Este era o apelido dado por Ettore Bugatti aos Bentleys de corrida com os quais seus refinados e leves Bugattis disputavam as corridas na Europa nos anos 1920 e 1930.
Sendo uma das mais tradicionais empresas automobilísticas do mundo, a Bentley traça suas raízes do começo do século 20. Hoje parte do gigante grupo VW, a empresa foi propriedade de seu fundador por pouco tempo, mas provavelmente estes foram os melhores anos de sua história.
Walter Owen Bentley, ou apenas W.O. como era conhecido, nasceu em 1888 na Inglaterra e desde cedo tinha interesse em mecânica. Ao frequentar um curso de aprendiz em uma empresa de locomotivas e equipamentos ferroviários até 1910, W.O. conheceu mais a fundo o mundo da mecânica.
Um curso de engenharia feito em seguida trouxe mais conhecimento teórico ao jovem Bentley, que junto com sua vontade de aprender e desenvolver novas máquinas iria garantir seu ingresso na indústria. Em 1912, W.O. e seu irmão Horance Millner fundaram a Bentley & Bentley, empresa que revendia modelos de automóveis franceses da marca DFP.
O desempenho dos DFP irritava W.O. e não demorou para que ele aprimorasse os carros, com a substituição dos pistões convencionais feitos em aço por novos fabricados em ligas de alumínio, mais leves e com diferentes propriedades mecânicas e térmicas. Os novos pistões trabalhando junto com comandos de válvula melhorados transformaram os anêmicos DFP em veículos mais velozes, capazes até de marcar alguns recordes de velocidade.
Este conhecimento diferenciado de Bentley sobre motores a combustão o levou até a Marinha britânica, onde mostrou que seus pistões e outras peças em alumínio tornavam os motores melhores. Com isso, ganhou uma equipe de desenvolvimento e pode trabalhar em motores aeronáuticos para uso militar. Equipar aviões de combate era um ótimo cartaz de propaganda para suas capacidades técnicas. Os aviões Sopwith Camel da Primeira Guerra Mundial eram equipados com motores Bentley.
Em paralelo, Bentley participava de corridas de motocicleta no Reino Unido, correndo com modelos europeus e até com Indians americanas, como piloto oficial de fábrica. Um de seus colegas nas corridas era Sammy Davis, jornalista inglês que incentivou bastante a criação de uma empresa própria chefiada por W.O. em pessoa, onde pudesse colocar seus projetos em prática.
Logo em 1919, a fabricação de motores aeronáuticos abriu as portas para o nascimento da empresa Bentley Motors, a mais nova fabricante de automóveis da Inglaterra, sediada em Cricklewood. Os primeiros carros só começariam a sair da fábrica em 1921, com chassi e motor de fabricação própria.
O motor, componente que mais recebia atenção de W.O., era um quatro-cilindros de 3 litros com comando no cabeçote e quatro válvulas por cilindro criado por Clive Gallop, que conseguia produzir 75 cv. Os elevados critérios de fabricação e o conceito de durabilidade criaram a fama da marca. Assim como os motores, os chassis Bentley eram robustos e preparados para aguentar os maus tratos das estradas da época. Consequentemente, eram mais pesados.
“To build a fast car, a good car, the best in its class.” (Construir um carro veloz, bom um carro, o melhor de sua categoria.) – W.O. Bentley
Este era o lema de Walter Bentley. Os 3–Litre, como ficaram conhecidos, podiam chegar a mais de 160 km/h nas versões mais bravas, graças ao eficiente e moderno motor, a caixa de quatro marchas e as soluções de construção de chassi utilizadas.
A fama de carros velozes, já sacramentada em competições locais no Reino Unido, logo levou um Bentley ao mundo do automobilismo internacional, para a primeira edição da 24 Horas de Le Mans em 1923. O carro, um modelo 3-litros inscrito pela equipe particular da dupla John Duff e Frank Clement terminou a corrida em quarto lugar. Era um excelente resultado, ficando à frente de carros bem mais conceituados e conhecidos na França.
No ano seguinte, a mesma dupla conseguiu vencer Le Mans, um feito marcante para a história da fábrica. O 3-litros venceu a corrida e provou que a qualidade de fabricação e o projeto robusto de Bentley seriam uma potência no automobilismo da época, ainda com muita coisa a mostrar ao mundo.
Entretanto, as finanças da fábrica não iam bem. Era caro fabricar um carro com os requisitos de qualidade desejados por W.O. e o retorno das vendas dificilmente cobria os custos. Hoje em dia dizem que as competições aprimoram as marcas, mas no caso a competição manteve viva a fábrica graças ao entusiasmo de alguns pilotos.
Os Bentley Boys
Um entusiasta britânico chamado Woolf Bernato via com bons olhos os carros feitos por Bentley. A qualidade, velocidade e robustez de seus carros atraíam a atenção de diversos pilotos, e de Woolf principalmente. A vitória em Le Mans em 1924 reforçou a visão de bom negócio à vista.
Sabendo das deficiências financeiras da Bentley, Woolf, que acumulava fortuna com a exploração de diamantes na África, assumiu o posto de investidor e garantiu a sobrevivência da marca por alguns anos. Como os recursos que Woolf investia na empresa eram maiores do que W.O. poderia repor, Woolf ganhou o controle da Bentley em 1925 como acionista majoritário, deixando a parte técnica nas mãos de W.O. e seus engenheiros. Walter Owen não tinha mais o controle total da empresa, mas tinha participações e ainda gerenciava a produção de seus carros e os novos desenvolvimentos.
Woolf foi um dos primeiros a abraçar os Bentleys com vontade, e logo muitos outros o seguiram, sempre competindo nas corridas locais e internacionais com os potentes e resistentes modelos Bentley. Foram apelidados de Bentley Boys.
A fama dos Bentley Boys logo se espalhou pela Europa. Os rivais já tinham preocupações em correr contra um Bentley. Grandes e velozes, eram capazes de enfrentar de igual para igual carros menores e mais ágeis, como os Bugattis.
Em pistas velozes como Brooklands, os Bentley Boys e suas máquinas grandes e potentes se destacavam. Para uma época em que as pistas de corrida não tinham boas condições de piso, um carro robusto levava vantagem a longo prazo.
Para uma marca, não há nada melhor do que proprietários fazendo propaganda positiva de seu produto, e os Garotos faziam exatamente isto. Entre os Bentley Boys estavam nomes como o próprio Bernato, o amigo pessoal de W.O., Sammy Davis, que ficou conhecido por ser o editor de automobilismo da Autocar, Dudley Benjafield, que viria a fundar o Clube de Pilotos Britânicos, Clive Gallop que foi o engenheiro responsável pelo motor 3-litros da Bentley, os pilotos John Duff e Frank Clement, pioneiros em Le Mans com a marca, e Henry “Tim” Birkin, que teria uma grande importância na história da marca.
Le Mans e os Blower Bentleys
“To supercharge a Bentley engine was to pervert its design and corrupt its performance.” (Superalimentar um motor Bentley é estragar seu design e corromper sua performance.) – W.O. Bentley
Na mente de W.O. Bentley, os motores de aspiração natural eram a melhor forma de se ter confiabilidade, pois a superalimentação gera níveis de esforços elevados nos componentes do motor, além de aumentar a complexidade do sistema todo, gerar muito calor e outros probleminhas que são complicados até hoje.
O modelo 3-litros era competitivo e mostrou-se capaz de vencer a concorrência em diversas provas na Europa, inclusive em Le Mans, onde venceu em duas oportunidades, 1924 e 1927. Na corrida de 1924, a velocidade e resistência do Bentley superou a agilidade dos rivais franceses, defensores locais da coroa, estes os principais concorrentes da época. O 3-Litre de Duff e Clement marcou a primeira vitória para o Reino Unido em Le Mans, numa corrida em que o Bentley era o único carro não-francês participante.
Nos dois anos seguintes, dificuldades impediram que os Bentley Boys completassem a 24 Horas, retornando ao sucesso em 1927. Novamente um 3-Litre venceu, agora com a dupla Dudley Benjafield e Sammy Davis. Foi uma vitória heroica, o carro terminou a prova literalmente mancando depois um acidente nas primeiras horas da corrida onde o chassi, rodas, direção e carroceria foram danificados, e mesmo assim conseguiu vencer com 21 voltas de vantagem para o segundo colocado.
Neste mesmo ano, um modelo 3-litros que foi usado como carro de demonstração da Bentley no norte da Inglaterra foi modificado na própria fábrica e recebeu um compressor tipo Roots. Era o carro de placas FR5189, o primeiro e único Bentley superaalimentado com motor 3-litros e o único a ser feito dentro da fábrica. Esse carro foi pilotado por May Cunliffe, uma famosa corredora da época com relativo sucesso. O compressor era acionado pelo virabrequim e ficava posicionado à frente do motor e do radiador, para fora da carroceria. Esta posição de montagem com o compressor exposto viria ser a marca registrada dos Blower Bentleys, como ficaram conhecidos.
A visão de W.O. era que se mais potência fosse necessária, faria-se um motor maior. Nada de superalimentação, nada de blowers, nada de complicação. Mas, todavia, como ele não era mais o maior acionista da marca e Woolf era a favor dos compressores, W.O. não pode evitar por muito tempo que um Bentley fosse superalimentado, e isso abriu caminho para novos modelos.
A criação dos Bentleys com motor seis cilindros chamados 6 ½-litros (na verdade eram 6,6 litros, mas eram denominados 6 ½ com esta escrita em forma de fração) e o quatro cilintdos 4 ½-litros (4,4 litros) em 1926, idealizados por W.O. como opções de carros maiores, mais potentes e refinados, segurou por mais tempo a utilização da superalimentação em seus carros.
Uma versão mais potente e esportiva do 6 ½ foi criada para participar de corridas, chamada de Speed Six em alusão ao motor de seis cilindros e à maior velocidade final, conquistando a vitória nas 24 Horas de Le Mans de 1929 e 1930.
Na corrida de 1929, a equipe Bentley simplesmente arrasou. O Speed Six “Old Number One” de Woolf e Birkin venceu a prova, e o segundo, terceiro e quarto lugares ficaram com os Bentley 4 ½-litros aspirados. Como os Bentleys que seguiam a filosofia “se precisar, faça maior” de W.O. eram realmente maiores, pesando até duas toneladas, Ettore Bugatti não economizava alfinetadas, como a clássica “les camions plus vitee du monde” (os caminhões mais rápidos do mundo), pois os Bugattis de corrida pareciam miniaturas perto de um Bentley.
Tim Birkin, um dos Bentley Boys, não concordava com a posição de Walter em não utilizar a superalimentação em seus carros, uma vez que rivais como a Mercedes-Benz já eram adeptos da tecnologia no modelo SSK, e por conta própria instalou um compressor Roots em um 4 ½-litros, criando o primeiro Blower Bentley “oficial”, que depois ficou conhecido como Blower Bentley N° 1. Este carro nasceu em 1929 com a ajuda de Clive Gallop, o engenheiro de motores da própria fábrica, e Amherst Villiers, especialista em superalimentação de motores que forneceu o espaço de oficina e o compressor.
O novo motor ssuperalimentado era incrível, a versão de corrida chegava a 245 cv, número expressivo para a época e ainda mais potente que o 6 ½-litros com dois cilindros a mais que podia gerar “apenas” 210 cv. Esta versão era um pouco diferente do motor 3-litros superalimentado feito em 1927. Os carburadores ficavam do lado de fora, junto ao compressor, enquanto que no primeiro carro apenas o compressor ficava externo e o ar pressurizado era levado por meio de dutos aos carburadores que estavam ao lado do bloco do motor.
Colocado à prova em corridas pela Inglaterra, a velocidade do Blower Bentley era inquestionável, porém sua durabilidade nem tanto. Como foram poucas provas para avaliação e o ganho de potência era substancial, Birkin e Woolf conseguiram convencer W.O. (sem muita força para relutar) a produzir uma série de cinquenta modelos Blower para homologar o carro para competições, como as 24 Horas de Le Mans.
Quatro outros carros de corrida foram convertidos para a versão Blower na oficina de Amherst Villiers e juntaram-se ao N° 1 na equipe Bentley para algumas corridas na Europa. Pistas velozes como Brooklands eram um prato cheio para os grandes Bentleys ssuperalimentados, com bastante espaço para desenvolver velocidade.
Em Le Mans, a primeira aparição dos Blowers foi em 1930. Os dois carros inscritos, patrocinados por Dorothy Paget, entusiasta britânica das corridas de cavalo, não completaram a corrida. O Blower pilotado por Henry Birkin fez a volta mais rápida da corrida com sobra frente aos rivais, mas a velocidade foi derrotada pela fragilidade do motor e do conjunto mecânico do carro, pois lidar com a potência extra e os esforços maiores no motor não era fácil. Walter Owen aparentemente tinha razão. Seus grandes 6 ½-litros eram mais resistentes e confiáveis.
Pouco puderam fazer os Bugattis, Talbots e os outros rivais naquela edição das 24 Horas, o mesmo “Old Number One” venceu novamente, agora com a dupla Woolf e Glen Kidston, e o segundo lugar ficou com o outro Speed Six da dupla Frank Clement e Richard Watney. Os dois carros abriram mais de dez voltas de vantagem para o terceiro colocado, um Talbot.
Depois da temporada de 1930, a Bentley retirou-se oficialmente das competições, pois de acordo com W.O. “nada mais poderia ser aprendido em termos de velocidade e confiabilidade”. De certa forma, ele ficou frustrado com o fracasso dos Blowers, pois afetava a imagem imaculada da Bentley de carros robustos. Walter Owen manteve em produção apenas o 4 ½, o 6 ½ e o novo seis cilindros de 8 litros, modelo topo da marca em produção desde 1930. Alguns pilotos particulares continuaram a correr com os Bentleys em Le Mans, tanto o 4 ½ aspirado como o Blower, mas sem grande sucesso.
O fim da Bentley Motors
Todo o dinheiro investido na Bentley ao longo dos anos para criar os melhores carros de sua era não poderia superar a crise econômica mundial do começo dos anos 1930 com a Grande Depressão que afetou a economia mundial bruscamente.
A empresa nunca foi uma fonte de grandes lucros. O custo de fabricação dos carros e o elevado preço de venda reduzia a quantidade de unidades vendidas, pois eram carros destinados a poucos ricos compradores, coisa que na época eram escassos. Um total de aproximadamente três mil carros foram feitos na fábrica de Cricklewood de 1922 a 1931.
Com as finanças no vermelho, pouco restava a ser feito a não sei vender a empresa. Woolf Barnato e W.O. não tinham como arcar com todas as dívidas e a Bentley Motors foi para leilão. A Napier, fabricante britânica que ficou famosa pelos seus carros e motores aeronáuticos, tinha grande interesse na compra, mas ao final um grupo inglês venceu com um lance maior.
O que não sabiam na hora da venda é que por trás deste grupo de investimentos estava a Rolls-Royce, um dos principais concorrentes da Bentley no Reino Unido. A fábrica de Cricklewood foi fechada e a produção dos Bentley suspensas até 1933, quando retornou na fábrica de Derby, controlada pela Rolls-Royce.
Walter Bentley mantinha um posto na sua ex-empresa, mas negou-se a continuar trabalhando da forma que estavam lidando com sua presença, com boicotes e decisões contrárias a seus princípios, e em 1935 deixou tudo para trás e migrou para trabalhar na Lagonda.
Os anos da Bentley em Cricklewood representam o que a marca tinha de melhor. Um criador decidido com personalidade forte, capaz de fabricar carros extraordinários e deixar registrado na história como os ingleses dominaram as pistas de corridas e conquistaram fama em Le Mans, a casa dos rivais franceses. Infelizmente as habilidades técnicas de W.O. eram infinitamente melhores que as administrativas, o que para um dono de empresa é perigoso, e pouco pode fazer para manter sua marca viva da forma que gostaria.
Os Bentley Boys, os Blowers e Walter Owen representam uma época de glórias e conquistas de verdadeiros heróis, pessoas determinadas a correr atrás de seus sonhos, não importando os desafios à frente. Com isso, os primeiros dez anos de história da marca foram seus únicos verdadeiramente dignos do nome Bentley.
MB
Galeria de fotos dos Bentleys de corrida reunidos
(fotos autor)