Tinha apenas 8 anos e meio de idade em 29 de janeiro de 1978, mas me lembro daquele dia, 40 anos atrás, como se fosse hoje. Era um domingo, e estávamos na casa de meu avô Albert em Caieiras, uma pequena cidade do interior que hoje é parte da região metropolitana de São Paulo. Diferente de hoje, onde até a seleção de futebol gera pouco interesse, toda corrida de Fórmula 1 era um evento para toda família, interessada em ver os resultados de nossos representantes brasileiros. Torcíamos com fervor.
E naquela época isto não era apenas torcer para um piloto. Emerson Fittipaldi, nosso bicampeão mundial (1972 e 1974), tinha abandonado a McLaren terminada a temporada de 1975, da qual se sagrara vice-campeão, no auge de sua carreira, para, pasme, assumir como piloto o carro de Fórmula 1 brasileiro, empreitada junto com seu irmão e sócio Wilson Jr. Ele mesmo seria o primeiro piloto, claro.
Naquele dia de janeiro 40 anos atrás vimos pela televisão então o que parecia impossível: um carro brasileiro (o Copersucar-Fittipaldi F5A), pilotado por um brasileiro (Emerson Fittipaldi), com chance real de vencer o GP do Brasil, estreando num recém-reformado e moderno autódromo em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.
Quando Emerson passou Mario Andretti para tomar dele a segunda posição, foi incrível. Gritávamos e pulávamos em pé, olhos fixados na telinha e com esperança de vitória palpável. Não ganhamos a corrida, mas aquele segundo lugar foi a glória. Naquele dia, tudo parecia possível, e nosso orgulho de ser brasileiro era imensurável. Parece que foi em outra vida, visto de hoje.
Orgulho pela pátria é algo tão démodé hoje em dia que dá até medo de confessar. Os motivos para tanto andam escassos, vamos ser claros, mesmo em tempos de copa do mundo. Mas quem já sentiu isso alguma vez em sua vida sabe como é bom. Um sentimento de pertencer a algo, de ter uma história em comum, e um futuro a ser construído coletivamente.
Imaginem então o que não sentiram os franceses, a partir do meio dos anos 60, a respeito da Matra. A grande empresa de engenharia aeronáutica se lançara então a uma campanha única no esporte-motor. Em um país que ainda sentia as humilhações de uma guerra onde nem conseguiu lutar, sofrendo por anos o jugo estrangeiro, e a condescendência dos aliados na “libertação” que se seguiu, os diretores da Matra resolveram mostrar que a França ainda era um país de engenheiros. Com o fim das grandes marcas do pré-guerra (Bugatti, Delage, Delahaye), o azul estava fora do pódio praticamente desde que o espírito francês fora quebrado por uma rápida e total invasão de seu país em 1940. Uma única vitória em Le Mans com um Talbot em 1950 era a última glória lembrada.
Com financiamento estatal e privado, a empresa se lançou em um mundo que não conhecia, e em poucos anos se sagrou campeã na F-1. Mas ainda melhor foi o seguinte: ganhou as 24 horas de Le Mans por três anos seguidos, 1972, 73 e 74, com carros pintados de azul, os últimos dois anos exclusivamente com pilotos franceses, e sempre com motores próprios, magníficos V-12 com um berro mais emocionante que uma orquestra tocando a Marselhesa nas comemorações da Queda da Bastilha.
E é a história dessa empresa, arraigada profundamente numa longa tradição de excelência de engenharia francesa e puro patriotismo, que me proponho a contar hoje. E é claro, para o desespero de quem gosta de texto pequeno, começando lá do comecinho, em uma pequena garagem de construção de veículos de tração animal, num subúrbio ao sudeste de Paris chamado Champigny-sur-Marne, mais de 100 anos atrás.
Deutsch conhece Bonnet
Na casa acima desta garagem, la Maison Deutsch, onde moravam os proprietários, nascia em 1911 Charles Deutsch. Pouco tempo depois a garagem começava um novo negócio: a construção de carrocerias para automóveis por encomenda. A infância de Charles se passaria na oficina do pai, aprendendo todas as habilidades manuais praticadas ali, moldando madeira e metal em cima dos chassis dos clientes, até que um belo automóvel com carroceria Deutsch surgisse. Desde os 14 anos, desenhava ele mesmo as carrocerias. Mas o jovem Charles era mais que um artesão; desde cedo se interessava por tudo que estivesse ligado ao automóvel, e lia livros e revistas sobre o assunto. Teoria da dinâmica do automóvel lhe fascinava completamente. O interesse acaba por levá-lo a estudar engenharia na famosa École Polythechnique de Paris.
Em 1929, porém, o pai de Charles vem a falecer. O jovem Deutsch tenta fazer o negócio continuar, mas com apenas 18 anos e cursando uma faculdade extremamente exigente, logo percebe que não seria possível. Em 1932, ele e a mãe vendem o negócio. Apenas o negócio, La Maison Deutsch é vendida, o prédio continuava deles, e ambos ainda residiam no andar superior. O novo dono da empresa locaria o espaço do primeiro andar.
O locatário era um jovem apenas um pouco mais velho que Charles chamado René Bonnet. Ambos eram doentes por automóveis, e, portanto, Deutsch e Bonnet rapidamente se tornaram amigos, apesar da história de vida totalmente diferente.
René Bonnet, ao contrário de seu novo amigo, não tinha tido uma vida fácil até ali. Aos 12 anos de idade, sua mãe, incapaz de alimentá-lo, solta o menino ao mundo, para se virar sozinho. Acaba na Marinha Francesa, mas logo sofre uma lesão na coluna que o deixa por anos em tratamento num sanatório, o corpo inteiro engessado. Mas a vida de múmia não era para Bonnet. Sentindo que aquilo não o ajudava, acaba por “se dar alta”, quebrando o gesso e fugindo, com grande dificuldade, dali. Ganha a vida fazendo xales e vendendo, habilidade aprendida quando criança com a mãe. Quando isso vira um negócio e traz dinheiro, vende tudo para se dedicar a sua paixão: o automóvel. Monta uma concessionária Citroën, que logo precisa de mais espaço; isso por fim o leva até Deutsch.
Enquanto o negócio prospera, Bonnet se dedica a sua nova paixão: as corridas. Participa de várias provas amadoras com sucesso, usando seus Citroën de uso, preparados por ele mesmo. Em 1936, parece o que seria sua grande chance: é convidado pela Amilcar a participar do GP da França para carros de turismo, dirigindo um dos três Amilcar Pégase da equipe de fábrica. No dia da prova, porém, aparecem apenas dois carros de corrida, e René Bonnet assiste a corrida da arquibancada, desolado e com uniforme de piloto. Seu amigo Deutsch, que o levara até ali, a seu lado.
Mas vendo o desempenho pífio dos Pégase na prova, Deutsch começa a pensar. Sabia que, usando os princípios aerodinâmicos modernos que andava estudando, poderia facilmente fazer uma carroceria que faria um carro como o Amilcar Pégase bem mais veloz. Na verdade, pensando bem, nem precisava do motor Delahaye de 2,5 litros desse carro; com um mais comum e barato Citroën de 1,5 litro poderia facilmente ultrapassar a velocidade final do Pégase. Resolve então falar com o amigo tristonho.
“René, sabe duma coisa? Você não precisa da Amilcar. Posso desenhar uma carroceria para um Traction Avant como o seu, que o faria bem mais veloz que eles. Mesmo com o motor original.” Nascia ali, naquela arquibancada, uma nova marca francesa: A DB (Deutsch & Bonnet).
Os dois amigos criaram, a partir dali, vários carros de competição baseados em Citroën Traction Avant, contando portanto com tração dianteira. Os carros, numerados de DB1 até DB11 antes de David Brown tornar a sigla famosa na Aston-Martin, tiveram sucesso variado, até que a Segunda Guerra Mundial e a ocupação da França acabam com as competições por um tempo.
Interessante notar que os acordos que formaram a marca DB foram sempre informais. Charles Deutsch se formara engenheiro em 1935, e começara a trabalhar em um respeitável cargo no governo francês, no departamento de pontes e rodovias, o que o impedia teoricamente de trabalhar em outro lugar. Seu trabalho, portanto, era, no frigir dos ovos, amador. Não que a DB fosse fonte de muito dinheiro; era certamente um trabalho muito pouco remunerado, mas algo que ambos sentiam que tinham que fazer de qualquer forma.
Para financiar os carros de corrida, a DB tenta vender carros ao público, para uso tanto em competições quanto nas ruas, mas a política da Citroën de não vender componentes para terceiros impede o bom andamento disso. A solução aparece com um projeto que Deutsch realizara para uma associação da qual fazia parte (AGACI – Association Générale Automobile des Coureurs Indépendants, associação de corredores independentes): um monoposto de competição para a Fórmula Júnior, com motor de até 500 cm³. Deutsch faz um carro usando o novo bicilindro contraposto de Panhard et Levassor, lançado em 1948 no Panhard Dyna X. Deslocando originalmente 610 cm³, facilmente podia ser reduzido para 500 cm³. Além disso era uma pequena joia: as bielas eram em uma só peça, e o virabrequim era roletado. A câmara de combustão era hemisférica, válvulas opostas com pequenas barras de torção como molas. Arrefecido a ar, era um motor levíssimo, girador, suave e potente para a cilindrada. Era na verdade muito eficiente, com economia de combustível e velocidade ímpares para a categoria.
Esse projeto, que fora publicado na revista do clube, acaba por se tornar o primeiro DB com motor Panhard; a pequena empresa construiu uma dezena deles para membros, por uma quantia razoável. Ato contínuo, Deutsch e Bonnet procuram a veneranda empresa para garantir um fluxo contínuo de motores, tanto para competições quanto para veículos de rua. Paul Panhard, sentindo uma forma de promover a empresa de sua família, fecha um acordo verbal vantajoso para a DB: Panhard forneceria peças a preço de custo, mão de obra da fábrica emprestada, publicidade conjunta, garantias a fornecedores. Além disso, para cada prêmio que a DB ganhasse em corridas, a Panhard dobraria o valor. Nada escrito, mas um acordo que foi respeitado a risca, até o fim. Outros tempos realmente…
DB se tornou então um grande vencedor nas categorias de baixa cilindrada. Principalmente em Le Mans, onde frequentemente ganhava a categoria até 750 cm³, e o famoso “Índice de Performance”, que levava em conta o consumo de combustível, e que dava um prêmio em dinheiro próximo ao do vencedor geral. A produção de carros de rua seguia firme também, os pequenos cupês e roadsters de tração dianteira e até 800 cm³ frequentemente capazes de chegar a mais de 150 km/h, algo incrível então.
Mas no ano de 1961, tudo começa a ruir. Charles Deutsch, formalmente ainda funcionário do estado e metido como sempre em pesquisas avançadas, diminuía sua atividade na DB. Bonnet, que não tinha outra fonte de renda, acaba por pegar as rédeas do negócio. Deutsch inicia uma pesquisa para descrever matematicamente o movimento completo do automóvel, um hercúleo esforço matemático que abriria as portas de um futuro que vivemos hoje, onde tudo pode ser simulado matematicamente (com ajuda de computadores, claro) antes de um carro sequer ser montado. Ao se aposentar do serviço público em 1966, Deutsch abriria uma consultoria para evoluir este estudo, que existe até hoje como SERA CD. Mostrando como era um engenheiro de vulto no meio, em 1971 se tornaria presidente da Société des Ingénieurs de l’Automobile, e em 1975, presidente da FISITA (Fédération Internationale des Sociétés d’Ingénieurs des Techniques de l’Automobile) , órgão internacional que engloba todas as associações de engenheiros automobilísticos do mundo.
Mas no início dos anos 60, René Bonnet queria somente continuar a DB. Sabendo que a Panhard passava por dificuldades (viria a fechar as portas em 1967, vendida à Citroën), queria abandoná-la em favor da Renault, que se mostrava ávida a usar a pequena empresa para ganhar Le Mans nas categorias em que ela dominava. Sabendo que Deutsch nunca quebraria o acordo “fio do bigode” que tinham com a Panhard, se moveu resoluto e sem dó: mandou uma carta ao velho parceiro dissolvendo a associação, e firmou, à sua revelia, um contrato para correr pela Renault em 1962. Devido à natureza única de seu esquema com o amigo, Deutsch não podia fazer nada: as instalações, carros, máquinas e tudo mais estava no nome de Bonnet.
Paul Panhard ficou fulo da vida, e contratou Deutsch, por meio de um acordo especial com o governo, para que ele produzisse um carro para Panhard, que evitasse uma vitória de Bonnet e Renault em 1962. Assim foi feito, deixando nenhuma dúvida de quem era o cérebro técnico da DB. Ato contínuo, a DB desaparece como marca, para se tornar a Automobiles René Bonnet.
Bonnet faz então o que sempre sonhou: uma berlinette esportiva para ser vendida ao público, que poderia ser usada em competições, com mecânica Renault. Como a Alpine, mas com uma diferença: ao invés dos Alpine de motor traseiro, o Bonnet Djet de 1963 é o primeiro carro esporte de motor central-traseiro colocado à venda. Sua estrutura era tubular em aço, mas a carroceria, como já tinha feito nos DB–Panhard, era em plástico reforçado com fibra de vidro.
A MATRA
Voltando um pouco no tempo por um momento, enquanto vemos Deutsch e Bonnet colocar em descanso seus planos para a DB, por causa da guerra, ali perto em Paris Marcel Chassagny, um empresário e engenheiro de 40 anos, luta para manter sua pequena empresa de componentes e projetos aeronáuticos, a C.A.P.R.A., solvente e operando com autorização das forças de ocupação alemãs. Não se sabe muito bem por que, mas em 1941 muda o nome da empresa para Société Générale de Mécanique Aviation-Traction. O acrônimo MATRA seria o nome pela qual a empresa se tornaria conhecida.
Logo ao fim da guerra, Chassagny resolve investir em uma área aeroespacial ainda sem grandes fabricantes na França: a de foguetes. É um estrondoso sucesso. Basicamente sistemas de defesa terra-ar, mas com o tempo, todos os tipos de foguetes bélicos foram desenvolvidos pela empresa, que cresce exponencialmente durante os anos 50. Nos anos 60, sua engenharia é peça-chave no programa espacial francês, e é a Matra que projeta o Asterix-1, primeiro satélite francês. A empresa se diversifica em mais ramos da engenharia, de materiais plásticos a telecomunicações, passando por equipamentos ferroviários e aviões, este último via o investimento de Sylvain Floriat, dono da Brueguet, na empresa de Chassagny. Nos anos 60 tem mais de 3.000 funcionários e um faturamento invejável.
Em 1962, a divisão da empresa que produzia peças em plástico, a Générale d’Aplications Plastiques, sediada na cidade de Romorantin, a 120 quilômetros ao sul de Paris, recebe um pedido de fornecimento da carroceria do Bonnet Djet, novo carro de motor central da pequena empresa de René Bonnet.
Bonnet, porém, não consegue vender carros o suficiente para se manter solvente, e sua dívida com os fornecedores aumenta exponencialmente, e rapidamente. A Matra acaba como seu maior credor e em 1964, toma posse da empresa. Um conglomerado como a Matra poderia facilmente vender os ativos da pequena empresa para pagar o que lhe era devido, e simplesmente fechá-la. Mas Marcel Chassagny conhecia a DB e sua experiência em Le Mans, e tinha um objetivo bem diferente na cabeça. Um objetivo patriótico, mas também empresarial. Levar o nome da Matra à glória e ao conhecimento do mundo lá fora. E com ela, também, de quebra, levar a mesma glória para la belle France!
Matra-Sports, vitória na F-1 e em Le Mans
Chassigny coloca a operação de automóveis, incorporada a 29 de setembro de 1964, com o nome de Matra-Sports S.A., a cargo de Jean-Luc Lagardère, o jovem diretor da empresa que no futuro substituiria Chassagny no comando do conglomerado. A ordem do dia era clara, desde o início: começar um programa de competições sério em carros de fórmula e esporte. Além disso desenvolver um substituto para o Djet, o carro que seria o primeiro Matra em sua totalidade.
O primeiro carro de competições seria o MS1, um monoposto de Fórmula 3, desenhado por um time chefiado pelo engenheiro da DB, Jacques Hubert. Movido por motores Ford, o pequeno carro monobloco da Matra foi um sucesso, e selou o destino da marca em competições.
Philipe Chassigny (filho de Marcel) disse: “No início não sabíamos nada. Mas Lagardère foi adiante de qualquer forma, mesmo com todo mundo dizendo que éramos loucos. Mas ele fez tudo gastando relativamente pouco dinheiro: Matra hoje é um nome conhecido mundo afora, e fazer o mesmo por meio de propaganda iria gastar algo como sete por cento de nosso faturamento anual, por alguns anos. Gastamos bem menos que isso. ”
Em Le Mans 1966, a empresa decide colocar objetivos ainda maiores: vitória na Fórmula 1 e Le Mans. Para tal, sabia que mais que apenas chassis fossem desenvolvidos, e começa a desenvolver o primeiro Matra V-12, para o novo regulamento da F-1 que determinava um máximo de 3 litros, aspiração atmosférica. Lagardère conseguia dinheiro para isso de duas formas: primeiro, a recém-formada estatal petrolífera Elf seria o patrocinador da equipe, uma forma muito boa de tornar a marca conhecida mundialmente. E em segundo lugar, um empréstimo governamental de 1,2 milhão de dólares. O empréstimo era inteligente: tinha como objetivo a vitória de carros franceses em competição internacional, então deveria ser pago apenas se algum uso industrial viesse dos equipamentos desenvolvidos. Na verdade, é por causa disso que o planejado carro de rua com uma versão de 4 litros do V-12 de competição nunca apareceu: se vendessem carros de rua com o motor desenvolvido com o dinheiro dos contribuintes, este deveria ser ressarcido.
A intenção aqui, por falta de espaço, não é detalhar a épica história da Matra em competições. Mas vale resumir uma campanha que, por qualquer prisma que se veja, e por mais improvável que fosse para uma empresa que se dedicava ao automóvel a um par de anos, foi extremamente bem-sucedida. Como era o objetivo, mostrou o quanto a engenharia francesa pode ser, em cenários de competições de alto nível, sem sombra de dúvida, para todo mundo ver. E tornou as marcas Matra e Elf (e depois os cigarros Gitanes), bem como o azul-França, conhecidos mundialmente.
Na Fórmula 1, foi campeã de construtores em 1969. O fez com uma estratégia inteligente, competindo com um carro seu, com o V-12 Matra, e outro, cedido a Ken Tyrrell e seu piloto Jack Stewart, usando o Ford Cosworth DFV V-8. O V-12 acaba por não ser tão competitivo na F-1, mas isso não é um demérito por si: teve o azar de competir com o motor de maior sucesso da história da categoria, e talvez o mais incrível motor de competição da história: o Ford Cosworth DFV V-8 surgido em 1967.
Mas foi em LeMans que os incrivelmente vocais V-12 Matra tiveram sucesso mais completo. Depois de alguns anos competindo acirradamente com seus carros de 3 litros, enquanto Ford, Porsche e Ferrari usavam enormes motores de mais de 5 litros, a partir de 1972 se viu uma dominação quase completa dos roadsters M670. O urro agudo de seus V-12 — dizia-se ser uma oitava musical acima de todos os outros —fazia os franceses delirarem nas arquibancadas do famoso circuito. A Matra venceu a prova em 1972, 1973 e 1974, nos dois últimos anos fazendo a incrível combinação carro-motor-piloto franceses. Glória pura e não destilada.
Os carros de rua
Mas a empresa não para por aí. A história da produção de automóveis pela Matra é tão rica e importante quanto suas vitórias épicas em Le Mans, e talvez mais marcante que elas na forma com que sempre representou a forma única e original com que os franceses encaram seus automóveis. E a melhor forma de falar deles, e chegar ao fim de nossa história, é falar de cada um dos oito modelos que a empresa criou em sua história, um a um.
• Matra Djet (1964-1967)
Como sabemos, este pequeno cupê começou antes da Matra, como o Bonnet Djet (Bonnet o colocou o D antes do Jet no nome porque achava que só assim os franceses pronunciariam o nome corretamente) em 1963, mas logo a Matra o aprimorou e melhorou como René Bonnet nunca seria capaz de fazer. Logo em 1964, Lagardère formou um departamento de engenharia de verdade para os carros de rua, algo nunca possível na pequena DB. Também levou a produção para Romorantin, onde antes produzia somente a carroceria para Bonnet. Romorantin é hoje um lugar famoso entre entusiastas franceses, o lar definitivo da marca que tanta glória trouxe ao país.
A carroceria era de plástico reforçado com fibra de vidro, e o motor, em posição central-traseira, longitudinal, era Renault 8, com câmbio da van Estafette. Inicialmente 1,1 litro e 65 cv (para máxima de 165 km/h), evoluiu até motores Gordini com câmara hemisférica e 100 cv, para mais de 200 km/h. O carrinho pesava apenas 610 kg, e era extremamente inovador, original, e parte da tradição francesa de baixo peso como caminho para desempenho e baixo consumo de combustível incríveis.
• Matra M530 (1967-1973)
O primeiro carro totalmente da Matra foi desenvolvido entre 1965 e 1966, por engenheiros aeronáuticos da Matra, chefiados por Phillipe Guédon, ex-Simca. Como não podia deixar de ser, o carro era extremamente avant-garde: motor central-traseiro longitudinal (Ford Taunus V-4, 1,7 litro e 78 cv), carroceria em plástico reforçado com fibra de vidro, teto targa e faróis escamoteáveis. Era um 2+2, e o vidro traseiro funcionava como uma porta “hatchback”, além de poder ser desmontada e deixada em casa, fazendo com o teto targa um doido conversível/bugue/carro esporte. Só os franceses mesmo…
O desenho da carroceria permanece controverso, mas se olharmos pelo prisma de 1967, ano de seu lançamento, extremamente futurista.
Logo Lagardère percebe que além de se projetar e construir carros, é necessário vendê-los também. A Matra carecia de rede de concessionários e distribuidores. Olhando o modelo de extremo sucesso que a Alpine tinha com a Renault (os Alpine eram vendidos e consertados nas concessionárias Renault), Lagardère decide que a Matra precisa de um parceiro.
Em 1969, um contrato é firmado com a Simca, então parte do conglomerado Chrysler Europa, para que os Matras fossem aceitos e vendidos nas concessionárias Simca. Ao mesmo tempo, os carros de competição passariam a ser chamados Matra-Simca, para que a união fosse propagandeada.
Mesmo assim, as vendas do M530 não decolaram. De qualquer forma, já começara um novo projeto na Matra, que usaria dali para frente, claro, componentes mecânicos da Simca.
• Matra-Simca Bagheera (1973-1980)
Lançado em 1973 (antes da prova 24 Horas de Le Mans, que a empresa venceria), o próximo Matra era de novo algo original, mas a ajuda da Chrysler o tornou um pacote muito menos esquisito, e o fez relativo sucesso comercial. Mantinham-se as tradições da marca: carro pequeno, motor central-traseiro, carroceria em plástico, baixo peso, alta esportividade.
Mas a carroceria, desenhada com ajuda do estúdio da Simca, era bem mais bonita e contemporânea. O motor de quatro cilindros e válvulas no cabeçote da Simca, com 1,3 litro e 84 cv, estava agora em posição transversal, ocupando bem menos espaço. O nome, originalmente M550 (como o 530 de antes, nomes de mísseis Matra) também foi mudado por sugestão do marketing da Chrysler: Bagheera, a famosa pantera negra do livro de Rudyard Kipling.
Diferente da tradição também era o interior: em um desenho de extrema originalidade que dispensava o tradicional console central, o carro tinha três lugares em uma fileira única! E espaço generoso para malas atrás, depois do compacto motor.
A partir de 1975, um novo motor de 1,5 litro e 90 cv era oferecido no Bagheera S. Em 1978, a Chrysler Europa fecha as portas, e é comprada pelo Grupo PSA. Em 1979, os Simca são renomeados Talbot, e o Bagheera, em seu último ano, se torna um Talbot-Matra.
• Bagheera U8 (1973-1974)
Mas antes muito antes disso, ao lançamento do carro, os engenheiros da Matra, sabendo do potencial do chassis do Bagheera, resolveram tentar uma forma de aumentar o desempenho, sem criar nada novo e sem muito investimento. O resultado foi, como sempre na Matra, fora da casinha.
Juntaram dois motores do Bagheera, completos, em um ângulo de 82°, por meio de um cárter comum que incorporava suporte para uma corrente tipo Morse, que juntava os dois virabrequins. Dois motores Simca 1,3-litro completos, juntados por suas partes baixas. Com dois Weber duplos DCNF 36 por motor, o resultante “U8” (na verdade era um V, mas a configuração é mais comum em esquema U, por isso foi assim chamado) deslocava exatos 2588 cm³ e produzia 170 cv.
O entre-eixos teve que ser aumentado em 230 mm para usar câmbio Porsche em posição longitudinal e motor idem, além de modificações menores em suspensão, freios, rodas e pneus. O carro é anunciado ao fim de 1973, com produção programada para 1974. Os números de desempenho eram de salivar: 0-100 km/h em menos de 7 segundos e mais de 240 km/h de final.
Mas a Chrysler, sofrendo em dois continentes com a então recente crise do petróleo, veta a versão “beberrona” do Bagheera. Apenas três protótipos são construídos.
• Matra-Simca Rancho (1977-1984)
Em 1977 aparece uma segunda linha de veículos Matra-Simca produzida em Romorantin: o Rancho. Outra ideia original da equipe da Matra, o Rancho era baseado nas versões picape e furgão do Simca 1100 (muito parecidas com as nossas Fiorino). Ao lançamento muita gente riu da aparência pseudo-offroad do Rancho, mas se provou um imediato sucesso de vendas. Não o suficiente para salvar a Chrysler Europa da falência, claro; como o Bagheera, o Rancho passava a se chamar Talbot-Matra Rancho em 1979, já debaixo da PSA.
Foi produzido até 1984, sempre a preço alto porque a demanda era maior do que a pequena fábrica podia atender, um sucesso total. É um precursor da moda atual de SUVs, dos off-road só em aparência, mas também impulsiona uma tradição francesa que particularmente adoro: a de transformar furgões de entrega em carros familiares baratos e incrivelmente versáteis. Donos de Kangoos, Partners e Berlingos agradecem até hoje.
• Talbot-Matra Murena (1980-1983)
O Murena é uma evolução direta do Bagheera, mas um projeto totalmente novo, o primeiro em que os engenheiros da Matra puderam saquear as prateleiras de peças não somente da defunta Simca, agora Talbot, mas também de outras marcas da PSA como a Citroën e a Peugeot.
A construção básica é puro Bagheera: motor central-traseiro transversal, três lugares, carroceria em plástico colada a um chassi em aço. A diferença é que agora havia motor mais potente (uma reclamação no Bagheera), o banco central do terceiro ocupante era individual e rebatível, a carroceria tinha novo desenho e o chassi de aço era totalmente galvanizado, para resolver o problema crônico de corrosão de seu antecessor. A carroceria, ainda em plástico, passava a ser moldada pelo moderno processo de SMC, em prensas, para uma acuidade dimensional inédita.
O motor básico ainda era o mesmo 1,5-litro, mas como opção podia vir com o 2,2-litros desenvolvido pela Simca para o carro lançado em 1979 como Talbot Tagora. Uma unidade de comando no cabeçote moderna, entregava 115 cv com carburador duplo, ou, no Murena S, com dois Solex duplos horizontais, 140 cv.
• Renault Espace (1984-2002)
O desenho original que conhecemos hoje como o primeiro Renault Espace nasceu nos estúdios da Chrysler Europa durante o início dos anos 70. O designer grego Antonis Volantis, que trabalhara na Chrysler e que era o principal desenhista do Murena, já na Talbot/PSA, ao saber que a Matra procurava um substituto para o Rancho, vendeu a ideia para a empresa.
Desenvolvido como um Talbot por Volantis e a Matra, o projeto não saiu do lugar. A diretoria da PSA não acreditou que aquele caixote pudesse ser um sucesso, e não o aprovou.
Mas chega 1983, e a PSA, interessada em fechar a incurável Talbot, decide acabar com os acordos com a Matra. A empresa de Romorantin acaba por se filiar à Renault, e oferecer à ela o Espace. O carro foi lançado já em 1984, apenas com as modificações necessárias para a adaptação da mecânica Renault 21 em substituição ao Talbot Solara. Até o estilo era totalmente Talbot, inalterado. A construção era a tradicional Matra: subestrutura em aço estampado, painéis externos em resina poliéster com fibra de vidro moldada em SMC.
O Espace foi um sucesso imediato, e junto com a minivan Chrysler americana (de mesma origem, mas de execução bem diferente) criou uma nova mania mundial de minivans. Mais duas gerações (tipo 2 1991-1997, tipo 3 1997-2002) foram criadas e fabricadas pela Matra em Romorantin, com o mesmo esquema subestrutura em aço- exterior em SMC, até que em 2002 a Renault toma para si o projeto e produção do modelo. Hoje o Espace é apenas mais um Renault, todo em aço, e não mais um Matra.
• Renault Avantime (2002-2003)
Para que a Matra não ficasse sem produção, a Renault oferece uma ideia de um veículo de nicho concebido por seu famoso designer Patrick LeQuement: o Avantime.
Basicamente um Espace cupê, a ideia é totalmente louca e desvairada, mas interessantíssima também. Bem a praia da Matra, convenhamos. Com um potente V-6, teto de vidro, com abertura elétrica, quando isso ainda não era comum, e duas portas sem coluna feito um cupê americano dos anos ’50, realmente era um carro interessante e diferente. Mas foi um total fracasso de vendas, e selou o fim da Matra como fabricante de automóveis.
O fim
Ao fim de 2003, a área de engenharia, protótipo e testes da Matra é vendida para a Pininfarina. Em 2005 a fábrica em Romorantin e a marca são vendidos a um consórcio que hoje, ironia das ironias, produz e vende bicicletas elétricas Matra. Que distância dos exóticos V-12 que marejavam os olhos com a evaporação da mais pura e volátil gasolina de competição Elf, e ensurdeciam os espectadores de Le Mans com seu agudo berro.
René Bonnet se tornou concessionário VW em 1965, e nunca mais fez carros, falecendo em um acidente aos 78 anos, em 1983. Charles Deutsch, como já dissemos, publicou vários livros únicos de teoria matemática e física que são a base de tudo que se simula hoje em computadores a respeito da dinâmica automobilística, sendo especialmente conhecido pela suas teorias em aerodinâmica. Permanece um dos maiores e mais importantes engenheiros automobilísticos da história mundial, mesmo que, pela metade de sua vida, tenha tratado a ocupação como um hobby. Faleceu em 1980, aos 69 anos.
Marcel Chassagny , o fundador da Matra, se aposenta em 1977, sua Matra sendo um dos blocos mestre do do consórcio europeu que hoje produz aviões Airbus. Jean-Luc Lagardère se casou com uma modelo brasileira, e fundou um império de mídia nos anos 80, o Grupo Lagardère, que ainda é hoje um dos maiores do mundo. É dono, por exemplo, da Road&Track e da Car and Driver. Veio a falecer em 2003, um multimilionário.
A Matra pode ter desaparecido num irrelevante mundo de bicicletas elétricas, mas seu nome ainda é lembrado até hoje. Uma imensa tradição de excelência em engenharia que ainda hoje tem ecos tanto em competições quanto nas ruas. Algo realmente raro, e lembrado com emoção por todo francês que, em Le Mans nos anos 70, quase ficou surdo ao ouvir repetidas vezes o berro dos M670 a caminho da glória e do pódio, e da Marselhesa sendo tocada enquanto a bandeira subia. A Matra pode estar morta, mas não esquecida.
Como diz o famoso poema de Thomas Babington Macaulay:
“To every man upon this earth
Death cometh soon or late.
And how can man die better
Than facing fearful odds,
For the ashes of his fathers,
And the temples of his gods”
MAO
Para saber mais (fontes):
“DB stands for Deutsch-Bonnet” – Griffith Borgeson, Automobile Quarterly vol XVII, nr 1 (1980)
“Matra – The most improbable champion” – Karl Ludvigsen, Automobile Quarterly vol XII nr1 (1974)
Verbetes Matra, DB, Deutsch, Bonnet – Beulieu Encyclopedia of the Automobile