Caro leitor ou leitora,
Foi em agosto de 2012, durante o evento de lançamento da segunda geração do EcoSport, em que suas linhas mudaram radicalmente, que um amigo chamado André Gomes Tavares, jornalista, conhecido no meio antigomobilista como Portuga Tavares, conversou comigo e manifestou vontade de escrever para o AE. De lá mesmo telefonei para os meus sócios, os Keller Paulo e Arnaldo, falei-lhes da novidade, e o Portuga foi imediatamente aceito.
Durante cerca de um ano e meio o Portuga nos brindou com grandes matérias sobre carros antigos e clássicos, assunto que domina, até que outro compromisso profissional começou a prejudicar a sua presença mais constante no AE, levando finalmente ao encerramento de sua participação, o que lamentamos bastante na época e muitos leitores e leitoras também.
Depois de cerca de quatro anos e meio o Portuga está de volta e estará no AE pelo menos uma vez por mês.
Bem-vindo novamente, Portuga!
Bob Sharp
Editor-chefe
Nota: Quem desejar contatar o Portuga Tavares, seu e-mail é [email protected] .
O TEMPO DÁ JEITO EM TUDO
Por Portuga Tavares
Meu último texto aqui no AUTOentusiastas foi sobre o Del Rey Executivo (foto abaixo), carro transformado pela Souza Ramos em um tempo que modificar automóveis era uma forma de dar exclusividade e status aos automóveis nacionais. O carro me foi oferecido pelo próprio Eduardo de Souza Ramos e passei a oportunidade de compra ao meu amigo Lucas Vane. Agora, depois de tanto tempo, volto para escrever — novamente — sobre Del Rey, dessa vez por causa de um item desse carro que sempre me fascinou: o relógio digital (foto de abertura).
Ao escrever “relógio do Del Rey”, aposto que os leitores com – pelo menos – 30 anos já sabem de que acessório estou falando, mas em respeito aos mais jovens vou explicar: o Ford Del Rey foi o automóvel que nasceu para completar de maneira luxuosa a linha Corcel II e ao mesmo tempo substituir os Galaxie Landau.
A tarefa não era fácil. Então chegou ao automóvel uma carroceria própria com detalhes que buscavam diferenciá-la do restante da “família Dois”, composta por Corcel, Belina e Pampa. O veículo ainda vinha com itens que nem mesmo o grande “Galaxão” trouxe como o conjunto elétrico, composto por vidros, travas e retrovisores com o funcionamento ao toque de um botão. Outro item que o Del Rey trouxe e o Landau não tinha: relógio digital e esse foi justamente esse o primeiro detalhe que me encantou no Del Rey.
Aquele relógio perto do retrovisor interno está na minha memória desde que o vi pela primeira vez no Del Rey do meu tio-avô. Ele era o único rico da família e tinha sempre o melhor automóvel, enquanto meu pai, primos e outros tios eram donos de combalidos Fuscas e Brasílias. O tio Idalécio era dono de Monzas, Santanas e Del Reys; nos seus luxuosos da Ford, sempre com o tal “reloginho” lá em cima com aquela iluminação que em alguns era verde e em outros, azul.
Depois de ter visto esse mágico relógio digital passei a olhar para dentro de todos os Del Rey em busca do tal marcador de horas. Notei que ele aparecia em quase todas as peças publicitárias do automóvel e era claro que ele era uma clara alusão à luxuosidade, e depois de um tempo chegou às versões mais completas e cobiçadas dos irmãos de marca, que também vinham com o tal relógio. Estavam lá no Corcel II (de 1985 e 1986), Belina Scala, Escort Ghia e Pampa.
Por causa do encanto pelo tal reloginho cheguei a comprar um para a minha Pampa 4×4. e durante o trato que dei no carro fiquei no dilema de instalar ou não na compacta picape de pretensões aventureiras. Optei por não colocar o relógio por uma questão de originalidade, já que ele era disponível como item de série apenas para as versões Ghia e GL de tração dianteira.
Talvez o gosto pelo relógio digital no centro do teto próximo ao retrovisor ou apenas a maluca ideia de ter mais um carro, fato é que fiquei tempos sem fim olhando Del Reys e mais Del Reys em sites de venda, regiões periféricas e em lojas de pequenas cidades no interior de São Paulo. Essa busca me levou até o amigo Miguel Arruda, colecionador de Bebedouro que tinha um Del Rey com uma história pitoresca. Para isso, já que nossa história está relacionada ao relógio, vamos voltar ao tempo.
Ele é o terceiro filho de um casamento, que antes dele teve duas filhas. A irmã mais velha do Miguel foi casada com um ex-presidente da Ford, em nosso país. Todo ano ele tinha direito de usar dois carros; em 1990 pegou um Del Rey e um Escort. Logo depois ele foi transferido para a Ford da Inglaterra, onde passaria dois anos. Ele devolveu o Escort e comprou o Del Rey, para usar depois de dois anos quando voltasse ao Brasil. O casal foi para a terra da rainha e o luxuoso sedã ficou por aqui, na casa da segunda irmã do Miguel. Mas passado o biênio a empresa levou o executivo para a Alemanha e o casal perdeu a perspectiva de voltar para cá.
O tempo correu no relógio e também no calendário. A segunda irmã de Miguel já estava com o Del Rey em sua garagem a pedido da irmã e do cunhado e propôs a compra do carro. O tempo passou, Miguel cresceu e mais uma vez o Del Rey mudou de mãos, passando a ser seu por muitos anos. Ele me contou essa história dizendo: “Compre ele, pense o tempo que quiser, mas compre.”
Pouco tempo depois veio uma oportunidade de trabalho extra, fazer a produção de veículos para uma produção de TV do Universal Channel, o seriado “171 – Negócio de Família”. Queriam alugar um Santana quatro-portas, que tivesse sido um carro de rico e que tivesse entrado em decadência. O carro precisava ter marcas do tempo, não ter película escura nos vidros e funcionar perfeitamente. Pensei e em pouco tempo sugeri: “Sei de um carro assim, não é um Santana, mas um Del Rey e está à venda por metade da verba que vocês têm para aluguel”.
Meia hora depois recebi uma ligação dizendo: “O diretor pediu para você comprar o carro e ele te paga, você fica com o carro e nós economizamos, o que acha?” Em segundos respondi “É pra já”. Liguei para o Miguel e fechamos negócio, dias depois a plataforma trouxe o carro. A primeira coisa que fiz foi acertar o relógio digital. Peguei o manual do proprietário para saber o que significava cada botão. Fiquei impressionado em saber que uma das funções desse relógio é a cronômetro e — até agora — não entendi quantos senhores distintos donos de um carro desses poderiam ter a necessidade de cronometrar o tempo entre sair do ponto A e chegar no ponto B.
Tio Idalécio foi ver o carro para matar saudade, falava da economia do seu modelo Ouro, que tinha o motor 1,6 CHT usado pela Ford que tinha como antecessor o projeto Renault. Em tom saudoso também lembrou da performance do modelo Ghia, já com o VW AP 1800 que equipou os Del Rey em seus dois últimos anos de produção. Herança dos tempos de Autolatina, a fusão da Volkswagen e Ford no Brasil e na Argentina. Sua a impressão foi tão boa que quando chegou a hora de trocar de carro escolheu como sucessor o Santana, por ter o mesmo motor.
O Del Rey participou das gravações e três meses depois voltou a garagem, mas o excesso de trabalho foi- me tomando tempo e acabei andando pouco com ele. Vê-lo quieto na garagem parado empoeirando me deixou chateado e o amigo Lucas Vane manifestou vontade de comprá-lo; o carro mudou de mãos. Pela segunda vez, um carro que chegou até mim seria destinado ao Lucas e pela segunda vez ele compraria um carro com histórico pertinente de pessoas que foram importantes na história da Ford no Brasil.
Três anos depois de o Lucas adquirir o Del Rey Executivo que foi do Eduardo de Souza Ramos, um ilustre revendedor e transformador de Fords o comprou e ele chegou à sua garagem para fazer companhia a um Del Rey Ghia de um ex-presidente da fabricante. De imediato o carro foi para os reparos e daqui a pouco, antes que se perceba, ele estará de volta às ruas. Pois é, como dizem. “o tempo dá jeito em tudo”.
PT