E foi nos idos de 1967 que a Ford assumiu o controle acionário da Willys-Overland do Brasil, herdando toda a sua estrutura organizacional, fábricas, produtos, projetos e o seu centro de pesquisas. Lembro-me com saudade quando, praticamente recém-formado em 1971, comecei a trabalhar na miscigenada Engenharia do Produto Ford-Willys, em seu Centro de Pesquisas (CPq), no distrito de Rudge Ramos em São Bernardo do Campo, SP. O prédio já impressionava pela arquitetura, com um de seus elementos apoiado em quatro colunas e cilindros de aço, dando a nítida impressão de estar flutuando e onde estava instalado o departamento de Estilo do Produto.
O conjunto abrigava oito andares, incluindo praticamente toda a organização, desde a estrutura de testes até a sala da diretoria. Na realidade o conjunto multifuncional era um facilitador, com todos os departamentos atuando juntos, criando inclusive um ambiente de amizade, quase como uma família.
Um detalhe interessante é que os jardins, muito bem cuidados por sinal, serviam de cobertura às chamadas “catacumbas”, onde estavam as bancadas de dinamômetros de motores, o laboratório físico, a construção de protótipos, a garagem dos veículos da diretoria e a equipe de manutenção do complexo.
Entre o primeiro e o quarto andares ficavam a engenharia de veículos e a oficina experimental, responsáveis pelo desenvolvimento do produto, integração dos sistemas, análises e prevenção de falhas (check and balance) e suporte mecânico especializado.
No quarto andar ficava a engenharia de chassis, de motores e de transmissão. No quinto, a engenharia de carroceria, de acabamento e elétrica, No sexto ficava toda a administração, liberação de desenhos e componentes para todas as engenharias. O sétimo abrigava todo o time de assuntos corporativos e governamentais, além do restaurante, e no oitavo andar ficava toda a diretoria, incluindo a presidência da companhia.
A área de caminhões ficava praticamente independente, na Fábrica do Ipiranga, com todo o time agregado, produto e a manufatura.
E haja produtos para desenvolver, Willys e Ford, todos saindo de uma mesma engenharia: Corcel , Maverick, Galaxie/Landau/LTD, Jeep, Rural, etc.
Era uma mistura da língua inglesa com a língua francesa devido à participação da Renault na Willys em seu “Projeto M”, que deu origem ao Ford Corcel. Eu até que me virava bem, pois estudei oito anos, ginásio e científico, no Liceu Pasteur, colégio de origem francesa.
E logo em 1972 o nome Ford-Willys deixou de existir, passando a se chamar Ford Brasil S.A., com todos os produtos ostentando o “Oval Ford”. O Centro de Pesquisas, o CPq já Ford, com toda a sua imponência, passou a ser admirado por aqueles que passavam pela Via Anchieta, servindo como imagem de propaganda da marca, vista cada vez mais, como empresa brasileira de tecnologia avançada.
O Estilo do Produto abrigava um time de artistas que traduziam os desenhos dos futuros projetos e/ou modificações do ano, em modelos de madeira, compósito de fibra de vidro, e argila. Existia um aparato que conseguia mecanicamente, gerar superfícies de um modelo em escala real 1:1 ( foto de abertura). Hoje em dia este aparato é óptico, traduzindo automaticamente todas as superfícies internas e externas do veiculo com base nos desenhos digitais em três dimensões.
Naquela época o Campo de Provas de Tatuí era apenas um sonho e todas as avaliações e testes veiculares eram feitos nas ruas, estradas e nos laboratórios, incluindo os fornecedores das peças e componentes.
Os testes de durabilidade eram conduzidos na divisa São Paulo-Mato Grosso em rota mista asfalto/terra, por um time especializado alocado na área. A comunicação com o Centro de Pesquisas era feita através rádio PY, de alta potência, com circuito valvulado. Imagine!
Tenho boas lembranças desta época em que o trabalho mantinha aquele caráter pessoal de especialização e dedicação plena. Sentíamos orgulho do que realizávamos, na maioria das vezes contando com poucos recursos, aflorando a criatividade.
Paralelo ao CPq estava o bairro Jardim São Caetano, na época em construção, onde fazíamos avaliações de dirigibilidade, modulação de freio, acelerador, embreagem, etc.
Na estrada velha de Santos, o Caminho do Mar, eram feitas as avaliações de desempenho e estabilidade direcional. Era comum descermos ao nível do mar, na rodovia SP-55 Pedro Taques, para avaliação e definição do melhor avanço de ignição do motor, para o máximo desempenho sem ocorrência de detonação espúria (“batida de pino”).
Algumas lembranças inusitadas do CPq
No sexto andar ficavam as máquinas heliográficas, copiadoras de desenhos, que geravam aquelas típicas folhas azuis. O revelador das cópias era o amoníaco e vira e mexe, principalmente durante a manutenção das máquinas, o seu cheiro forte se espalhava por todo o prédio, gerando reclamação geral. Os olhos chegavam a lacrimejar.
Lembro-me do chefe da oficina experimental, o Sr. Videira, que apostava com os engenheiros que mesmo sem torquímetro conseguia apertar adequadamente as fixações do cabeçote do Corcel, que eram muito críticas. E dito e feito, ele acertava sempre na mosca, 7 kgf.m, nem mais nem menos.
No laboratório físico havia um dispositivo que testava a integridade do volante do motor. O ferro fundido é sujeito a microfissuras durante o processo de fundição que podem fragilizar a peça, podendo gerar graves consequências como se desintegrando por centrifugação e se tornando uma verdadeira granada. O aparato constava de um motor de corrente contínua de grande potência, capaz de atingir 25.000 rpm, onde o volante era acoplado em seu eixo, tudo dentro de um fosso totalmente isolado do meio ambiente.
O teste aumentava gradativamente a rotação do motor e o volante deveria ficar integro até 25.000 rpm. Quando havia trincas indesejáveis o volante explodia dentro do fosso e as lascas se encravavam na estrutura interna de madeira. Este teste atendia também o controle de qualidade da manufatura, testando uma porcentagem dos lotes de volantes em produção.
Das janelas do CPq se avistava a marginal da Via Anchieta, e quando chovia, dependendo da intensidade e da espessura de lâmina de água na pista, alguns veículos aquaplanavam perigosamente. Graças aos nossos constantes alertas à Polícia Militar Rodoviária, muitos acidentes foram evitados e o trecho problemático da pista foi reformado, canalizando a água e resolvendo o problema definitivamente. Este fato mostra claramente que cidadania com responsabilidade e educação é o único caminho para o desenvolvimento do país.
Na época, era alta tecnologia a utilização dos aparelhos da Sun Electric que calibravam o avanço centrífugo e a vácuo do distribuidor, padrão de centelha das velas com auxílio de osciloscópio, etc. A oficina do CPq se orgulhava daqueles instrumentos. Hoje vemos que o progresso foi enorme em termos de gerenciamento do motor, com todo o processo digital muito mais efetivo e abrangente, em desempenho, economia de combustível e emissões de poluentes, do que o ultrapassado sistema analógico daqueles tempos.
A desconstrução do Centro de Pesquisas
Lembro-me como se fosse hoje, quando ouvíamos pela “Rádio Peão” que a Ford estava para ser vendida à Volkswagen. O pessoal achava engraçado o boato e ninguém acreditava nele, até que no dia 25 de novembro de 1986 soubemos do acordo de cooperação mútua firmado entre a Ford e a VW do Brasil, dando origem à Autolatina. Nosso pessoal da engenharia ficou perplexo com o fato e um clima de ansiedade tomou conta do ambiente. “Cultura alemã com cultura americana, será que vai dar certo?” falávamos. E a VW ficou majoritária com 51% das ações da Autolatina.
Incrédulos, fomos comunicados que toda a nossa engenharia iria para as instalações da VW em São Bernardo do Campo, na Ala 17, e o Centro de Pesquisas seria desativado. E dito e feito, toda a engenharia, incluindo a oficina experimental, a construção de protótipos, laboratórios e banco de provas de motores foi sendo transferida para a fábrica da VW.
No final, o valoroso prédio do Centro de Pesquisas Ford foi vendido e acabou virando uma universidade, a Uniban.
Menos mal que a cultura sobreviveu à história.
CM