Imagine você voltando no tempo ao ano de 1953, os primeiros Fuscas tinham chegado por aqui em setembro de 1950. Você, que morava na Capital Federal, Rio de Janeiro, é um pioneiro dono de Fusca e aceita um convite da concessionária Rio Motor para uma feijoada no esplêndido Hotel Quitandinha e vai com sua esposa e seus filhos participar desta aventura. Acompanhe este delicioso relato “de época” nas palavras de um dos filhos desta história, o amigo Bob Sharp então um infante de 11 anos. Mais um dos “causos” de meu livro EU AMO FUSCA II – Uma coletânea de causos de felizes proprietários de Fusca.
Feijoada em Quitandinha
Por Bob Sharp
Corria o ano de 1953. Meu pai havia sido dos primeiros a comprar Volkswagen no Rio de Janeiro. Era maio, se não estou enganado, e eu só completaria 11 anos em novembro. Custou 123 mil cruzeiros, equivalente a US$ 2.860 então, que hoje seriam pouco menos de US$ 20 mil, considerando a depreciação da moeda americana. Para efeito de comparação, um VW custava, na costa leste dos Estados Unidos, US$ 1.280. O preço do carro aqui era mesmo muito alto. Mais que o dobro do que um americano pagava.
O Fusca era verde-claro, já com o vidro traseiro oval, e sua placa, 14-02-84. Lembro-me de dois acessórios: tubos cromados nos baixos pára-choques, destinados a proteger a carroceria das investidas dos carros americanos nas vagas, e a maçaneta da tampa do motor com chave, este um item original. O escapamento era por saída única e o som do carro era diferente de tudo o que se conhecia.
Papai chegou com o carro zero em casa e eu e meu irmão ficamos doidos. Pedimos e ele para dar uma volta e atendeu sem reclamar. O cheiro do interior permanece até hoje na minha lembrança, principalmente o do tecido dos bancos. O revestimento das laterais do poço dianteiro, a região dos pés, era uma espécie de tecido encordoado, de muito bom gosto, e bem embaixo via-se, de cada lado, um orifício com várias fendas: era a saída de ar quente no nível do assoalho. O mesmo material revestia o porta-malas interno e o “rodapé”.
Voltamos para casa, o motor foi desligado e — o que é isso? O carro começou a emitir uns ruídos de coisa metálica batendo, mais ou menos ritmicamente, e ficamos intrigados. O que seria aquilo? — e tec, tec, tec. Só no dia seguinte explicaram, na oficina autorizada Rio Motor, onde o carro havia sido comprado, que se tratava da contração das partes metálicas do motor, que eram de diferentes composições, ao esfriar. Naquele tempo a carcaça do motor tinha muito magnésio na liga formada principalmente por alumínio, e isso a fazia esfriar mais rapidamente que o resto, produzindo-se os estalos.
Na tentativa de descobrir de onde vinham, outra sensação olfativa inesquecível ao colocar o nariz colado às entradas de ar para a ventoinha: um misto de óleo, borracha e metal quente. Era mesmo um carro totalmente diferente de tudo o que havia. Acostumados ao jeito desengonçado de rodar dos carros americanos da época — papai tinha um Oldsmobile 88 ano 1950 —, o Fusca andava pela ruas, na maior parte de paralelepípedos, com uma galhardia incomum, firme, sem nenhum barulho.
Ainda éramos crianças, mas hoje sabemos que parte desse bom resultado era a suspensão independente nas quatro rodas, ainda relativa novidade. Só a traziam o Renault 4CV e o Skoda Octavia, que vinham sendo importados há algum tempo, porém em pequenos volumes. E ao “destrinchar” o novo carro em casa, vi que ele tinha vindo com uma caixa de ferramentas chata e circular, com tampa, marca Hazet, fixada no estepe pelos grampos de calota que era um espetáculo à parte.
NOVO CONCEITO DE OFICINA
Já curiosos por tudo ligado a automóvel, pedimos ao papai para ir com ele à Rio Motor, para conhecê-la. Já tínhamos ido a algumas oficinas, onde o Oldsmobile era atendido e o carro anterior, o Mercury Coupé 1946, também. Não eram o que se podia chamar de primor, mas eram apenas razoavelmente organizadas. Por isso, quando vimos a Rio Motor, ficamos maravilhados. Tudo no lugar, aparência de limpeza imaculada e organização perfeita. Parecia haver ali pessoas diferentes das que estávamos a ver nesses ambientes. Saberíamos depois que essa era a estratégia da fábrica, imposta por Heinz Nordhoff: estabelecer um serviço supereficiente, um novo conceito de atendimento.
Um dos pontos desse conceito era a aplicação do que hoje se chama marketing de relacionamento, usado intensamente por vários fabricantes atuais. O cliente deveria se sentir em casa, a concessionária seria quase um ponto de encontro, um lugar que fosse agradável de ir e estar. Tanto que se podia ver os carros em serviço — em elevadores — por trás de divisórias de vidro bem altas. Nunca se havia visto isso no Brasil. E tudo executado de maneira rápida e, muito importante, sem custar demais.
Anos depois leríamos nas páginas da história da Volkswagen que Nordhoff tinha grande experiência em assistência técnica na Opel, subsidiária da General Motors, antes de passar a dirigir a unidade de caminhões em Brandenburgo nos anos da II Guerra Mundial. Como diretor-superintendente da VW, agora ele podia aplicar os princípios de seus amplos conhecimentos como quisesse. Foi exatamente o que aconteceu, resultando no Serviço VW, que se tornaria referência.
Era nesse ambiente que os donos de Volkswagen se reuniam enquanto os carros eram atendidos. Começava a se formar uma verdadeira confraria. E a se realizarem eventos, organizados pelo afável Harald Gessner (ele viria a ser o presidente da Karmann-Ghia do Brasil durante muitos anos até falecer em outubro de 2002, aos 75 anos; foi também diretor da Anfavea, a associação de fabricantes). Um desses eventos foi uma feijoada no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, cidade serrana do estado do Rio de Janeiro, a cerca de uma hora da capital, o Distrito Federal.
UM BELO PROGRAMA
Num domingo qualquer de julho de 1953, a família — pai, mãe, irmão e eu — saiu rumo a Petrópolis. Os dois filhos (e o pai, com toda certeza) empolgados com aquela “aventura” em que o grande astro era o novo e ainda estranho carro. A feijoada organizada pela Rio Motor no fabuloso hotel Quitandinha era para todos os donos de Volkswagen do Rio de Janeiro, que não eram mais que 150. Por esse número de convidados pode-se ter ideia de quão no início estava a era VW no Brasil. Não tenho certeza, por ser muito novo na época, mas é possível que a iniciativa tenha sido da própria Volkswagen do Brasil, fundada em março.
O hotel, para que se possa entender o espírito da história, tivera sua construção iniciada em 1944 e constituiria um dos monumentos arquitetônicos mais impressionantes do país, com seus 50 mil metros quadrados e seis andares, e salões com 10 metros de altura. Havia 440 apartamentos, e mais 13 grandes salões. Em um desses salões, o Mauá, o teto era uma obra de engenharia incomum: uma cúpula com 30 metros de altura e 50 metros de diâmetro, que produz um efeito interessante de eco. Estando-se no “ponto do eco”, a voz pode ser ecoada até 14 vezes! O estilo arquitetônico havia sido o normando, em razão da colonização alemã naquela cidade serrana fluminense.
Era um hotel-cassino, o maior da América do Sul, pois o jogo foi permitido no Brasil entre 1930 e 1946. Bem em frente ao complexo há um lago com 18 mil metros quadrados, cujo contorno é o mapa do Brasil. O cenário em que estava inserido o hotel era simplesmente magnífico, hollywoodiano. Os ambientes foram decorados por Dorothy Draper, cenógrafa dos filmes famosos de Hollywood. Era de dar imenso orgulho. Fora iniciativa do empresário do jogo e construtor de estradas Joaquim Rolla.
No seu teatro de palco mecanizado e lugar para 2.000 pessoas apresentaram-se artistas de peso, como Bing Crosby e Carmen Miranda. O Quitandinha foi visitado por astros e estrelas famosos, como Errol Flynn, Orson Welles, Henry Fonda e Lana Turner. Era um mundo encantado, e para chegar até ele mais facilmente Rolla criou um serviço de limusines Packard para oito passageiros, de pintura creme e ocre, que faziam serviço rápido e ininterrupto entre o Rio e o hotel-cassino.
Só que dois meses depois da sua inauguração, o jogo foi proibido no Brasil por decreto do presidente General Eurico Gaspar Dutra, um ato presidencial dos mais lamentáveis e que nunca mais seria revogado. Com isso, teve início uma fase de decadência e Joaquim Rolla tentou transformar o estabelecimento em apenas hotel, mas a taxa de ocupação caiu consideravelmente sem o atrativo do cassino. Por isso, ele vendeu o imóvel em 1963. As unidades habitacionais foram comercializadas e convertidas em condomínio residencial.
Foi nesse cenário quase mágico que os donos de Volkswagen foram convidados a saborear uma feijoada — no Salão Mauá, que foi suficiente para acomodar todos com total conforto.
SUBINDO A SERRA
O Volkswagen com seu motor de 1.131 cm³ e 25 cv não era exatamente o que se podia chamar de carro rápido, ainda mais com um motorista pesado, esposa e dois filhos pré-adolescentes. Mas andava razoavelmente bem entre os seus pares de época e tinha uma vantagem então: não tinha água para ferver por superaquecimento do motor. Isso encorajava seu uso em viagens — os cariocas sempre têm de subir alguma serra quando deixam a cidade, menos quando seguem rumo leste, para a região dos lagos. Na viagem, era Volkswagen para todo lado, motoristas e passageiros se cumprimentando. Coisa de confraria mesmo.
Papai sempre gostou de dirigir rápido em estrada (e fazia isso muito bem, não é por que era meu pai). Muitas das noções de posicionamento e de traçado de curvas aprendi com ele, meu irmão também. Assim, indo para Petrópolis naquele sábado, por volta de 11 horas da manhã, ele estava com o acelerador (ainda do tipo rodinha) encostado no fundo, no plano e depois na serra de Petrópolis. A quarta não dava e tinha de ir em terceira, motor esgoelando um pouco, a 70 km/h — o limite teórico, mas ia algo além disso. E ia passando todo mundo, para vibração minha e do meu irmão. Com mamãe, é claro, reclamando.
Só que lá pelas tantas ouvimos uma buzina que eu aprenderia anos mais tarde ser de ar-comprimido. Olhei para trás e vi um ônibus pedindo passagem! Lembro-me de ver a perna direita do papai se retesar, apertando mais o acelerador, sem adiantar, pois já estava no batente. Assim que deu ele foi para a faixa da direita e todos vimos, atônitos, o ônibus nos ultrapassar e, depois de umas poucas curvas, desaparecer do nosso campo de visão. Era um Flexble, da empresa Única, motor Continental de oito cilindros a gasolina, relação de diferencial adequada para serra e bitolas mais largas que o habitual. O Fusca não foi páreo para ele.
Foi nesse dia que papai pensou em comprar um Porsche. Quase o fez, inclusive para entrar nas corridas no Rio. Era 1955 e ele estava fecha-não fecha negócio com um lindo 1500 Super azul-marinho com forração bege claro, zero-quilômetro, numa loja na Avenida Atlântica, que é a própria praia de Copacabana. Mas a morte de Alberto Ascari, bicampeão de F-1(1952 e 1953), num treino em Monza — de grande repercussão na época — fez minha mãe pressioná-lo de todo jeito e ele acabou não realizando seu sonho.
Voltando ao Quitandinha, foi uma feijoada inesquecível, alegre, descontraída, cada um percebendo que tudo aquilo significava um movimento, uma nova forma de motorização, que havia algo de realmente novo no mercado. Tudo ao som de uma típica bandinha do sul da Alemanha. Houve até um sorteio de brindes e lembro que meu pai ganhou um aro de buzina, um acessório original VW muito cobiçado na época. E para muitos, principalmente para os dois garotos, havia uma coisa ansiosamente esperada: a jornada de volta para casa.
Seria para fechar com chave de ouro aquele dia inesquecível.
AG
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