Se há carro que fez parte da minha vida, inclusive profissional e esportiva, e que por isso mesmo dele guardo as melhores lembranças e o maior carinho, foi o DKW, mais precisamente DKW-Vemag. O mais curioso é que a marca foi a primeira a ser produzida no Brasil dentro do plano de implantação da indústria automobilística brasileira coordenado pelo Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia), órgão supraministerial criado pelo presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira com poderes especiais para acelerar o processo o mais possível. O primeiro DKW-Vemag deixou a linha de montagem no dia 24 de novembro de 1956.
Justiça seja feita: o primeiro, de fato, foi o Iso Isetta, fabricado sob licença da italiana Iso Autoveicoli, de Bresso, perto de Milão, pelas Indústrias Romi S.A., de Santa Bárbara d’Oeste, interior de São Paulo. Lançado em 5 setembro daquele mesmo ano, foi batizado no Brasil de Romi-Isetta. Quiseram as regras de incentivos à produção local que a eles fizessem jus os automóveis de no mínimo duas portas e quatro lugares, no que o Romi-Isetta, com sua porta única frontal e dois lugares, não se enquadrava, desse impedimento resultando que seu preço fosse longe de ser competitivo.
DKW, curiosamente, era uma marca relativamente conhecida no Brasil, pois o pequeno carro era importado regularmente pela filial da Auto Union no Rio de Janeiro a partir de 1937, operação interrompida devido ao início da Segunda Guerra Mundial com a invasão da Polônia pelos alemães em 1º de setembro de 1939. Seu motor era um 2-cilindros a dois tempos de 700 cm³ instalado transversalmente na dianteira. Era um carrinho, sedã ou roadster, muito simpático.
Por isso, quando se soube que o DKW seria fabricado no Brasil pela Vemag, muitos festejaram. No dia em que o primeiro DKW, já com marca DKW-Vemag, deixou a linha de montagem eu recém havia completado 14 anos, mas já vasculhava o mundo automobilístico.
Esse primeiro DKW-Vemag era uma perua de duas portas da série F-91, bem pequena e estreita. O motor era um 3-cilindros de 896 cm³, dois tempos, claro, de 38 cv a 4.250 rpm e 7,25 m·kgf a 2.800 rpm. Ficou em produção durante o ano de 1957, até que em 1958 surgiu o F-94, maior e mais largo, versões perua de duas portas e sedã de quatro.
Eu lia muito sobre o carro nas revistas Mecânica Popular e Revista de Automóveis — ainda não existia a Quatro Rodas — e também as estrangeiras como a italiana Quatro Ruote, a francesa L’Automobile e as americanas Car and Driver, Road & Track e Sports Cars Illustrated. Sempre ia aprendendo um pouco sobre o DKW. O carro me fascinava.
Em 1959 meu pai resolveu comprar um. Fomos os três, ele, eu e meu irmão à uma concessionária Vemag, a Gávea S.A., em Botafogo, no Rio. Até então eu nunca havia dirigido um, além do que ainda não era habilitado. Meu irmão já era, mas também ainda estava por andar no carro; meu pai, idem, claro. Ele literalmente seguiu o conselho dos filhos.
Foi nessa mesma concessionária, dois anos antes, que eu e o mano fomos conhecer a peruazinha F-91 e presenciamos uma cena inusitada. Uma cliente, proprietária de uma dessas, esbravejava por a janela traseira esquerda ter caído! Sou capaz de lembrar a cara dela, uma senhora loura nos seus 50 anos, e também que pintado na lateral estava a marca de uma cera para assoalho: Cera Rutilo!
Mas enquanto papai negociava a compra ficamos sabendo que os motores 900 estavam sendo trocados por 1000 (981 cm³) — na concessionária! Atualização desse porte fora da fábrica, natural então, aprenderíamos que era algo totalmente fora de padrão da indústria.
Assim, tivemos um dos primeiros DKW-Vemag 1000, com potência de 44 cv a 4.500 rpm e torque de 8,5 m·kgf a 2.500 rpm. Ali começou, de fato, meu contato com o DKW e logo aprendi a admirá-lo.
Um carro diferente
Para início de conversa, a tração era dianteira. Ao contrário dos dois Fuscas que tivemos em casa, um 1953 e um 1955, além da Kombi desse mesmo ano. Eu já conhecia tração dianteira, uma vez que tinha aprendido a dirigir num Citroën 11 L 1947 de um tio, ele o meu “instrutor”. Mas isso fora há muitos anos, 1953/1954 (cinco anos é um intervalo de tempo enorme quando se é adolescente). Embora ainda usasse juntas tipo universal nas semi-árvores de tração, era um sistema bem mais moderno que o do Citroën.
O volante de direção era achatado na parte inferior, como se vê hoje em muitos carros. O motivo era dar mais espaço para as coxas. A alavanca do câmbio de quatro marchas era na coluna e o padrão do “H” era invertido em relação ao Fusca, com marchas pares em cima e ímpares embaixo. A ré era perna-de-cachorro para cima, ao lado da segunda.
A alavanca era fácil de usar, mas o curso da engate de primeira era muito grande, pois não era sincronizada, era a engrenagem deslizava toda, não uma luva sincrônica, daí o curso maior. Para mim e para o meu irmão não era mistério, dominávamos a dupla-embreagem (movimento do pedal, nada a ver com sistemas dos câmbios robotizados de hoje) para engatar a primeira com o carro andando. Os Fuscas, a Kombi e o Citroën do tio eram assim.
A trava de engate involuntário da ré era vencida premendo-se a alavanca, como no Fusca e na Kombi. O sistema de comando de câmbio era misto, por haste e cabo — haste para engate e cabo para seleção do canal. Era muito eficiente e para passar de segunda para terceira era movimento reto para baixo. Era tão bom que corríamos com alavanca na coluna, era perfeito.
Havia um mecanismo de roda-livre no câmbio, que podia ser ativado e desativado à vontade por uma alavanca sob o painel no lado esquerdo. Como o mecanismo ficava entre a embreagem e o câmbio, podia-se passar marchas normalmente sem usar a embreagem. Mas nas trocas ascendentes era preciso esperar que o motor caísse de rotação (demorava, no DKW dois-tempos), para o carro “empurrasse” o motor, condição para que a roda-livre atuasse.
A roda-livre, dizia-se, servia para poupar combustível, o que era verdade, aproveitava-se a inércia. Tanto é assim que a roda-livre está voltando em vários carros hoje, notadamente nos do Grupo VW, Porsche inclusive. O sistema é diferente, é pela dupla-embreagem automática dos câmbios robotizados em que a da marcha em uso se desacopla ao levantar o pé do acelerador, mas o efeito é exatamente o mesmo.
Mas havia uma outra razão, escusa, para a roda-livre: motores de dois-tempos costumavam engripar pistão com relativa facilidade (praticamente nada no DKW), assim se motor engripasse as rodas motrizes não travariam, portanto era uma questão de segurança.
Mas, tudo considerado, era meio temerário roda-livre associada a motor de dois tempos com seu parco freio-motor. Deixar em roda-presa ajudava, mas não contar com bom freio-motor em tempos de freios a tambor não trazia realmente paz de espírito.
No começo da vida do DKW-Vemag, pessoal técnico da fábrica ia para o início da descida da serra da Via Anchieta para orientar motoristas a desligar a roda-livre.
Mas o freio dianteiro era duplex, dois cilindros de freio por roda, resultando em auto-energização das duas sapatas (auto-energização é efeito de o próprio tambor arrastar a sapata aumentando sua pressão sobre a superfície de atrito). Era o melhor que se podia ter nos freios a tambor. Era assim no Simca Chambord (chamado Twinplex) e nos Porsches 356 B.
Outra característica típica do DKW era o pedal do acelerador de dois estágios. A partir de determinado ponto entrava em ação uma segunda mola de retorno, endurecendo o pedal a partir dai. O motivo era reduzir consumo, pois motores de dois tempos são mais econômicos com baixa carga (pouca aceleração) com mais rotação, ao contrário dos 4-tempos. Nesse ponto os dois-tempos ser parecem com os Diesel.
Mas logo vi que era fácil retirar a segunda mola, ficando o pedal “normal”…
O som do motor era muito agradável, especialmente o ruído de aspiração. O produzido pelo escapamento até que era contido. O conhecido pipocar dos motores dois-tempos na desaceleração só incomodava se o escapamento fosse modificado para produzir ruído.
A lubrificação motor era por névoa de óleo, ou seja, óleo era adicionado à gasolina na proporção de 1: 40, ou 2,5%, na hora de reabastecer. Primeiro o óleo, depois gasolina. Complicava um simples encher o tanque, pois era preciso manter a proporção óleo-gasolina e nem sempre se conseguia os volumes exatos para isso, como no caso de o tanque (de 45 litros) não estar totalmente vazio.
Isso só seria resolvido anos mais tarde, em 1965, quando os motores passaram vir com uma bomba dosificadora de óleo e um reservatório do lubrificante de 3 litros junto do motor. O sistema se chamava Lubrimat. A partir daí o reabastecimento passou a ser como em todos os carros, só gasolina no tanque.
Outra peculiaridade do DKW era o sistema de arrefecimento a água não ter bomba d’água. A circulação entre motor e radiador era por sifão térmico, ou seja, água quente sobe e fria, desce.
Incrível e complicado para muitos era o sistema de ignição, individual por cilindro. Os sistemas de ignição dos carros de época consistiam de platinado, condensador e distribuidor. No DKW não havia distribuidor, mas cada cilindro tinha os outros itens. A regulagem do ponto de ignição era feita individualmente. Em compensação, um defeito de ignição que faria um carro normal parar apenas deixava o DKW funcionando em dois cilindros, com menos potência, mas dava para chegar a uma oficina.
Também típico da marca era a bomba de combustível sem acionamento mecânico como em todos os carros. Em vez disso, o diafragma funcionava por pressão e depressão a partir de um furo no bloco comunicando um lado da bomba com a parte inferior do terceiro cilindro (contagem a partir do volante do motor). A pressão/depressão era causada pelo movimento do pistão no seu curso normal.
A suspensão era simples e robusta. Na frente, braço triangular inferior e o superior constituído pelo feixe de molas transversal. O amortecedor era hidráulico inclinado para dentro. A traseira era por eixo rígido com um tensor longitudinal de cada lado e a o feixe de molas transversal por cima. Amortecedor também em montagem inclinada.Uma extremidade do feixe, a esquerda tinha um olhal que se fixava no eixo por parafuso e porca, mas no lado direito apenas apoiava e deslizava numa sapata de plástico especial chamado Vulkollan, que vivia se desfazendo e provocava barulho. A garantia de não desencaixar era o limite do curso de distensão do amortecedor.
O problema do eixo traseiro era não se poder subir em meio-fio de ré, os tensores fletiam e de deformavam, tinham de ser trocados. Mas eram bem baratos e a troca era feita em minutos.
A direção já era de pinhão e cremalheira e a relação era 19;1, boa para uma direção sem assistência.
Em 1960 a primeira passou a ser sincronizada, com curso de engate “normal” e facilitando para muitos engatar a primeira com o carro andando. Curiosamente, o par de engrenagens de primeira continuou com dentes retos, caso único que conheço, pois até as primeiras são de dentes helicoidais nos outros câmbios. Mas nem por isso era excessivamente ruidosa, denotando bom desenho e execução. O transeixo completo do DKW-Vemag era ZF, produzido na fábrica desta em São Caetano do Sul e fornecido diretamente para a linha de montagem da fábrica, que ficava na Vila Carioca, bairro do Ipiranga.
A construção do DKW-Vemag era separada, carroceria aparafusada ao chassi. O Fusca também era assim (e o Romi-Isetta também), mas os novos carros que foram chegando — FNM 2000 JK, Simca Chambord, Renaults Dauphine/Gordini/1093 já eram monobloco.
Deixo por último o motor. Era notável, tinha apenas sete peças móveis — três pistões, três bielas e virabrequim. Este tinha as bielas montadas, sendo inseparáveis. Em caso de desgaste do virabrequim, especialmente seus rolamentos, trocava-se a unidade completa. Me lembro que não era nada caro. A Vemag oferecia motores recondicionados à base de troca, de preço acessível. Por isso também o sucesso do DKW-Vemag no serviço de táxi, troca do motor por um recondicionado na fábrica levava três horas. E o resto do carro era a própria robustez, fora que podia levar dois passageiros no banco dianteiro inteiriço e três atrás.
Por ter três cilindros em ciclo dois tempos, tinha-se um tempo-motor a cada 120º de giro do virabrequim, tal como um motor de seis cilindros quatro-tempos. Viu agora por que o 3=6 nas campanhas publicitárias?
Recomendo ler a matéria do André Dantas sobre o motor do DKW.
BS