Este é seguramente um dos fatos mais extraordinários da indústria automobilística, o de uma marca americana produzir um carro francês, e isso no Brasil.
Tudo se originou do interesse da Willys-Overland do Brasil em entrar no mercado de automóveis, ela que até então só tinha o Jeep e a Rural. Ao mesmo tempo em que procurava trazer dos EUA o sedã Aero, a fabricante viu o mercado de carros pequenos crescer com a presença cada vez maior do Volkswagen e que certamente aumentaria quando este passasse a ser produzido na fábrica em construção (o Fusca era importado e começo a ser produzido aqui no começo de 1959).
A Renault tinha participação de 12% do capital da Willys-Overland daqui e não tardou a haver um acordo para produzir no Brasil o Dauphine, novo modelo da Renault lançado em 1957 na Europa. Para isso a fábrica Willys em São Bernardo do Campo, no bairro do Taboão, estava no final de construção, tendo sido inaugurada em 1958 e começado a produzir o Jeep e a Rural, antes importados em regime CKD (desmontados).
Na nova fábrica a produção do Dauphine começou no ano seguinte e linha cresceu em 1962, com o Gordini. Paralelamente, a Renault tinha interesse em maior volume de produção do carro esporte Alpine A108, que utilizava toda a mecânica Renault (primeiro o 4CV, depois o Dauphine), para se somar à produção da independente Alpine de Jean Rédélé e obter a homologação internacional como carro de turismo de dois lugares, possível desde que a cilindrada não ultrapassasse 1.000 cm³, conforme o regulamento de homologação da Federação Internacional do Automóvel (FIA) da época.
Assim foi que o Alpine A108, rebatizado Willys Interlagos, passou a ser produzido aqui a partir do final de 1961 em três versões, o cupê, o conversível e a berlineta com a base mecânica do Gordini. A grande novidade do Interlagos era a carroceria em compósito de plástico reforçado com fibra de vidro, inédita no Brasil.
Apesar de o Aero (Aero-Willys) já estar sendo produzido na fábrica do Taboão desde 1960, a Willys pensava num carro médio moderno (o Aero-Willys era “grande” na época), que alcançasse maior volume de vendas.
Em meados dos anos 60 a Willys se interessou por um projeto de carro médio da Renault que se encontrava em andamento, o Renault R-12, visto como ideal para o nosso mercado, e tratou de fazer um acordo com a fabricante francesa para produzi-lo aqui.
A partir daí, a marca americana passou a acompanhar o desenvolvimento do projeto francês, visando seu lançamento para o mercado nacional. O desenvolvimento desse novo carro, aqui chamado de Projeto M (de médio), começou a ocorrer em paralelo entre a Renault francesa e a engenharia da Willys brasileira. Os dois carros foram nascendo simultaneamente na Europa e na América do Sul.
Uma particularidade importante desse projeto francês desenvolvido também no Brasil é que a Renault francesa permitiu que a marca americana aplicasse algumas particularidades de design na versão brasileira. Mecanicamente o Renault R-12 e o projeto M da Willys eram exatamente iguais — cara de um, focinho do outro, como se diz.
O motor 1300 de 68 cv (potência bruta, líquida era 60 cv) era novo, da nova família Cléon-Fonte, de mesma arquitetura básica do motor de 845 cm³ do Gordini, mas com a importante diferença de ter o virabrequim apoiado em cinco mais e não mais em três, com notável ganho em robustez e por isso ser possível extrair mais potência.
O câmbio, completamente novo, tinha 4 marchas sincronizadas e saídas para semiárvores para conferir ao Projeto M uma de suas principais características: a tração dianteira. As suspensões, com molas helicoidais, eram independente por triângulos superpostos na frente e por eixo rígido atrás, com freios a disco de série na dianteira. A estrutura, como no Dauphine, era monobloco em aço.
O secreto Projeto M da Willys tinha lançamento previsto quase um ano antes do R-12 na França. A engenharia brasileira da Willys trabalhou rápido, pois a estratégia de lançamento do novo carro era sua apresentação no final de 1968, no Salão do Automóvel. Por questões estratégicas da Renault francesa, a apresentação do R-12 ficou para o meio do ano seguinte.
A grande surpresa
No início de 1968, a grande surpresa: a Ford anunciou que estava assumindo o controle total da Willys-Overland do Brasil, passando portanto a comandar as operações da marca aqui. De uma hora para outra, o Projeto M mudava de mãos da Willys-Overland do Brasil para a Ford brasileira, que na época fabricava desde 1967, como carro, apenas o Galaxie 500. E o Projeto M que já estava pronto e a pouco tempo do seu lançamento, não tinha como ser sustado.
A Ford, naquele mesmo ano, optou por paralisar a produção do Gordini IV e tocar para frente o excelente Projeto M. A Ford deu continuidade à parceria com a Renault francesa e lançou aqui o carro que aqui fora praticamente desenvolvido, testado e aprovado pela Willys.
Lançado no final de 1968, o nosso Renault R-12 foi batizado como Ford Corcel. Com sua suspensão de curso longo macia e confortável, motor 1,3-L de 60 cv, muita economia de combustível pelo porte do carro que, inicialmente, era vendido somente na versão 4 portas e que, em 1969, ganhou a versão cupê, de duas portas. Tudo isso previsto antecipadamente no programa desenvolvido ainda pela Willys e que a Ford herdou quando adquiriu o controle acionário da marca do Jeep.
É interessante ressaltar que o Renault R-12 foi apresentado ao mercado europeu apenas no segundo semestre de 1969. Ambos, tanto a versão francesa quanto a brasileira, foram sucesso de vendas. A brasileira mostrou o Corcel como carro mais vendido pela Ford no começo dos anos 70.
Foi assim que a fabricante do oval azul acabou produzindo um Renault no Brasil. Um Renault que virou Ford.
E o Renault R-12 foi um sucesso mundial, sendo produzido na França, Argentina, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, México, Romênia, Espanha, Turquia, Venezuela, Bélgica e Nova Zelândia.
O Corcel teve, a partir do final de 1977, uma versão batizada de Corcel II, basicamente a mesma mecânica do primeiro Corcel, mas que nessa época já tinha o motor com cilindrada aumentada para 1,4 litro (1.372 cm³), para ganhar mais torque melhorando a arrancada e retomada de velocidade; e em meados dos anos 70 esse mesmo motor ganhou uma versão 1,6-litro (1.555 cm³), essa um sucesso que perdurou por décadas.
Em 1981, foi lançado o Del Rey, uma versão mais rica e sofisticada do Corcel, que utilizava a mesma mecânica básica do Corcel/Renault R-12, que aqui foi utilizada pela Ford até o final dos anos 80. Vale ressaltar que o Renault R-12 teve sua produção encerrada em 1980, mas em outras partes do mundo ela seguiu adiante. A romena Dacia, por exemplo, fundada em 1966, começou a produzir modelos Renault sob licença e produziu o R-12, batizado de Dacia 1310, até 2004.
Uma consagração da engenharia da Renault, que desenvolveu uma mecânica impecável, que perdurou por décadas no mercado mundial.
DM