É incrível que durante tanto tempo os carros terem câmbio sincronizado exceto a primeira marcha. A sincronização se popularizou já a partir da segunda metade dos anos 1930, mas a sincronização da primeira marcha demoraria, e muito. A primeira sem sincronização teve apelidos como “queixo duro” e “primeira seca”.
A aurora da primeira sincronizada situa-se no final dos anos 1950. A versão brasileira do Alfa Romeo 2000 sedã, de 1958, lançado e produzido no Brasil em 1960 sob nome FNM 2000 JK, além da grande novidade do câmbio de cinco marchas, tinha a primeira sincronizada.
Quando Heinz Nordhoff decidiu criar em 1949 a versão Export do Fusca (foto de abertura), sabiamente visando os mercados mundiais, passou a dotá-lo de câmbio sincronizado na 2ª, 3ª e 4ª, mas não na 1ª (inicialmente nenhuma marcha era sincronizada!). O Fusca passou a ser fabricado no Brasil em 1959, mas só em 1961 a primeira passou a ser sincronizada.
O mesmo com o Simca Chambord, de 1959, três marchas com primeira não sincronizada, passando a três em 1961. Idem os DKW-Vemag perua e depois sedã 4-portas, de 1956/1958, respectivamente, só em 1960 receberiam novo câmbio com as quatro marchas sincronizadas. Já os Renault fabricados pela Willys-Overland, inclusive os Interlagos, começaram e terminaram sem primeira sincronizada. Outros que nunca ganharam sincronização da primeira foram os utilitários Jeep CJ5 e o DKW-Vemag Candango 4.
O mais estranho é que não havia motivo para isso, pois o método de sincronização poderia ter sido aplicado à primeira sem nenhum problema — como acabou sendo.
Para o leitor ou leitora entender, quando a alavanca é movida para engatar uma marcha qualquer, na verdade não é uma engrenagem que se desloca em direção a outra para haver o engrenamento, mas uma luva de engate que liga uma das engrenagens do par, que gira solta, à respectiva árvore.
Essa luva nos câmbios dos carros de rua inclui um mecanismo de freio cônico para frear a engrenagem à que se engatará, que está girando em rotação diferente, por isso é chamada de luva sincrônica ou sincronizador, em que seu elemento principal é o anel sincronizador.
A grosso modo, apenas para exemplificar, o anel sincronizador é como a pastilha de um freio a disco, só que sua duração é muito maior.
Toda “marcha” é constituída de pelo menos um par de engrenagens e por isso os câmbios são chamados de engate permanente, todas as engrenagens estão sempre engatadas. Mas a primeira, quando não sincronizada, foge desse arranjo, uma delas (sempre um par, lembre-se) é levada de encontro à outra para haver o engrenamento.
Esse fato por si só impõe uma dificuldade ao engrenar a primeira estando o carro em movimento, como em segunda, já que as engrenagens do par de primeira estarão girando em rotações diferentes. Se tentado o engate, vem o som pavoroso, assustador, de um arranhado, resultado dos dentes das duas engrenagens rasparem fortemente uns contra os outros, sem lograrem se engrenar.
Tem jeito? Sim, mas requer certo conhecimento e habilidade. Nesse caso é o motorista que fará a sincronização por meio de uma operação chamada dupla-debreagem. Como é feita?
O câmbio está em segunda e o carro “pede” uma primeira:
- Aperta-se o pedal de embreagem (primeira debreada)
- Coloca-se a alavanca em ponto ponto-morto
- Solta-se o pedal de embreagem
- Dá-se um acelerada no motor
- Aperta-se o pedal de embreagem (segunda debreada)
- Engata-se a primeira
- Solta-se o pedal de embreagem
Parece longo, mas o processo é rápido, não chega a levar 3 segundos. De qualquer maneira, não é fácil para muitos motoristas (maioria, creio) e contribuiu para certa resistência do mercado aos Renault fabricados aqui.
A maior, se não única, dificuldade é o quanto acelerar o motor. O ouvido conta muito e com prática se consegue bom resultado. Em teoria, para exemplificar, se a relação de segunda é 2,23:1 e a de primeira, 3,30:1, esta é 3,30/2,23 = 1,48 ou 48% mais curta que a primeira. Se o motor estiver a 1.500 rpm, ele terá que ser acelerado para 1.500 x 1,48 = 2.220 rpm. O engatar da primeira será feito à perfeição. O motorista apenas fez o papel de sincronizador.
A sincronização chegou à ré também. Lembro-me do Mazda Miata que testei para a revista Oficina Mecânica em 1990, e logo depois, 1992, o Chevrolet Omega. Há mais, carros testados já em tempo de AE, que sempre aponto nos testes. As vantagens são acabar com o arranhar ao engatar ré rapidamente e alternar 1ª-ré para tirar o carro de uma situação difícil como um atoleiro ou neve, quando há.
Para terminar, duas curiosidades. Todos os câmbios de primeira não sincronizada tinham essa marcha com engrenagens de dentes retos justamente para permitir o engrenamento quando uma delas deslizasse em relação à outra. Mas no câmbio do DKW, que era ZF, os dentes retos da primeira foram mantidos – sem necessidade, mas foram.
A outra curiosidade foi o câmbio dos Fiat 147 e Uno até 1988, que tinha primeira sincronizada mas muitos achavam que não. Isso porque ao passar primeira com o veículo andando escutava-se um arranhada, que nada mais era construtiva — a luva sincrônica de 1ª-2ª era dentada externamente por fazer parte do arranjo da ré e, ao deslocar em direção à primeira, esbarrava engrenagem intermediária da ré. Não chegava a arranhar na acepção da palavra, mas escutava-se um nhec bem distinto.
Sem nenhuma dúvida, a sincronização da primeira marcha foi um notável avanço dos câmbios manuais.
BS