E o que Ferdinand Porsche teria a ver com isto?
A Austrália apresenta características geográficas próprias, como o seu Outback, que é como sua região interna desértica é conhecida. Apesar de a agricultura ser praticamente inexistente, a região possui uma imensa riqueza através das enormes reservas de minérios de ferro, alumínio, urânio e, em menor extensão, de ouro, chumbo, níquel e zinco. Com isto surgiram por lá os Road Trains, gigantescos comboios rodoviários especializados no transporte, em primeira linha, de minerais das minas para os portos; eles também transportam combustíveis, gado etc. A história moderna destes gigantes começou com o transporte de gado.
A criação dos Road Trains modernos é atribuída ao australiano Kurt Johansson, que ousou construir um veículo capaz de transportar cinco vezes mais gado do que era possível até aquele momento.
Para ilustrar a utilização de Road Trains na Austrália selecionamos um vídeo que pode ser acessado AQUI.
Quando estes monstros atingem sua velocidade de regime, próximo a 110 km/h, é bom tomar muito cuidado, tanto que o site “Outback Australia Travel Guide” no capítulo que trata dos Road Trains apresenta uma série de conselhos para quem pretende dividir as estradas com estes gigantes. Ai vão algumas destas dicas:
Nunca, jamais corte a frente de um Road Train. Não nos semáforos, nem nas rotatórias, nem em saídas de pista, muito menos nas estradas, ou seja, em parte alguma. Eles precisam de muito, mas de muito espaço mesmo, para desacelerar e parar, e eles precisam de todo o espaço disponível, se eles precisarem virar.
Se um comboio rodoviário está prestes a ultrapassá-lo não reduza a velocidade até que o Road Train esteja totalmente na outra pista!
Se você ultrapassar um comboio rodoviário, verifique se você tem muita estrada livre pela frente. Não subestime o tempo que leva para ultrapassar um Road Train de 50 metros, se você é apenas um pouco mais rápido… Só volte para a sua pista uma vez que você consiga ver ambos os faróis do “monstro” em seu espelho, e não diminua a velocidade nesse momento!
Em estradas não asfaltadas diminua a velocidade quando você vir um Road Train se aproximando. A poeira que ele levanta vai obscurecer a sua visão. Se você estiver dirigindo atrás de um Road Train mantenha uma distância segura e acenda os faróis para que o motorista saiba que você está lá naquela nuvem de poeira …. Ou ainda melhor, saia da estrada e faça uma pausa para um café. Não é divertido dirigir atrás de um Road Train numa estrada não asfaltada…
Na Austrália, em estradas públicas, os Road Trains costumam ter três (permitidos) até quatro (ao que tudo indica tolerados) reboques, mas em estradas particulares não há limitação. Curiosamente no Brasil, em especial para o transporte de cana de açúcar, já foram flagrados comboios de até 10 reboques (130 m) trafegando em estrada pública de duas pistas no Mato Grosso com uma simples placa dizendo: “VEÍCULO LONGO”, confira no VÍDEO.
Ou seja, a técnica usada atualmente faz com que estes veículos tenham um comportamento muito perigoso. Por sorte, em boa parte das estradas australianas eles trafegam sozinhos, mas há soluções inicialmente desenvolvidas há muitos anos atrás que, se aplicadas hoje em dia com o uso de toda a tecnologia disponível, certamente iriam resultar em veículos seguros, ecologicamente muito melhores e com um grau de controle infinitamente maior do que o disponível nos Road Trains convencionais.
Vamos aos fatos do passado. Ferdinand Porsche, que inicialmente teve um pendor mais para o lado da eletricidade, começou a trabalhar em veículos elétricos no fim do século XIX, tendo desenvolvido o motor elétrico colocado no cubo das rodas. Coisa que “inventores de coisas feitas” afirmam ter inventado recentemente.
O acionamento elétrico diretamente nas rodas dos veículos era uma solução que evitava caixas de câmbio, cardãs e diferenciais, deixando que o comando elétrico assumisse a tração do veículo.
Na Feira Mundial de Paris, em 1900, foi exposto o Porsche-Lohner-Chaise um elétrico “puro-sangue” que devido à precariedade das baterias da época logo cedeu lugar às versões híbridas iniciadas pelo Semper Vivus; este carro tinha dois pequenos grupos gerador-elétrico — motor a combustão (em alemão Ottoelektrische Antrieb) que inicialmente alimentavam os motores elétricos nos cubos das rodas, sendo que o excedente de energia ia carregando as baterias.
Os grupos geradores, de 1,8 kW cada (gerando em 90 V e pico de 20 A), eram acionados por motores a gasolina De Dion de 2,6 kW (3,5 hp/3,54 cv) arrefecidos a água. Os grupos geradores funcionavam de modo independente e invertendo a polaridade dos geradores eles funcionavam como motor de arranque dos motores a gasolina.
Usando a tecnologia existente, Porsche começou o desenvolvimento de veículos de transporte pesado com acionamento elétrico, motores em cubos de rodas e energia por baterias, como foi o caso de um carro para o Corpo de Bombeiros de Londres de 1910; as baterias ficavam alojadas no compartimento que seria normalmente ocupado pelo motor convencional.
Ao mesmo tempo foi desenvolvido o conceito híbrido Mixte baseado no Semper Vivus tanto para carros como para veículos de transporte. Este mesmo conceito veio a ser aplicado depois em transporte ferroviário com as locomotivas diesel-elétricas, com uma operação bem mais econômica, pois prescindiam da via aérea permanente de alimentação elétrica, princípio que é largamente usado hoje em dia. Na fábrica da Lohner em Viena foram montados ônibus com este tipo de acionamento.
Este ônibus de 1907, tinha um motor a gasolina de 4 cilindros e 45 hp/45,6 cv que acionava um dínamo que gerava energia elétrica para os motores elétricos nas rodas traseiras.
As soluções que Porsche tinha apresentado com sucesso e comprovação prática, como os acionamentos diretos no cubo das rodas, inclusive para veículos 4×4, chamaram a atenção também de estrategistas do Exército Austro-Húngaro. Eles viam nesta tecnologia uma possibilidade de transportar pesados canhões, morteiros e abastecer as tropas. Com vistas ao equipamento necessário ao exército para a Primeira Guerra Mundial, Porsche recebeu a encomenda de projetar e fabricar trens rodoviários que pudessem trafegar nas então precárias estradas daquela região, não ultrapassando a carga por eixo de 3,6 toneladas e capazes de vencer subidas com gradientes de 23% (valor ultrapassado na versão definitiva). O nome inicial do projeto foi Landwehr-Train, derivado de Landwehr, nome de uma das divisões estruturais do Exército do Império Austro-Húngaro.
A primeira versão do projeto foi o A-Zug (Trem-A), de 1909, composta de um carro de condução, equipado com um grupo gerador com motor a explosão de 74 kW (99,6 hp/100 cv) acionando um gerador elétrico de 70 kW, e dez reboques de um eixo. Os reboques eram conectados aos pares, um pesando 1,7 t e outro com 2,3 t; a capacidade de carga útil final do conjunto de 10 reboques era de 20 t. O reboque mais leve era equipado com motores elétricos (para reduzir o peso final os motores de cubos, que seriam muito pesados para esta aplicação, foram substituídos por uma combinação de motor elétrico e engrenagem de acionamento). As rodas traseiras do carro de condução também tinham motores elétricos. A corrente elétrica passava de um reboque a outro através de cabos de conexão rápida.
A segunda versão, o B-Zug, ficou pronta em 1911 e podia ter até dez reboques, de dois eixos, com 4 t até 5 t de carga útil e tinha um carro de condução com um motor Austro-Daimler-Porsche de 110 kW (148 hp/149,5 cv) de seis cilindros e um gerador de 93 kW, uma pequena usina móvel. Tinha uma carga útil total de até 50 t e apresentava várias inovações.
Um sistema de adaptadores permitia que o trem rodoviário andasse também sobre trilhos de várias bitolas. O comboio tinha rodas duplas, internas tipo ferroviário e externas rodas de borracha maciça para uso rodoviário. Para mudar de operação em estradas para trilhos, as rodas de borracha maciça do veículo deviam ser removidas. Para este fim havia um dispositivo em cunha (que pode ser visto na foto) que era adaptado sobre os trilhos e que elevava os eixos permitindo a retirada das rodas de borracha.
O carro de condução não era uma “locomotiva” no sentido tradicional do termo, era um veículo de condução com uma usina de energia elétrica incorporada e não “puxava” os trailers, que eram “auto-acionados” eletricamente; o próprio carro de condução também era acionado eletricamente. Os múltiplos eixos acionados permitiram matar dois coelhos com uma cajadada só. Por um lado, a operação com baixa descarga de peso por eixo sobre o leito das estradas e, por outro lado, uma capacidade de vencer gradientes jamais alcançados seja em estradas ou trilhos. Em estradas o comboio rodoviário podia ser composto por até cinco trailers e sobre trilhos esta quantidade subia para dez.
Cada trailer tinha o seu próprio sistema de direção que permitia que as rodas de todos eles “passassem sobre o mesmo sulco” propiciando uma excelente dirigibilidade do comboio rodoviário. Também existia um sistema que impedia que os trailers entrassem em pêndulo ao trafegar numa estrada.
Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, em julho de 1914, dez B-Zug estavam prontos à disposição do exército para o transporte de diferentes cargas excepcionais, como componentes de artilharia, munições e suprimentos.
Nesta foto é possível ver como as rodas dos trailers se acomodavam automaticamente ao traçado sinuoso das ruas em função do rumo que o carro anterior estava seguindo. Detalhe para os cabos elétricos que iam de um carro a outro.
Em 1914 o C-Zug estava pronto; fabricado com a colaboração da Škoda com a Austro-Daimler, o motor a explosão do carro condutor tinha 110 kW, semelhante aos usados no B-Zug. Ele foi uma aposta dos estrategistas militares no sentido de se obter um transporte estrategicamente versátil. O carro condutor estava acoplado a um reboque de quatro eixos acionados com uma carga útil de 27 t desenvolvido para o transporte de componentes de pesadas peças de artilharia. Além disto, os C-Zug também transportavam tanques de combustível tipo ferroviário para o abastecimento dos equipamentos moto mecanizados no campo de ação.
O transporte com os C-Zug também podia ser feito por rodovias ou ferrovias, bastando fazer as adaptações necessárias.
Cinco destes C-Zug podiam transportar um gigantesco canhão Škoda de 300 mm de diâmetro interno pesando 82 t desmontado, permitindo alcançar lugares onde não havia ferrovias. O C-Zug apresentava um desempenho impressionante para a época, atingindo 20 km/h totalmente carregado, apresentando a capacidade de galgar gradientes de até 25% nas íngremes estradas alpinas.
Renomeado como Gigant (gigante) o C-Zug permaneceu no catálogo de vendas as Austro-Daimler depois da guerra.
Voltando para o presente, e lembrando-se os Road Trains australianos, que bom seria se já existissem versões baseadas nos princípios estabelecidos por Porsche há um século, devidamente traduzidos e adaptados à tecnologia disponível nos dias de hoje. Mormente quando a tecnologia automobilística de carros híbridos está tão avançada. Digo isto com certo conhecimento de causa, pois, em minha recente visita à Autostadt em Wolfsburg em junho, tive a oportunidade de testar um Golf GTE — um veículo incrível.
Com toda a tecnologia disponível hoje, um Road Train australiano deixaria de ser o perigo que é, poderia arrancar e parar dentro de excelentes margens de segurança e, caso a conformação dos reboques permitisse, poderia ter extensas áreas cobertas com placas fotoelétricas que iriam colhendo energia pelo caminho, e sol é o que não falta na Austrália. Não que isto permitisse aos pesados comboios trafegar somente com esta fonte de energia, mas seguramente isto representaria uma boa economia.
Mas nem tudo está perdido…
Uma aplicação recente dos conceitos de veículos híbridos de transporte teve um protótipo apresentado nas Filipinas em 22 de agosto de 2014. Trata-se de um moderno Road Train de passageiros híbrido, com ar-condicionado. Um veículo que lembra um BRT com esteróides, que tem cinco carros acoplados num comprimento total de 40 metros, e uma capacidade total prevista de 240 passageiros; para rodar em ruas com 3 pistas a uma velocidade máxima de 50 km/h.
No último carro deste Road Train encontra-se um grupo gerador diesel-elétrico de 300 kVA que carrega as baterias, partindo automaticamente quando o nível das baterias atinge um nível mínimo determinado. As baterias suprem os motores dos carros. A frenagem regenerativa ajuda a carregar as baterias também. O nível de poluição resultante da operação deste veículo é menor do que os acionados por uma tecnologia convencional.
É difícil se dizer que o espírito das idéias de Porsche iluminou o projeto filipino, mas é certo que estas idéias estão aí para quem delas quiser fizer uso…
De uma coisa eu estou certo: olhar para o passado nem sempre quer dizer um retrocesso, muitas vezes existem idéias que poderiam e deveriam ser usadas para um futuro melhor…
AGr
Fontes de pesquisa:
Livro Ferdinand Porsche – Pionier des Hybridantriebs – Porsche Museum
Livro: Ein Jahrhundert Automobiltechnik: Nutzfahrzeuge por Olaf v. Fersen
Palestra de Alexander Gromow: O Fusca na Alemanha
Site: Northern Territory Government – Department of Transport (Australia)
Site: insMuseum – SÜDBAHN Museum Mürzzuschlag, Steiermark
Site: Main Roads Western Austrália
Site: Outback Travel Guide – Australia
Site: Kurt Johannsen – Mechanic and InventorKurt Johannsen a son of the Outback
Site: GMA NEWS ONLINE – Your News Authority – DOST launches hybrid electric road train to help ease metro traffic _ SciTech
Site: Motioncars AN Inquirer – Motoring Site – Can this Philippine-made hybrid bus-train solve traffic gridlock?
Site: Autoevolution – Road Trains, Multi-Wheeled Freaks
Site: Wikipedia – Road Train
Forum: Unterirdisches, Geschichte und Technik – Militärische-, Rüstungs- und Zeitgeschichtethemen die Österreich betreffen 1867 – 1938
ETC.
Fotos: Arquivo Histórico da Porsche, livros e Internet
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