Apesar de serem duas marcas alemãs, concorrendo pelo mesmo espaço do mercado, existem grandes diferenças entre a BMW e a Mercedes-Benz. “A BMW é o meio do caminho entre a Mercedes e a Porsche”, é uma maneira de se ver. Outra, é definir o espírito da marca por seus produtos: a Mercedes faz caminhões e automóveis, e a BMW motocicletas e automóveis. Mas em minha opinião a principal diferença é geográfica: A BMW é a fábrica de motores da Bavária, carregando orgulhosamente seu estado de origem não somente no nome, mas também no seu famoso logotipo redondo. A bandeira da Bavária é um quadriculado em azul e branco, exatamente igual ao centro do famoso logotipo que emula uma hélice em movimento. A Mercedes-Benz, baseada em Stuttgart, é por sua vez suábe, um estado com gente tão diferente dos bávaros quanto cariocas são diferentes de paulistas.
Existe outra grande diferença entre ela e sua arquirrival suábe: enquanto a Daimler e Benz tem uma história linear e fácil de contar, a da BMW é para lá de complicada e variada, principalmente em seu início. E é isso que vou tentar fazer hoje: contar como a BMW nasceu. Vamos tentar, para simplificar, uma visão cronológica para esta história, o que por sua vez nos leva não para a Bavária, mas ao estado alemão imediatamente ao norte: a Turíngia.
Eisenach
Heinrich Ehrhardt , nascido em 1840, ali perto de Eisenach em Zella St. Blasius, era um daqueles personagens marcantes da indústria mecânica do século XIX: nasceu pobre, filho de trabalhador rural, mas as custas de muito trabalho e um tino inerente para a mecânica, fica famoso como inventor e depois industrial. Sua mais famosa invenção, em uso até hoje, é o saca-rolhas com duas alavancas, mas a principal fonte de renda vinha da fabricação de armamentos.
Em 1896, volta a morar na sua região natal, depois de décadas em Stuttgart. Em Eisenach funda a FFE (Farzeugfabrik Eisenach, fábrica de veículos de Eisenach), e ali começa a produzir armas e bicicletas com o nome comercial de Wartburg, nome do famoso castelo que domina a cidade. Mas como dizia o nome da nova empresa, automóveis eram o seu objetivo final. Em 1898 começa a produzir automóveis com a marca Wartburg também, efetivamente a terceira indústria alemã depois de Daimler e Benz, então duas empresas separadas. Seu principal objetivo eram caminhões militares, mas carros de passeio, tanto elétricos quanto a gasolina, também eram fabricados. Quando movidos a motor de combustão interna usavam patentes da Decauville francesa, pagando royalties, principalmente em motor e transmissão.
A produção era baixa e praticamente artesanal, e quando chega o ano de 1903, Ehrardt começa a perder interesse no negócio, e acaba por abandoná-lo. Em seu ultimo discurso aos funcionários, termina com a expressão clássica em latim “Dixi”, que no contexto significa “E tenho dito!”.
O engenheiro William Seck, o novo líder da empresa, cria então uma nova marca para a FFE: Dixi. A empresa continua a produzir carros em volume baixo e altos preços, agora com desenho próprio (a licença da Decauville se foi com Ehrardt ), até que com a Primeira Guerra Mundial, passa a produzir armamentos.
Com o fim do conflito, volta a produzir seus desenhos antigos a partir de 1919, mas sem muito sucesso. Em 1921, Jakob Shapiro, um banqueiro austríaco com vários interesses na indústria automobilística alemã, compra a Dixi, além da Gotha e da Cyklon, duas marcas pequenas da região, e as junta em uma só empresa.
Herbert Austin
Enquanto a Dixi tentava em vão fazer um nome e um mercado para si durante o início dos anos 1920, longe dali, nos midlands ingleses, a empresa fundada por Herbert Austin em 1905 acabava de sair de um período de administração judicial (a recuperação judicial que conhecemos aqui, anteriormente concordata).
Sir Herbert Austin, apesar de ainda ser oficialmente o presidente, não exerce mais o poder absoluto; as decisões são tomadas por um comitê formado pelos bancos credores e os novos diretores financeiros apontados por eles. Este comitê discordava sobre os rumos da empresa em quase tudo, e principalmente sobre a nova ideia do fundador de criar um carro pequeno e barato, que se aproveitaria da nova lei de taxação sobre potência (“tax horsepower”) e traria novos clientes que então compravam motocicletas apenas.
Impedido de fazer o que queria, Sir Herbert não se faz de rogado: contrata ele mesmo um jovem desenhista (Stanley Edge, então com 18 anos) e o instala em um escritório em sua mansão em Birmingham, Lickey Grange. Lá o jovem Edge, debaixo do olhar vigilante de Austin, e teoricamente sem vínculos com a Austin Motor Company, cria entre 1921 e 1922 um dos mais importantes carros na história do automóvel.
Lançado em 1922, o Austin 7 era diferente de tudo até então. Minúsculo, foi um dos primeiros carros criados a partir do pacote interno, dos passageiros: feito para dois adultos e duas crianças. O motor era para ser um bicilindro contraposto, mas Edge acaba por convencer seu chefe de que um pequeno 4-em-linha teria quase o mesmo custo e peso, e ainda ajudaria a diferenciar o Austin dos “Cyclecar”, carros que usavam componentes de motocicleta.
Deslocava apenas 700 cm³ inicialmente, mas logo seria aumentado para 750, número que manteve até o fim de sua longa vida. Foi um imediato sucesso, um carro de verdade em miniatura, que rapidamente acabou com a indústria de “Cyclecars”, e causou severo golpe à de motocicletas e de sidecars.
Sua influência foi enorme e pode ser sentida até hoje. O carro era leve, simples, barato, mas também veloz; não devia nada em desempenho aos carros “normais” da época. Como era muito popular, logo apareceram categorias e clubes de competição para o pequeno Austin, a mais famosa o “750 Club”. A Lotus começou com pequenos Austin Seven modificados por Colin Chapman e seus amigos, e acredito que não há coinncidência sua maior criação compartilhar seu nome com o pequeno Austin. Sir Alec Issigonis criou seu famoso “lightwight special” para competir no clube antes de usar o que aprendeu ali no Mini original de 1959. A indústria de competição inglesa, hoje famosa, deve muito do seu início ao pequeno Austin.
Sir Hebert patenteou o carro e suas soluções inéditas em seu nome, já que ele mesmo financiou o projeto de seu próprio bolso. Por causa disso, recebeu royalties da empresa que levava seu nome por cada Austin 7 vendido, até o fim da produção em 1939.
Rapp, Popp e Friz
Não, não são nomes de refrigerantes alemães. Por mais que pareçam borbulhantes onomatopeias inventadas, Rapp (Karl), Popp (Franz Josef) e Friz (Max) foram pessoas reais, e ligadas intimamente no período da criação da Bayerische Motoren Werke. São os principais protagonistas da fundação da empresa chamada BMW.
Voltando um pouco no tempo para o começo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), na capital da Bavária, vamos encontrar a fábrica de motores aeronáuticos de Karl Rapp (Karl Rapp Motorenwerke GmbH) em maus lençóis. A empresa até ali tinha se permanecido pequena, ainda aperfeiçoando motores aeronáuticos em uma indústria nascente, com tecnologias ainda em sua infância. Mas o início da guerra criou necessidade imediata de produtos que pudessem ser usados de verdade e de forma confiável; pedidos militares, da Áustria e da Prússia começam a aparecer.
Mas os motores de Rapp (basicamente um seis-em-linha de 175 cv chamado “Rapp III”) se mostraram extremamente pesados e pouco confiáveis, além de vibrarem muito além do aceitável. A reputação da empresa rapidamente se tornou duvidosa, e as perspectivas futuras, quase inexistentes.
Enquanto isso, um oficial austríaco de nome Franz Josef Popp, consultor do império austro-húngaro a respeito de aviação, emite um relatório pedindo que o governo de seu país começasse imediatamente o desenvolvimento de um motor aeronáutico de 350 cv. Para tal, contrata a mais respeitada fabricante de motores do país: a Austro-Daimler. Seu engenheiro-chefe, um jovem então já famoso na indústria chamado Ferdinand Porsche, cria um novo V-12 para atender o pedido.
Mas a capacidade produtiva da empresa estava então totalmente tomada por outros contratos de guerra. Não havia maneira de se produzir o motor na Austro-Daimler, e com isso Popp se via numa enrascada profissional: levara anos para conseguir que o projeto se tornasse realidade, e parecia que ia morrer na praia. Mas obviamente, a saída para o imbróglio o levou direto para o meio de nossa história: a Rapp Motorenwerke GmbH.
Usando sua posição no ministério da guerra da Áustria, efetivamente dono do projeto, e com a ajuda de um investidor austro-italiano chamado Camilo Castiglioni, que tinha interesses tanto na Austro-Daimler quanto na Rapp, Popp consegue colocar um pedido para a construção de 224 motores Austro-Daimler V-12 na Rapp em Munique. E consegue isso lutando contra oposição importante dos dois lados: Porsche não queria outros fazendo seu motor, e Karl Rapp não queria produzir algo que não desenhara.
Mas quando chegou em Munique para supervisionar o início dos trabalhos, Popp teve um choque. A empresa era pequena e mal equipada, e parecia que tinha se metido em séria enrascada. Mas ao invés de desistir, arregaçou as mangas. Com apoio de seus superiores, imediatamente assumiu cargo de chefia na empresa, e começou a organizá-la. Logo chama um engenheiro da Daimler em Cannstatt chamado Max Friz para assumir a engenharia.
A chegada de Friz foi demais para Karl Rapp. Sabendo que o controle da empresa que levava seu nome já não era seu, abandona suas funções e, não muito tempo depois vende sua participação, saindo de cena. Friz começa reprojetando o infame motor “Rapp III”, primeiro trabalho seu na empresa que o tornaria famoso, e um que até hoje leva um pouco de seu espírito em seus produtos, como veremos mais adiante.
Popp não perde tempo: em seguida compra (com ajuda de Castiglioni) a Gustav Otto Flugmotorenfabrik, ali mesmo em Munique. A empresa do filho do criador do motor 4-tempos era mais bem equipada e tinha maior capacidade fabril, apesar de também estar ali em maus lençóis. As duas empresas juntas se tornam, em março de 1916, a BFW: Bayerische Flugzeug Werke, ou Fábrica de Aviões da Bavária. Exatamente um ano depois, para refletir melhor o que era fabricado ali, trocava-se os aviões no nome por motores, e nascia a BMW.
A evolução do infame “Rapp III” projetada por Friz seria chamado de “BMW IIIa”, depois “BMW IV”, e ao contrário de seu antecessor, seria um grande sucesso, que ajudou a empresa a encher os cofres durante a guerra. Popp agora era o principal executivo da empresa, e não voltaria mais ao seu emprego no exército austríaco. Mas ao final da guerra em 1918, a jovem empresa enfrenta outra grande crise: como perdedora do conflito, pelo Tratado de Versalhes, de 1919, a Alemanha ficava proibida de produzir aviões e qualquer componente para eles. Com pouco mais de um ano de vida, a BMW, efetivamente, ficava proibida de existir.
A BMW sem os aviões
Hoje se fala muito de empresas como a Porsche, que teria “se vendido”, e deixado de produzir somente carros esporte apenas pelo vil metal. Mas empresas, criações humanas que são, na maioria das vezes agem como seus criadores. Quando confrontada com a morte, com o fim de sua existência, toda a moral passada se torna irrelevante; sobreviver vira o único objetivo.
Como a BMW sobreviveria aos anos imediatamente após a Primeira Guerra Mundial? Até ali era uma empresa de motores aeronáuticos exclusivamente, e tal atividade estava agora proibida por força de um tratado. Criatividade era necessária.
Popp consegue um contrato salva-vidas com a Knorr Bremse, fabricante de freios, para produzir 3.500 sistemas de freio para a nova malha ferroviária em construção. Ao fazer o contrato, a Knorr também investe na BMW, e se torna importante acionista.
A Knorr imaginava transformar a BMW em uma subsidiária, uma fábrica a mais em seu império. Max Friz desenha um motor de motocicleta para a empresa alemã Victoria, de Nuremberg, mas sua produção é vetada pelo conselho. Castiglioni e Popp se juntam novamente, e acabam por comprar a parte da Knorr na BMW, quando o contrato inicial se acaba.
Imediatamente a empresa põe no mercado o motor de motocicleta projetado para a Victoria. O motor de Friz era um contraposto arrefecido a ar, quadrado, com diâmetro e curso de 68 mm, de 486 cm³. Recebeu a designação M2B15, e o nome comercial de “Bayerische Kleinmotor” (motor pequeno da Bavária), e foi imediato sucesso em motocicletas Victoria, SMW e Bison.
Max Friz então cria também um enorme motor de quatro cilindros, oito litros e nada menos que 540 kg, chamado de M4A1. Este gigante, ao contrário dos motores leves e giradores que fariam a BMW famosa no futuro, era praticamente um motor estacionário que girava até 1.200 rpm apenas, mas tinha todo o torque do mundo. Mas era o que a empresa precisava então: tratores, caminhões MAN, barcos e geradores foram tocados pelo M4A1, que ajudou a manter a empresa viva.
Ao redor de 1922, a BMW começa a fazer uma motocicleta sob licença, a Helios, que usava seu boxer, mas rotacionado a 90° do que conhecemos hoje como normal numa BMW. A Helios era apenas uma experiência antes da revolução. Friz criaria em seguida a primeira motocicleta a levar o famoso roundel BMW, e uma que iniciaria uma das mais duradouras e interessantes escolas motociclísticas da história. Com um boxer atravessado no quadro, um cilindro de cada lado da moto, exposto ao vento, e um cardã até à roda traseira, nascia em 1923 a BMW R32. Sucesso imediato.
Os sucessos da linha de motocicletas da BMW acabam por, nos anos que se seguem, a abrir discussões internas sobre a entrada da marca no ramo dos automóveis. Já uma empresa de sucesso e conhecida pela qualidade da sua engenharia e seus produtos, a empresa porém não tem conhecimento e instalações fabris para tal expansão.
O Austin alemão é o primeiro BMW
De volta então a Eisenach, vemos Jakob Shapiro resolvendo seus problemas com suas três empresas pequenas fabricantes de automóveis na Turíngia de uma forma bem pragmática. Vai até a Inglaterra e consegue uma licença para produzir o Austin Seven na Alemanha. O contrato é, de novo, pessoal com Sir Herbert Austin, que como sabemos era o inventor oficial da obra mecânica conhecida então como Austin Seven. Mas como ainda era o principal acionista da Austin, obviamente a Dixi de Eisenach teve toda ajuda possível na empreitada, inclusive visitando a fábrica inglesa.
Os 100 primeiros carros chegaram prontos da Inglaterra, e ali apenas receberam logotipos Dixi. Em seguida, um grande esforço acontece em na fábrica para transformar uma produção artesanal em seriada. O carro alemão se chamaria Dixi 3/15hp DA, e antes do fim de 1927, 43 deles já tinham sido feitos em Eisenach. Em 1928, seis mil.
O pequeno carro logo se mostrou um sucesso, acompanhando o desempenho de carros maiores, mas com a economia de combustível muito maior. A Dixi, que patinara financeiramente desde a época de Ehrardt 30 anos antes, finalmente parece ter futuro.
Mas não era para ser. Shapiro, assim que cria algum valor para a Dixi, resolve embolsar algum vendendo-a. E quem aparece para fazê-lo? Claro que nossa conhecida BMW. Em 1929, a fábrica Dixi em Eisenach se torna uma subsidiária da Bayerische Motoren Werke, e o pequeno Dixi recebe o símbolo BMW.
De uma só tacada, a empresa de Munique consegue uma fábrica e um produto moderno, de primeira linha, para iniciar sua história com automóveis.
Desfecho
Depois de um par de anos fazendo evoluções do Austin Seven, a BMW lança o 3/20, já sem pagar royalties a Sir Herbert, efetivamente o primeiro automóvel BMW. Depois coloca mais dois cilindros no motor do 3/20, fazendo um seis-em-linha de 1,1 litro, algo que ela faria repetidas vezes no futuro. Este primeiro seis-em-linha, chamado de 303, teria também uma grade dupla, dois ovais em ângulo, com o símbolo da marca no meio deles ao topo. Este carro de Friz praticamente selou a configuração do carro BMW, assim como a R32 tinha fechado o desenho da motocicleta BMW. O resto da história todo mundo conhece.
A fábrica de Eisenach ficou em território soviético depois da Segunda Guerra Mundial, efetivamente perdida para a BMW. Os alemães orientais colocaram ela para funcionar e por anos produziram BMWs com o nome alterado para EMW (Eisenach Motoren Werke). Em 1952 passou a fabricar clones de DKWs, que foram chamados de novo de Wartburg. Com a abertura para o ocidente em 1990, a empresa fechou. Hoje, Opels são produzidos à sombra do castelo de Wartburg.
A empresa de Sir Herbert, depois de uma série de fusões e falências, acaba, ironia das ironias, comprada pela BMW nos anos 1990, quando era parte do grupo Rover. Um pouco de seu espírito sobrevive no MINI fabricado em Longbridge pela BMW. O Mini original, afinal de contas, se chamou Austin Seven também por um breve espaço de tempo nos anos 60, junto com seu clone Morris Mini Minor.
“Das habilidades que o mundo sabe, essa ainda é a que faz melhor: Dar voltas.” – José Saramago
MAO