Relembrando uma matéria publicada em 25/04/2012:
Faz um bom tempo que penso em escrever a respeito da pergunta-título deste post. Por quê? Para desmistificar o conceito de que ouço falar muito, o de que “torque é para arrancada, potência é para velocidade”, algo totalmente sem nexo. Eu devia isso ao leitor.
Ocorre que nesse “bom tempo”, que são anos, tornei-me amigo virtual — ainda estamos por nos conhecer pessoalmente, complicado porque ele mora no interior paulista — de uma pessoa cujo nome que os leitores certamente conhecem no Ae, já que é leitor assíduo e está sempre fazendo comentários oportunos e lúcidos. Da mesma forma que ele fazia quando eu estava no Best Cars Web Site e lá escrevia a coluna semanal “Do banco do motorista”. Seu nome, Daniel Shimomoto de Araújo.
Numa troca recente de e-mails, ele me falou de um texto que havia escrito sobre a questão de torque e potência. Mandou-me anteontem, li e gostei. É um pouco longo, “à André Dantas”, o nosso especialista em assuntos complexos, mas é um tema tão interessante que o leitor irá devorá-lo. O Daniel explica por que torque é apenas um dado e por que o que interessa é potência, tirando as palavras da minha boca.
Boa leitura!
Bob Sharp
Editor-chefe
AUTOentusiastas
POTÊNCIA, POTÊNCIA DISPONÍVEL E TORQUE: BUSCANDO A COMPREENSÃO DESSES CONCEITOS
Por Daniel S. de Araújo
Pegue qualquer revista de automóvel que a comparação é inevitável: o articulista sempre vai falar do motor de um automóvel enfatizando o valor de torque por ele produzido.
Potência,daí, é “secundário”, pois na visão destes profissionais (e difundida vai-se tornando-se senso comum), o que importa mesmo é o torque máximo do motor e em que rotação ou faixa. A coisa consegue ser pior em casos de comparativos. Já vi motores receberem notas maiores ou menores em função do torque apresentado e, o mais incrível, numa visão totalmente dissociada da potência, o que representa um dos maiores absurdos da física.
E com isso, avaliações e conceitos errôneos vêm sendo perpetuados nas rodinhas de conversa com os amigos, auxiliado pelas publicações “especializadas” e cadernos de automóveis de jornais e, sabendo de tudo isso, recebendo um excelente “incentivo” (desserviço?) dos departamentos de publicidade dos fabricantes – curiosamente, só nos de automóveis, pois os de caminhões enfatizam potência…
Para tentar explanar um pouco da importância da potência, do torque e como isso se integra resultando na potência disponível, este texto foi elaborado em partes: uma teórica, onde serão apresentados os conceitos básicos; uma descritiva, onde será apresentado a maneira como torque e potência se integram e, por fim, uma parte mais concreta, com exemplos do nosso dia a dia automobilístico, para que possamos, mais do que ler, sentir como isso afeta o comportamento de veículos “velhos conhecidos” nossos.
CONCEITOS TEÓRICOS
Na física, existem grandezas que são classificadas de escalares e outras, as chamadas vetoriais.
As grandezas escalares são aquelas que existem simplesmente pela sua quantificação (módulo), não necessitado de uma localização em um plano coordenado (direção e sentido). Desta maneira, o valor apresentado por uma grandeza escalar fala por ele mesmo. O tempo, por exemplo, se medido em segundos, fala por si só. Não há a necessidade de “contextualizá-lo” num plano de direção e sentido. O tempo, em uma unidade de medida, fala por si mesmo.
Outros exemplos de grandezas escalares são distância, velocidade, comprimento, massa. Essas grandezas, pelo simples fato de sabermos seu valor e a unidade, já se conhece o seu significado.
Por outro lado, grandezas vetoriais são grandezas que, além de sua quantificação (módulo), precisam de uma plotagem em um plano cartesiano (direção e sentido) para a perfeita compreensão daquilo que está expressando.
Em outras palavras, a grandeza vetorial precisa de módulo, direção e sentido para ser compreendida. A aceleração, por exemplo, sendo uma grandeza vetorial, para ser compreendida precisamos conhecer, além de sua quantidade (módulo), a direção e o sentido que ela está sendo aplicada. Se falarmos que um corpo está sofrendo uma aceleração, precisamos saber se a aceleração está agindo em um corpo em repouso ou em movimento, no caso de corpos em movimento, esta se dá em sentido favorável ou contrário ao movimento do corpo etc.
Força, torque, campo elétrico também são grandezas vetoriais, pois há a necessidade de sabermos a direção e o sentido na qual estão aplicadas essas grandezas. Sabendo disso, podemos definir potência e torque.
POTÊNCIA
Grandeza derivada, obtida pelo quociente entre energia e unidade de tempo.
O chamado “trabalho mecânico”/energia consiste na força multiplicado pelo deslocamento e é medido na unidade joule (J). Embora derivados de uma grandeza vetorial (força), trabalho mecânico é considerado uma grandeza absoluta, pois a força age no sentido do deslocamento do corpo, não havendo, dessa maneira, necessidade de compreensão de direção e sentido para o entendimento do seu significado.
Considerando que o “trabalho mecânico” significa o mesmo que energia mecânica, chamaremos portanto de trabalho mecânico de energia mecânica.
Desta maneira, potência é a quantidade de energia gerada por unidade de tempo, sendo, assim, uma grandeza escalar, que não requer a existência de conhecimento de direção e sentido para o entendimento.
O valor do “trabalho mecânico”/energia mecânica (em joules) dividido pela unidade de tempo em segundos resultará na potência, representada pelo Sistema Internacional de Medidas (SI) pela unidade watt (W):
1 W=1 J/s
Apenas à guisa de ilustração, na época da Revolução Industrial ficava difícil visualizar a capacidade de trabalho (potência) de uma máquina. Como se usavam (muitos) cavalos para tracionar máquinas, então James Watt (o mesmo que emprestou seu sobrenome à medida de potência no SI) ilustrou a medida de potência estimando a capacidade de um cavalo erguer verticalmente uma massa de 33.000 libras à velocidade de 1 pé por minuto. Essa medida de potência ficou conhecida por horse-power (hp).
O “cavalo-vapor” é, do ponto de vista numérico, bastante próximo ao hp, mas advindos de origens diferentes. O cv é tido como sendo uma massa de 75 kg — logo, “fazendo” uma força de 75 kgf ou 735,4 newtons) levantada verticalmente por um metro em um segundo.
TORQUE
Torque representa a força exercida em um braço de alavanca acoplado a um eixo para provocar sua rotação. Dito em palavras soa estranho, mas podemos visualizar isso com uma chave de roda colocada em um parafuso perfeitamente apertado: a força que fazemos na chave de roda, multiplicada pelo comprimento desta chave, representa, no parafuso, o torque que exercemos no sentido de virar este parafuso. Se este parafuso não oferecer resistência ao movimento torcional, teremos um torque zero; se a resistência for alta, teremos um elevado torque.
O torque é, desta forma, o produto da força exercida em um braço de alavanca multiplicado pelo tamanho desse braço e é expresso em newtons x metro (N·m) de acordo com o SI, embora seja de uso corrente a não menos correta unidade metro x quilograma-força (m·kgf), em que 1 m·kgf = 9,806 N·m.
TORQUE VERSUS “TRABALHO MECÂNICO”/ENERGIA E SUA RELAÇÃO
COM A POTÊNCIA
Apesar de matematicamente ser idêntico à unidade de medida de trabalho mecânico (produto da força N multiplicada pela distância m), os conceitos de torque e de energia são completamente distintos, reservada as semelhanças unicamente na matemática.
O conceito de torque relaciona-se à força aplicada sobre um braço de alavanca para provocar rotação (grandeza vetorial — existe a necessidade de haver o esforço em torno de um eixo para existir o torque).
Energia/“trabalho mecânico”, por outro lado, relaciona-se com a capacidade de uma força em produzir o movimento. Essa força relacionada ao movimento, na visão estrita de “energia”, independe da direção e do sentido, pois parte-se do pressuposto que estão agindo sempre no sentido do movimento, não havendo a necessidade de conhecimento de que direção e sentido estão sendo aplicados.
Em outras palavras, torque está relacionado diretamente a uma força que produzirá um movimento. Assim, energia mecânica é uma grandeza independente do sentido e da direção que está sendo exercida/gerada.
Como no motor de combustão interna temos o movimento, então definimos o torque como a força disponível em um braço de alavanca. No momento em que temos movimento, aí ocorre a presença do trabalho mecânico como a força empregada no deslocamento do respectivo braço.
Podemos ilustrar por uma chave de roda num parafuso. A força exercida no sentido de girar o parafuso, multiplicado pelo braço de alavanca, é o torque exercido no parafuso. Esse torque é exercido sobre o parafuso até o ponto em que temos sua movimentação na alavanca. Neste ponto, ai temos o “trabalho mecânico” que leva em conta o deslocamento.
No motor, a força é a resultante da queima do combustível, que gera uma pressão no interior do cilindro que produz uma força sobre o pistão, que pela sua biela leva movimento a uma manivela no virabrequim, que por isso mesmo tem o nome de árvore de manivelas.
Assim, como no limite do torque máximo em uma determinada rotação é o limiar entre a força no braço de alavanca sem gerar o movimento e o trabalho, quando ocorre o movimento, então consideramos o torque como o trabalho.
Desta maneira, com o uso do dinamômetro, que nada mais é, em linhas bastante genéricas e simplistas, que um braço de alavanca ligado à saída do virabrequim de um motor e ligado a uma balança, desse modo impondo carga (“peso”) ao motor, calcula-se o torque/trabalho do motor multiplicando a força indicada na balança pelo comprimento do braço.
Relacionando esse torque obtido no dinamômetro com a rotação do motor, obtemos a potência do motor para aquela rotação através da formula básica potência = torque x 2? x velocidade angular.
O conceito de potência (energia/tempo) é tão relevante que também o usamos na mecânica e na eletricidade. Um exemplo interessante é o chuveiro elétrico: quanto mais energia térmica ele consiga liberar por unidade de tempo, mais rapidamente teremos o aquecimento de um determinado volume de água por unidade de tempo. Se dobrarmos essa potência, poderemos aquecer um maior volume de água no mesmo tempo OU o mesmo volume inicial, mas em menos tempo. E assim vai. Não interessa a tensão elétrica ou a corrente elétrica utilizada pela resistência aquecedora: importa a potência (lembrando que potência elétrica = tensão elétrica x corrente).
Na mecânica é a mesma coisa: a quantidade de trabalho/energia convertida por unidade de tempo é a potência. E isso é que é significativo, pois esteja o motor rodando livre ou amarrado numa transmissão, ele produzirá “x” energia mecânica/tempo. Um motor nada mais é que um conversor de energia: através dele convertemos energia contida no combustível, no gás ou a energia elétrica em energia mecânica (desejada) e outras formas diversas de energia (sonora e térmica – ambas indesejadas).
A potência neste caso nada mais é que a quantidade de energia gerada por unidade de tempo. E a energia mecânica sendo o produto escalar de uma força pelo seu deslocamento, ela é de suma importância para sabermos o desempenho do motor. Desta maneira, sendo a potência uma função da energia gerada por unidade de tempo, é exatamente este o conceito-mestre que devemos ter para avaliar o desempenho do motor.
O torque, por outro, lado está, conforme vimos anteriormente, estritamente ligado com a potência, e daí a sua presença nas fichas técnicas dos motores. Motores com elevado valor de torque em rotação baixa representam um excelente indício de excelente disponibilidade de potência nesta faixa de rotação, implicando elasticidade no motor. Altos valores de torque de um motor representam justamente esta elasticidade propiciada por ele, entretanto esta elasticidade vem em decorrência da potência disponível em baixa rotação e não do torque, como erroneamente as publicações deixam transparecer.
Uma aplicação importantíssima do conceito “Torque” está justamente no dimensionamento das caixas de transmissão e eixos dos veículos. Motores com elevados valores de torque produzirão maiores esforços nesses componentes. Um bom exemplo disso são alguns veículos utilitários movidos a gasolina e que sofrem o “transplante” para um motor Diesel, muitas vezes de menor potência que o original a gasolina, mas de maior torque. O resultado invariavelmente é o mesmo: quebra de caixa de câmbio, eixo, diferencial, semieixos etc.
É importante salientar que a potência, assim como o torque, é variável ao longo da faixa de rotações de trabalho do motor, sendo crescente, atingindo um ápice e declinando. Ela não é eternamente crescente.
CASOS PRÁTICOS
Para avaliarmos o desempenho do motor temos que conhecer a quantidade de energia mecânica/”trabalho mecânico” que ele gera por unidade de tempo. Esse “trabalho mecânico” por unidade de tempo é o responsável pela aceleração de um veiculo a partir do zero, manutenção de velocidades (vencendo as forças contrárias ao movimento como o arrasto, peso etc.), enfim pelo comportamento geral do veiculo. Por isso o número que realmente interessa é a potência, e como ela se apresenta de uma maneira variável ao longo das rotações de trabalho do motor, é relevante o conhecimento da potência disponível do motor, ou a sua curva de potência.
Um veículo para manter uma dada velocidade, com uma dada carga, requer uma dada potência. Assim, um motor precisa trabalhar gerando um tanto de potência para manter a referida velocidade, considerando carga a bordo, a velocidade e as forças envolvidas no deslocamento.
Peguemos um veiculo utilitário como exemplo: em um aclive, uma caminhonete necessita de 80 cv para subi-lo a 70 km/h. Mas se você carregá-la, precisará de mais potência para manter o mesmo ritmo de subida (70 km/h) e ai é que entra a transmissão para completar todo esse conjunto.
Suponhamos que o motor deste utilitário gera 80 cv a 1.500 rpm e que em 5ª marcha o veiculo consiga rodar com o motor nessas 1.500 rpm a 70 km/h. Portanto ele subirá normalmente em 5ª marcha nesta velocidade. Se carregarmos o veículo, precisaremos de, por exemplo, 100 cv para manter os mesmos 70 km/h no mesmo trecho. Desta maneira, o motor trabalhando em 1.500 rpm em 5ª marcha produzirá potência insuficiente para manter a velocidade de subida. Assim, haverá necessidade de redução para uma 4ª marcha, por exemplo, para que o motor trabalhe em rotação mais alta (2.500 rpm, por exemplo) e gere mais potência para proporcionar a subida na mesma velocidade mas com volume de carga maior.
Assim explica-se por que alguns caminhões possuem 18 marchas: para qualquer velocidade (de zero até a velocidade máxima projetada), haverá quase sempre uma marcha que propicie o motor trabalhar em rotação de potência máxima, otimizando o desempenho rodoviário em quase todas as situações (aclives longos, curtos, íngremes, leves, retas etc.)
OUTRAS COMPARAÇÕES INTERESSANTES
Quem já dirigiu Fusca com motor 1,6-litro sabe que o carro arranca muito bem, deixando para trás muitos “moderninhos” de maior potência (e em alguns casos, até de maior torque também!) Mas, onde reside o “segredo” do Fusca?
Simples: potência disponível. A curva de potência disponível do motor VW boxer é bem adequada, sendo que a potência máxima desse motor é obtida a 4.200 rpm. Ou seja, a 4.200 rpm o VW a ar “entrega” todos os 57 cv. Considerando o torque de 11,8 m·kgf a 2.600 rpm, teremos que a 2.600 rpm o motorzinho boxer produz 42,5 cv.
Do outro lado da moeda temos veículos de 1.000 cm³, como, por exemplo, o Celta VHC-E, motor de 78 cv a 6.400 rpm com álcool e torque de 9,7 m·kgf a 3.000 rpm. Este motor nesta rotação estará produzindo 40,3 cv, ou seja, é menos potente a 3.000 rpm que um Fusquinha a 2.600 rpm! Só que enquanto o Fusca chega a 4.200 rpm e 57 cv, o Celta VHC-E vai até 6.400 rpm e desenvolve 78 cv, o que no final das contas fará a diferença em velocidade e desempenho. Só que para isso o motor GM precisa trabalhar “em alta” e o Fusca pode ser dirigido com rotações menores sendo, portanto, 4 marchas mais que o suficiente para o carrinho da VW, enquanto devido à menor elasticidade do motor GM, mesmo com cinco marchas (menor queda de rotação entre as marchas), uma arrancada pode representar uma frustração dada a potência inferior em rotações baixas.
Motor Diesel também engana demais! A imprensa especializada tem mania de falar de torque como algo “fundamental” em uma motorização Diesel, só que da maneira como é explicada nos artigos passa-se a impressão que apenas o valor absoluto do torque é representativo, sem levar em conta a potência. E isso falando de motores de aplicações semelhantes em veículos semelhantes!
Existe uma picape a diesel bastante conhecida do mercado com um motor que produz 38,2 m·kgf a 1.400 rpm, enquanto outro, de uma picape sonho de consumo de muitos, que produz 35 m·kgf a 2.000 rpm. Qual dessas você levaria para casa? O motor mais torcudo ou o menos? Qual desses terá mais força para vencer os aclives e, de quebra, andar bastante na estrada?
O motor mais torcudo é o International HS 2.8L com turbo de geometria variável (VGT) e 135 cv a 3.800 rpm que equipou a Ranger ano-modelo 2002 a 2005, enquanto o menos torcudo é nada menos que o Mitsubishi 4M41 da L-200 Triton com nada menos que 170 cv a 4.000 rpm! Acho que maiores comentários são dispensáveis…
DSA
AE Classic: As matérias da categoria AE Classic são reedições de matérias publicadas entre 24 de agosto de 2008 e 30 de junho de 2014, quando o AE ainda era um blog. Vamos aos poucos reeditar as principais delas. Se você tem uma matéria preferida que não está disponível no novo site, por favor deixe um comentário.