A primeira vez que cheguei bem perto de aviões de verdade foi aos sete anos de idade, no Salão Internacional Aeroespacial, em São José dos Campos (SP), em 1973.
Foi uma exposição como nunca mais houve no Brasil, e lamento não ser maior e lembrar de poucas coisas, além de não ter absolutamente nenhuma foto do memorável dia. Havia muita coisa absolutamente moderna, de vários países. O primeiro protótipo do A-300, o primeiro Airbus, estava presente, e ao seu lado, o cargueiro Lockheed C-5A Galaxy, o maior avião do mundo à época.
Inesquecível também foi a apresentação dos Thunderbirds, da Força Aérea Americana, com os McDonnell Douglas F-4 Phantom II, um estrondo sonoro e visual. A foto abaixo é uma das pouquíssimas que podem ser encontradas na internet sobre esse Salão.
Mesmo sem fotos, uma imagem marcada para sempre na mente foi a do Avro Vulcan decolando e passando sobre o público, quando isso ainda era permitido em shows aéreos. Um avião grande, com asas em forma de delta, a fuselagem só sendo distinta na seção dianteira da aeronave e que não podia ser confundido com nenhum outro devido a seu desenho inédito em algo daquele tamanho.
Eu nunca tinha ouvido falar sobre o Vulcan, nem tinha idéia do que seria esse avião, e com sete anos a visão de um monstro cuspidor de fogo como esse é algo de meter medo.
Tendo voado pela primeira vez como protótipo em 1952 e em serviço operacional desde 1956, em 1973 quando veio ao Brasil, já tinha 21 anos em operação. Saber que ainda hoje há um exemplar voando graças a um time de pessoas abnegadas, é quase que inacreditável.
O Vulcan foi retirado de serviço ativo em 1984, dois anos após o conflito das ilhas Falklands/Malvinas, onde teve uma missão que foi emblemática e representativa da vontade do governo britânico em manter esse arquipélago sob seu comando, não cedendo aos argentinos, que achavam causa ganha tomar posse de ilhas sem valor econômico e tão longe da casa dos donos.
O Vulcan foi a ferramenta que mostrou, através de algumas bombas colocadas sobre a pista do aeroporto de Port Stanley em 1º de maio de 1982, que os argentinos teriam que se desdobrar para trocar o nome das Falklands para Malvinas. Essa primeira missão e as outras quatro que se seguiram custaram uma pequena fortuna, e tiveram resultado mais moral do que material. Rendeu muita literatura contando as agruras de distâncias tão grandes sendo cobertas na urgência de um conflito, provavelmente a melhor das obras sendo o livro Vulcan 607, de Rowland White.
De toda a longa descrição, mais de 500 páginas, pontuada de histórias cômicas e dramáticas, o que mais impressiona é o esquema dos reabastecimentos aéreos, que requeriam 11 (!) aviões-tanque Victor para cada dois Vulcans. A distância de ida era de 6.300 km entre a ilha de Ascención, no meio do Atlântico, onde está localizada uma base britânica e as Falklands, e mais o mesmo para volta. Eram sete reabastecimentos na ida e um no retorno, consumindo um total aproximado de cinco milhões de litros de combustível, somando o Vulcan principal, o reserva e os Victors, que também tinham que ser reabastecidos em vôo.
O retorno era com menos 9,5 toneladas de carga de bombas, com números e detalhes estando todos no livro, absolutamente fabuloso. Sem exagero, o tipo de explicações que o autor coloca no texto nos faz imaginar com muita perfeição o que foram essas missões de oito horas para chegar ao alvo, e quando você vê um pouco de terra, precisa soltar suas bombas e fazer todo o caminho de volta, de novo vendo apenas mar por mais oito horas, e tudo isso com um conforto militar, e visibilidade muito restrita por janelas pequenas.
Um resumo dessa história pode ser apreciado no vídeo abaixo, apesar de não chegar nem perto dos detalhes da obra de White. É um vídeo longo, 47 minutos, mas vale a pena.
Mas essa é uma história à parte, inclusive com os boatos de que o Brasil ajudara os argentinos nos ataques aos navios britânicos, com as vetorações de radar necessárias, apesar de oficialmente neutro.
Também aconteceu a interceptação de um Vulcan armado por parte da nossa FAB, no dia 3 de junho de 1982, que foi escoltado ao aeroporto do Rio de Janeiro, após ter a sonda de reabastecimento danificada e não ter outra alternativa para continuar voando. Documentos a bordo e dois mísseis foram jogados no mar, apesar de um deles ter falhado e ficado no avião.
O Vulcan simplesmente alternou o Rio quando voltava das Falklands a caminho de Ascención, declarou emergência, foi interceptado por dois F-5 da FAB que decolaram de Base Aérea de Santa Cruz, no Rio, e com combustível próximo do fim, a tripulação aterrissou no Galeão, trazendo uma visão que o Brasil não conhecia desde aquele 1973. Faltariam apenas nove dias para o final do conflito, e o avião só retornou depois de algumas semanas parado até que fosse reparado — e a guerra terminado, antes disso não teria permissão para decolar.
Mas a origem do impressionante Vulcan foi em 1946, quando os britânicos decidiram que deveria ser desenvolvido um bombardeiro nuclear, que teria obrigatoriamente que ser a jato, depois do que se viu na guerra que acabara há um ano apenas.
De acordo com os requisitos do ministério da defesa, um desenho convencional não atenderia, no entender da engenharia da A. V. Roe. (Avro). Foi assim desenvolvido o conceito de asa em delta, seguindo os escritos do Dr. Alexander Lippisch, um pesquisador aerodinâmico que se especializou em estudos e projetos de aeronaves com asas em forma de delta, ou triângulo, material obtido após a derrota alemã. A grande vantagem é uma área de asa grande para as dimensões totais do avião. O Vulcan tem 32,28 m de comprimento, 33,83 m de envergadura e uma altura de 8,28 m na versão B.2, a mais nova delas. Dentro desse espaço ocupado, tem peso máximo de decolagem de 93 toneladas, das quais cerca de 35 toneladas são de combustível distribuídos em 14 tanques, sendo dez nas asas e quatro na fuselagem.
Eram necessários cinco tripulantes para efetuar uma missão no Vulcan. Os dois pilotos, um oficial de eletrônica e dois navegadores, um especializado em radar e outro nas cartas de navegação.
Na primeira versão, a B.1, havia um gigantesco problema de projeto, que são os comandos aerodinâmicos de vôo hidráulicos e cuja bomba de óleo era movida por motor elétrico, alimentado por alternadores. Um problema qualquer com os alternadores poderia paralisar o motor elétrico, acionava baterias para que o avião pudesse ser manobrado, mas essas duravam pouco e ocorreram acidentes, com dois aviões perdidos por esse motivo.
Na versão B.2 esse conceito inexplicável foi corrigido, com as bombas hidráulicas acionadas diretamente pelos motores, como de praxe nos jatos. As asas também sofreram melhorias para aumentar a estabilidade, com os bordos de ataque deixando de ser retos.
Mas são os motores, além do desenho fantástico do Vulcan, que são as estrelas dessa máquina. A velocidade ascensional desse avião quando ele deixa o solo é marcante, subindo mais rápido do que o tamanho leva a supor que seja normal. Ainda mais quando se está bem consciente da idade da máquina.
Os quatro Rolls-Royce Olympus são turbojatos de conceito antigo hoje, mas no estado da arte quando o Vulcan começou a ser projetado, em 1947. A versão mais recente desse motor tinha 89 kN de empuxo (20.000 lbf), empurrando o avião para cima de forma quase assustadora tanto tempo atrás, fazendo com que ele se comportasse como um avião pequeno, como um caça, por exemplo, na fase de corrida e decolagem.
A velocidade de cruzeiro era de pouco mais de 900 km/h, e a máxima 1030 km/h.
As missões com armas nucleares, o principal motivo pelo qual o Vulcan foi concebido, se tornaram uma possibilidade do passado após o fim da Guerra Fria (embora na época tivesse corrido a terrível notícia de um possível ataque nuclear a Comodoro Rivadavia, onde ficava importante base aérea argentina, após o afundamento do cruzador HMS Sheffield por um foguete Exocet).
Desde que deixou o serviço ativo, um grupo de pessoas se dedica a manter um exemplar voando, o XH558, que foi batizado de The Spirit of Great Britain. As motivações foram muitas, uma delas sendo o entusiasmo gerado quando se resolveu atacar as ilhas, e se modificou alguns aviões em menos de um mês, de forma a que eles tivessem novamente os componentes para reabastecimento em vôo, que já haviam sido desativados há alguns anos.
Esse exemplar entrou em serviço na RAF em 1º de julho de 1960 na base de Waddington. Foi o último a deixar de ser usado pela Royal Air Force. Um abaixo-assinado com mais de 200 mil assinaturas chegou a tentar que o avião permanecesse voando sob responsabilidade da RAF, mas não sensibilizou o governo.
Quase que imediatamente, o Lightning Preservation Group, uma organização que já possuía vários aviões militares, declarou a intenção de compra do 558. Tony Hulls, o presidente desse grupo, colocou David Walton como o responsável pelo trabalho, que foi enorme já antes mesmo de começarem a mexer no avião.
Como não mais seria operado pela Royal Air Force, mas sim por civis, a CAA (Civil Aviation Authority) deveria obrigatoriamente aprovar todos os planos de manutenções, que deveriam atender a normas e condutas técnicas válidas na época. Como o avião era antigo, um sem-número de desvios nesses procedimentos tiveram que ser explicados por escrito, e isso foi feito por Robert Pleming. A palavra final demorou meses e só foi dada pelo ministro da Defesa britânico.
Tiveram que caprichar na proposta de compra, já que era clara a intenção de fazer o avião voar de novo. Havia concorrentes para a compra, alguns deles querendo o Vulcan para transformar em restaurante, fim triste para muitos aviões.
A posse do avião ocorreu em 18 de março de 1993, junto com mais oito motores completos e muito material de manutenção, bem como manuais. O avião em si custou meras 25 mil libras, mas os custos não parariam perto disso, claro.
O avião ganhou matrícula civil sob medida, G-VLCN ( Golf-Victor-Lima-Charlie-November), que cobre o nome VuLCaN.
Restrições de uso foram impostas, e o XH558 não pode voar a mais de 250 nós (463 km/h) sozinho ou 300 nós (555 km/h) quando acompanhado dos Red Arrows, não pode voar acima de 17.500 pés (5.334 m), e apenas em condições VFR (Visual Flight Rules – regras de vôo visual).
Para manutenção dos motores, há uma instrumentação que grava todas as alterações de aceleração, as temperaturas de gases de exaustão as rotações, para que de posse desses dados a Rolls-Royce faça os planos de manutenção. O normal é marcar apenas os números de horas e daí parar para revisões. Isso demonstra cuidado adequado a uma peça tão importante da história.
Também houve a exigência da CAA que uma empresa de engenharia ficasse responsável pelas manutenções, mesmo que feitas por membros do grupo de preservação. A Marshalls, de Cambridge, foi a escolhida para isso.
Um plano completo do que precisava ser feito no avião e quais empresas e órgãos deveriam ajudar foi feito sob o comando de Pleming. Isso foi feito em 1996.
De 1999 a 2005 o trabalho de desmontagem verificações e reparos foi feito quase totalmente, e nesse tempo houve doação de 500 mil libras de Sir Jack Hayward, mais 500 mil libras de Walton.
Em 2004 o Heritage Lottery Fund fez um acordo para doar 2,73 milhões de libras, com base no intuito educacional, pois toda a restauração de algo tão complexo mostraria a qualidade do ensino britânico e da capacidade do cidadão em aceitar qualquer desafio quando são dados os incentivos corretos. Assim, foi uma ajuda governamental ainda que não da área militar, mas que é plenamente lógica.
Em 2006 foi aberta a possibilidade de aceitar doações públicas, e cerca de 700 mil libras foram arrecadadas na seqüência.
Isso tudo só é possível porque a empresa The Vulcan Operating Company (TVOC) utiliza-se de um fundo batizado de Vulcan To The Sky, que é registrado como caridade pelas leis britânicas, que devem ser bem diferentes das nossas.
Como não poderia deixar de ser, a ajuda das empresas que têm sistemas e peças no Vulcan tem uma grande participação técnica na manutenção e antes mesmo, na restauração do belo avião.
A British Aerospace, que há muitas décadas havia incorporado a Avro, cedeu cópias de todos os desenhos de projeto do avião para a TVOC, o que facilitou enormemente a restauração.
O trabalho de fazer o avião voar de novo foi um desafio maravilhoso e imagine-se as investigações para se obter os componentes necessários e fora de produção comercial, como várias chapas de alumínio de espessuras incomuns, porcas, parafusos e outros elementos de fixação, que foram removidos de aviões em exposição estática. Uma prática comum desde que o segundo avião de um mesmo modelo foi construído.
Houve também peças que tiveram que ser reprojetadas, quando não havia para reposição. Nesses casos, testes tiveram que ser feitos antes que fosse aprovada a montagem no XH558.
Os sistemas hidráulicos de comandos de vôo, trem de pouso e freios, os elétricos e eletrônicos e os pneumáticos, como o de pressurização, foram todos desmontados e refeitos, usando muitos componentes modernos e mais confiáveis.
Uma boa economia de tempo foi no sistema de armamento, que pesa no total cerca de 3.100 kg, que foi removido. Para evitar qualquer tipo de alteração no centro de gravidade do avião, massas de compensação foram adicionadas.
Na parte de instrumentos, a Smiths Aerospace, a fornecedora quando o Vulcan foi projetado, substituiu tudo que já era desatualizado e sem chances de ser recuperado, por equipamentos modernos.
Alguns números interessantes mostram mais um pouco o desafio e o tamanho da realização desse grupo notável.
Cerca de 100 mil peças compõem o Vulcan, com mais 430 mil elementos de fixação, como porcas, parafusos e rebites. São quase 2,9 km de tubos para passagem de ar, óleo, água e combustível, junto com 22,5 km de cabos elétricos, pouco perto de aviões atuais.
O avião já é um espetáculo mesmo parado. Quando se move então, arrepia a nuca de qualquer ser vivo com um mínimo de sensibilidade para máquinas. Uma particularidade do Vulcan é o ruído de aspiração dos motores, causado pela posição do bocal dentro de um alojamento nas asas. Os ingleses chamam o ruído de howl, (uivo) e ele ocorre um pouco acima dos 90% da potência máxima, sendo ouvido nas corridas de decolagem e em algumas manobras de demonstração.
Em máxima aceleração, 25 toneladas de ar são aspiradas em um minuto. Veja e ouça abaixo, é muito bacana.
O Vulcan to the Sky tem farto material em seu site, explicando o que falta para manter o avião voando em cada ano, com antecipação, e a programação prevista de apresentações. Qualquer compra dos muitos itens disponíveis é revertida em fundos para a manutenção.
Mesmo quando não está voando, o hangar onde o avião é mantido pode ser visitado e alugado para eventos. Até mesmo casamentos ocorrem com a máquina como pano de fundo!
Em resumo, um trabalho impressionante de dedicação, patriotismo e entusiasmo, características cada vez mais importantes em meio aos complicados tempos em que vivemos.
O Vulcan é algo lindo demais.
Para mais informações sobre o grande trabalho, veja o site: http://www.vulcantothesky.org/
JJ