezes visitei como espectador. O carro foi outra patada inesperada do dia: ao vivo, em um azul profundo, parecendo novo como em seu primeiro dia de vida mais de 40 anos atrás, me deixou pasmo e sem palavras. Que carro lindo e perfeito, puro, sem adornos, limpo e honesto e simples como não se vê mais hoje em dia. Algo que marca, assusta até, e que deixou esse velho chevetteiro reformado completamente pasmo e apoplético.
O Chevette do Paulo é um pouco mais baixo que original, única diferença visível externamente que indicaria algo a mais que um mero Chevette 1975. As rodas, originais, ainda tem suas calotas (que, incrivelmente, não saem voando nem na pista), e calçam novíssimos Michelin 175/70 R13. Debaixo do capô o motor é um 1,6 litro, com cabeçote trabalhado pela Paula Faria, um Weber nacional original do 1.6/S e escapamento dimensionado com um som sublime. O comando é algo de pedigree invejável: o Paulo levou aos EUA um comando original novo de Chevette, e o retrabalhou com especificações próprias na Iskenderian. Se mostraria, mais tarde na pista, o motor de Chevette mais liso, e de melhor som, que já experimentei. Simplesmente uma delícia.
Conheci também o Milton Rubinho, o piloto do Chevette. Um sujeito super boa praça, animado, e entusiasta de mão cheia. Imediatamente aquilo virou uma trupe bagunçada, alegre, desengonçada, e pouquíssimo tempo depois, eu já tinha dado uma volta no seu Focus Mk1 de uso diário/track day, ele tinha andado na minha perua e dado belos zerinhos, tínhamos trazido um capacete do estacionamento aos “boxes”, mas esquecido outro no carro, que teve que ser recuperado na base da corrida a pé mesmo, bem em cima da hora da largada.
O Focus do Milton, um Mk1 1,6 litro preto como meu último, está uma delícia de andar, percebi claramente nos poucos metros que rodei com ele. Deixou um gosto de quero mais. Estou combinando um passeio com ele nos Romeiros, e assim que fizermos isso eu conto mais para vocês. Basta dizer por enquanto que é algo invejável, coisa de entusiasta que sabe o que é bom em automóvel; um carro de uso diário com reflexos e comportamento de carro de corrida. Cuidadosamente ajustado, apesar do orçamento apertado, para ser uma coisa muito mais legal do que parece. Mal posso esperar para andar de novo nele, e me deu de novo um arrependimento danado de ter vendido meu 2006 prata, lá nos idos de 2013.
Esperando a hora de entrar na pista, chega Sir Bob Sharp, em um Porsche Macan novinho. O Bob ia dirigir o Caddy De Ville conversível do Douglas Loiola, amigo do AE, que iria de copiloto. Ver dois caras de capacete num De Ville 1970 prestes a ir à pista é no mínimo divertido! O nosso estimado líder Paulo Keller também estava lá, como sempre trabalhando incansavelmente detrás de suas câmeras e telefones, ao mesmo tempo que programava o resto do dia e conversava animadamente com todos. Como ele consegue ser esse cara indispensável, eu não sei, mas dei graças a Deus por isso.
Antes de entrar na pista, tinha certeza que preferia estar ao volante; agora, a certeza é do contrário. Andar com o Milton ao volante me ensinou como fazer a volta de Interlagos. Na próxima tenho que dirigir, já que sei como se faz o treco direito. Obviamente não tenho a habilidade do Milton, mas aprendi um bocado para pelo menos não passar humilhação. Ou pelo menos passar uma quantidade suportável de humilhação…
O que o Milton e o Chevette fazem ali é inacreditável. A quantidade de aderência possível em pneus tão finos é difícil de conceber. O “S” do Senna nunca mais será o mesmo para mim; nunca imaginaria em fazê-lo daquela forma. Depois de frear forte no fim da reta dos boxes, o Milton reduzia e abria bem para fazer a primeira perna. A tangência era em cima da zebra, que era larga o suficiente para que o Chevette pudesse ficar todinho em cima dela. Assim que a primeira perna acabava e o carro ficava reto, era hora de fazer a segunda perna; na primeira vez achei que certamente ia rodar para o outro lado, traseira primeiro. Mas não, o Milton simplesmente apontava para a zebra seguinte e, reto, acelerava, fazendo a perna praticamente reta, tangenciando ela lá no fim da curva, lá embaixo. Muito legal!
E como o Chevette aguenta abuso! Sempre previsível, sempre fácil de controlar. O barulho do motor é pura música, e apesar de provavelmente sermos o mais lento carro ali, no miolo dávamos trabalho a todos. Me orgulho em dizer que demos duas voltas em um Charger R/T nacional, provavelmente do mesmo ano do Chevette. O piloto do Chevette azul era um relógio, colocando toda volta nos 2:33 cravados. Os freios, porém, pediram arrego depois de umas 10-12 voltas, necessitando algum tempo andando devagar para que esfriassem e voltassem a funcionar.
Apesar do calor escaldante, foi uma experiência memorável. A pista, o carro, o piloto. Tudo contribuiu para me fazer uma pessoa diferente da que entrou por aqueles portões de manhã. Já pensei em arrumar outro Chevette para mim, dez anos depois de ter vendido meu último, só para participar do torneio. Ou de fazer o torneio com minha perua BMW, que, para minha completa surpresa, competiria entre os “modernos” mesmo tendo 20 anos de idade! O medo de ir com a perua é de uma morte gloriosa numa bola de fogo possível de ser vista do espaço sideral: certamente no fim da reta dos boxes, antes daquele técnico e difícil “S”, estaria bem acima dos 200 km/h, e se me conheço, louco para atravessá-lo a 200 se possível… Mas o fato é que quero de novo ir para pista com um Chevette. Alguns amigos riem quando falo isso, e dizem que sou a mais previsível pessoa do mundo. Talvez seja verdade, mas fazer o que, né?
Como se não bastasse tudo isso, o Paulo Keller me convidou a almoçar no Box 54, onde pré-estreava o documentário “Nutz”. Chegando lá, encontro de novo, no mesmo dia, outro lugar cheio de entusiastas de todo tipo numa felicidade tremenda. Food trucks, música ao vivo, montes de carros antigos e modernos legais, entrevistas rolando. Muita gente mesmo, curtindo a vida ao redor dessa máquina maravilhosa que alimentamos com gasolina, e que nos retribui com liberdade pura, destilada até sua essência. Que felicidade!
E no fim, ainda dei uma voltinha rápida de Porsche Macan. Como isso tudo foi acontecer em um só dia? Eu sinceramente não faço ideia, mas se vierem para mim de novo com esse velho papo que o entusiasmo pelo automóvel vai acabar, me desculpem: eu simplesmente não acredito! Eu vi ele, vivo, hoje. E aqui mesmo, em nosso sofrido e triste país. Graças a Deus!
MAO