No primeiro fim de semana de maio deste ano realizou-se a 6 Horas de Spa-Francorchamps, na Bélgica, corrida do Campeonato Mundial de Resistência ou World Endurance Championship (WEC). “Endurance” faz parte tanto do idioma francês quanto do inglês e tem o mesmo significado nas duas línguas, que é ter resistência, durar, suportar maus tratos. Esta 6 Horas foi a última corrida antes da tão esperada 24 Horas de Le Mans, nos dias 13 e 14 de junho. Spa é a prova que mais se assemelha à de Le Mans, por ser uma pista bem rápida e técnica, com longas retas e curvas velozes.
As equipes aproveitam a corrida de Spa para testar as configurações similares às dos carros que devem correr em Le Mans, uma vez que o regulamento do WEC permite que haja alguma diferença entre os carros a cada corrida. Para o circuito de La Sarthe — bairro de Le Mans, um circuito não permanente, boa parte dele é aberta ao trânsito normal e que desde 1923 é palco da corrida de 24 horas —, as equipes usam um pacote aerodinâmico especial, que chamam de low downforce (baixa carga vertical) ou low drag (baixo arrasto) para melhor aproveitar as longas retas Mulsanne.
O compromisso entre downforce e arrasto é diretamente proporcional, pois quando se aumenta a geração de força vertical, que normalmente é feito com o uso de asas com maior ângulo de incidência ou com mais elementos físicos, por conseqüência aumenta o arrasto aerodinâmico. Mais asas, mais downforce, mais arrasto. Uma das poucas formas de gerar downforce com pouco arrasto é o efeito-asa, com o uso dos canais em forma de venturi sob o carro, mas são restritos hoje em dia por questões de segurança.
Na 6 Horas de Spa alguns carros correram com a configuração semelhante a que pretendem usar em Le Mans. A Audi divulgou fotos de estúdio do R18 em posições praticamente iguais às fotos mostradas do carro do começo do ano, ou seja, na configuração “original”. Com isso, podemos comparar a carroceria do carro usado em Spa com o carro usado em Silverstone, a corrida que antecedeu Spa. Silverstone é uma pista mais lenta, com menos velocidade de reta, onde um carro com boa geração de downforce pode se dar melhor, pois o prejuízo em velocidade máxima não é tão sensível como em Spa, por exemplo, com grandes retas e curvas bem rápidas.
Basicamente, a Audi criou uma carroceria nova para as pistas de alta velocidade. A vista lateral do carro mostra que a carroceria é mais linear, com menos mudanças abruptas das curvas, como, por exemplo, nas caixas de roda traseiras em relação ao corpo lateral, mesmo sendo mais altas. As saídas de ar atrás das rodas dianteiras são diferentes, maiores, para deixar mais ar fluir por dentro do carro, captado pela frente, canalizada entre as rodas e o bico central, e ter por onde sair nas laterais.
Ainda vendo o carro de lado, é possível ver que o pára-lama dianteiro na parte frontal, onde ficam os faróis, é completamente novo. A forma é mais vertical, curiosamente ao contrário do que se espera em um carro para alta velocidade. Vemos nos carros mais antigos a preocupação em fazer a frente dos carros a mais afilada possível, mas hoje em dia este conceito já não é mais válido. A “cara chata” mostrou-se mais eficiente.
Este novo pára-lama fez com que a Audi mudasse até os faróis para se acomodarem ao novo formato da estrutura, e olha que hoje em dia um conjunto de faróis destes carros é algo realmente complexo.
Os retrovisores foram embutidos na carroceria, não são mais elementos independentes fixos no carro por suportes, tamanha é a preocupação em eliminar qualquer coisa que aumente o arrasto. A lateral do carro está mais alta na seção que antecede a roda traseira, na parte onde há um ressalto que quase se iguala com a altura do pára-lama traseiro. Superfícies planas e longas auxiliam o fluxo de ar a não gerar muito arrasto.
Vendo o carro de frente, a mudança é ainda mais gritante. Os dutos de admissão de ar são completamente diferentes entre as duas versões. A versão low drag tem entradas mais horizontais, aparentemente em maior quantidade também, que lembram um pouco a frente do R10, com os braços de suspensão cobertos por carenagens em forma aerodinâmica. Em função das maiores velocidades, o ar tem que ser melhor redistribuído por dentro do carro, inclusive arrefecendo de forma diferente os diversos sistemas do carro. Até os faróis com a tecnologia de iluminação por laser, junto com os LEDs, são arrefecidos por pequenas aberturas nos pára-lamas .
A necessidade de ventilação para os radiadores em Le Mans é diferente, pois com maiores velocidades do carro, o fluxo de ar é maior, e a eficiência do sistema é diferente. Radiadores menores podem ser usados ou então o fluxo por eles pode ser diferente e com isso, ganha-se tendo menos arrasto em conseqüência.
A seção final do carro está aparentemente mais fina, com maior distância entre as abas laterais da asa traseira para a carroceria. O fluxo no final do carro é um dos mais importantes, pois é o que atua na asa traseira e no extrator, os principais elementos da aerodinâmica que afetam mais significativamente o comportamento do carro com a geração de downforce. O segredo dos carros mais rápidos é se o downforce criado resulta em muito ou em pouco arrasto.
Esta estratégia, se bem explorada, rende bons frutos. pois o compromisso entre velocidade de reta e velocidade de curva é decisivo em uma corrida longa como Le Mans. Não apenas nas provas de resistência de hoje vemos esta diferenciação. Há muitos anos este recurso é explorado em diversas categorias, e geraram carros muito eficientes e alguns no mínimo curiosos.
Especialmente para Le Mans, quando a reta Mulsanne tinha 6 km de extensão, a velocidade máxima era uma prioridade. Temos alguns bons exemplos de carros que foram notoriamente adaptados para esta condição de corrida, onde reduzir o arrasto aerodinâmico era a prioridade número um. As curvas de alta velocidade, em contrapartida, eram mais emocionantes para os pilotos, pois com menos downforce e muita potência, controlar o carro não era para qualquer um.
Nos anos 1970, a Porsche reformulou totalmente traseira do seu lendário 917 para as pistas de alta velocidade, passando da configuração 917 K (K vem de Kurzheck, em alemão, cauda curta) para o 917 L (Langheck, em alemão cauda longa). A velocidade máxima do 917 L foi de 386 km/h na reta Mulsanne em 1971, mas em condições de corrida, a máxima era em torno de 365 km/h. A versão 917 L também é conhecida como 917 LH. Em época similar, a Ferrari também tinha a diferenciação de carroceria dependendo do circuito, como, por exemplo, no modelo 512 S Coda Tronca (italiano para cauda curta) e Coda Lunga (cauda longa), dependendo do tipo de circuito. Os Coda Lunga chegavam a 355 km/h, ainda assim mais lentos que os Porsches.
O compromisso com velocidade era tão importante que os 917 eram instáveis e pouco seguros, pois o baixo arrasto para elevar a velocidade máxima não permitia que o carro fosse manso para qualquer piloto domar. Correções de direção na reta e nas curvas de maior velocidade eram sempre necessárias. Tudo em prol da velocidade máxima.
Com a evolução constante da aerodinâmica nas competições, sempre que os regulamentos permitiam diferenciação entre configurações de carroceria de uma corrida para outra, as equipes faziam bom uso do recurso. Os carros do Grupo C do campeonato mundial de esporte protótipo dos anos 1980 tinham boa diferença entre os carros de pistas mais lentas e os carros para pistas velozes, com a referência sempre em Le Mans e também em Daytona.
Com estas configurações de baixo arrasto aerodinâmico foi possível vencer a barreira dos 400 km/h em Le Mans. A equipe Peugeot chegou perto dos 410 km/h com o modelo 905 de motor V-6 turbo. A carroceria do carro era bem lisa, com poucas formas protuberantes e o mínimo de entradas de ar para minimizar o arrasto. Para pistas que solicitavam mais downforce do que velocidade máxima, até mesmo uma asa dianteira era montada no carro para melhorar a velocidade de contorno de curva, com a penalidade da redução da velocidade máxima de reta.
Muitos carros desta época eram otimizados para Le Mans, como os carros da Jaguar, que recebiam até cobertura lateral nas rodas traseiras e um aerofólio traseiro mais baixo e com uma construção diferenciada, com menos elementos e ângulo de incidência menor. Nesta condição, o Jaguar chegou a 390 km/h em 1989. Os Sauber-Mercedes chegaram na marca dos 400 km/h exatos no mesmo ano.
Depois da colocação das duas chicanes na Mulsanne em 1990, dividindo-a aproximadamente em duas, as velocidades máximas diminuíram para a casa dos 350-360 km/h. Nos últimos anos da corrida, a velocidade máxima oscilava de 335 a 345 km/h, porém os carros estavam cada vez mais modernos e os tempos de volta não eram prejudicados pela menor velocidade máxima.
Outro caso que é bem evidente ao olhos dos espectadores é na Fórmula Indy. Existe a diferenciação dos carros de circuito misto, circuito oval curto e médio, e os ovais longos (superspeedways, como Michigan e Indianápolis). Nos circuitos mistos e ovais curtos, os carros usam asas normais, com vários elementos, enquanto que nos superspeedways, as asas são bem menores, parecendo apenas uma régua, para aumentar a velocidade máxima.
Nos anos 1990, os Indy era extremamente velozes nestes ovais. O recorde de velocidade média é do brasileiro Gil de Ferran, com 388 km/h de média em uma volta no circuito da Califórnia. O recorde de velocidade máxima é do canadense Paul Tracy, com 413 km/h na pista de Michigan no ano de 1996.
Na 500 Milhas deste ano já está gerando polêmica justamente por causa do pacote aerodinâmico que alguns carros estão usando para tentar ganhar o máximo de velocidade, porém quando perdem o controle, a chance do carro sair voando é muito grande. Aconteceu com alguns pilotos, inclusive com o Helinho Castroneves.
Em 2016 acontecerá a centésima edição da 500 Milhas de Indianápolis e os organizadores estão com a meta de bater o recorde de velocidade média de volta, hoje do holandês Arie Luyendyk com 385 km/h nos treinos livres (382 km/h na classificação) e 379,9 km/h na corrida, com o piloto americano Eddie Cheever. Todas estas marcas foram registradas em 1996, ano ainda da era dos motores turbo.
Fazer um carro de corrida veloz é fácil, o difícil é acertar o compromisso entre estabilidade e velocidade de curva. Desde os tempos dos carros de Le Mans dos anos 1960, o compromisso já vem sendo explorado e aí depende do que cada equipe deseja, se é focar mais na velocidade máxima para aproveitar as retas ou na estabilidade e velocidade de curva para o resto do circuito.
Para a 24 Horas de Le Mans deste ano, visto o que as duas primeiras corridas do ano indicaram, a Porsche deve ter os carros mais velozes de reta, enquanto que os Audi são os mais velozes de curva. Pelas declarações da equipe, ainda não usaram o pacote aerodinâmico definitivo de Le Mans, o que só vão mostrar publicamente nos primeiros testes oficiais da corrida. A Audi com os R18 também deve ter surpresas para a corrida, pois sempre há o que evoluir de uma corrida para a outra, ou seja, de Spa para Le Mans.
A corrida de Spa foi o laboratório de testes dos elementos principais, mas os ajustes finos ainda devem estar guardados em segredo. Pequenos elementos e geometrias da carroceria são o segredo de alguns décimos de segundo, mas que ao fim da conta, fazem a diferença entre um bom carro e um carro vencedor. O desempenho do Nissan GT-R LMP1 também é uma incógnita. Os projetistas afirmam que a aerodinâmica básica do carro foi feita pensando em Le Mans, então espera-se que seja um carro veloz. As grandes superfícies planas e com poucas variações de geometria ajudam a dar força nesta teoria.
Todas estas variações, versões e modelos de carros só mostram o quanto Le Mans é importante, pois em nenhum outro lugar vê-se tamanho empenho em criar um carro que seja o melhor possível para vencer uma única corrida. Ainda vemos o quanto as equipes evoluem de uma corrida para outra, e como sempre há uma carta escondida na manga dos melhores projetistas.
MB