A maior briga hoje na disputa tecnológica da Fórmula 1, contra os elevados custos da categoria, é a aerodinâmica. Desenvolver um bom motor ou uma boa suspensão são apenas parte do conjunto que faz um carro rápido, e a aerodinâmica é o que traz a diferença entre ter ou não um carro vencedor.
Com os avanços do campo dos estudos de aerodinâmica nos carros de corrida, cada vez mais os pequenos detalhes trazem diferenças de décimos de segundo entre os carros, mas com o nível de competitividade é o suficiente para ser o mais rápido. A F-1 tenta domar os gastos com aerodinâmica há anos, pois a estrutura necessária para fazer os testes e cálculos necessários é extremamente cara, e hoje cada vez mais os custos são fonte de discussão para manter o esporte vivo.
Um dos principais pontos dos carros onde vemos que, de fato, o investimento de tempo e dinheiro é muito alto, é na asa dianteira. Se pararmos para analisar, encontramos dezenas de elementos em apenas uma asa dianteira, todos interligados de forma precisa e que formam um conjunto extremamente complexo. Cada pequeno elemento faz sua função de direcionar uma quantidade de ar para o lugar designado pelos engenheiros — um pouco para cima, um pouco para os lados, mais um pouco para os freios, e assim cada região da asa tem sua função.
Alguns anos atrás, dizia-se que um bico de F-1 custava em torno de 250 mil dólares. E justamente é a primeira peça a ser arrancada fora num toque com o carro da frente até na largada de um GP…
A grande complexidade das asas é a contradição que sua própria existência causa: a grosso modo, quanto mais downforce (força vertical para baixo) a asa gera, mais arrasto (força horizontal para trás) consequente ela também gera. Em outras palavras, quanto mais ela ajuda o carro a ficar no chão, mais ela diminui a velocidade do veículo. E justamente a complexidade das asas, e do carro como um todo, é criar um design otimizado o suficiente que gere o máximo de downforce com o mínimo de arrasto resultante.
Ao longo da história da F-, diversos métodos foram usados para aumentar a downforce dos carros, e nos anos 1980 um recurso muito engenhoso resultou em carros no mínimo curiosos: carros sem asa dianteira. Pois é, justamente quando as equipes mais buscavam soluções aerodinâmicas, apareceram carros sem asa dianteira. E isso tem uma boa justificativa, chamada efeito solo (ground effect em inglês).
Este recurso recebeu esse nome por usar o solo como um dos elementos para gerar downforce, em conjunto com o fundo do carro. O espaço que fica entre o assoalho do carro e o solo trabalha como um túnel por onde o ar passa, entrando pela frente do carro, passando por toda sua extensão, até sair pela extremidade traseira. Este é um “caminho” conhecido e, de certa forma, controlável. Esta ideia de usar pressão menor que a atmosférica sob o carro é o mesmo conceito do Chaparral 2J e do Brabham BT46, ambos com turbinas que sugavam o ar sob o carro, diminuindo a pressão.
Usando o princípio das pressões de Bernoulli, onde um fluxo de ar possui pressões diferentes quando a seção transversal varia, o espaço entre o carro e solo pode ser tratado desta forma, e variando a forma do assoalho cria-se diferenças de pressão que resultam em downforce.
Antes deste princípio ser usado na F-1, os carros foram evoluindo aos poucos no quesito da aerodinâmica. Nos primeiros carros, os projetistas tinham a preocupação de fazer carrocerias lisas e fluidas, para diminuir o arrasto aerodinâmico. No fim dos anos 1960, Colin Chapman mudou o rumo da F-1 quando instalou asas no seu Lotus 49 e provou que o ar poderia ajudar os carros a fazer curvas mais rápidas.
Era o começo da era dos estudos de aerodinâmica como forma de geração de downforce, não só redução de arrasto. Os aerofólios usados na época eram grandes, altos e em muitos casos, como da própria Lotus, eram fixados diretamente na suspensão traseira, para que a força gerada fosse descarregada diretamente no pneu, aumentando a carga vertical contra o solo. Como ainda era uma forma rudimentar de aerodinâmica, o chamado grip mecânico, que é a aderência do carro por conta do pneu, da suspensão e do chassi, era o fator principal do carro ser bom de curva, o que tornava fundamental ter um bom chassi e suspensão bem acertada.
Com a aerodinâmica entrando em cena como um dos principais fatores para a velocidade dos carros em curva, muita coisa mudou. Uma das mais nítidas é que os carros tiveram que ficar mais baixos e com suspensões bem mais firmes. Nos anos ’60 vemos os carros com suspensões que hoje em dia até parecem macias, pois a única coisa que a suspensão tinha que suportar era o controle de transferência de carga. Com as novas cargas aerodinâmicas, se a suspensão fosse igual, ela já seria comprimida só pela força vertical atuando no chassi, ficando quase que sem ação. Isto fez com que os carros fosses reprojetados de forma a conviver com estas mudanças.
Em 1977 a Lotus apresentou o Lotus 78, um carro que iria mudar radicalmente o rumo dos estudos de aerodinâmica na F-1 (de novo). Colin Chapman pensou em um carro que tivesse sua carroceria usada como uma asa invertida de avião, capaz de gerar downforce por si só. Tony Rudd, Tony Southgate e Peter Wright foram os responsáveis por tirar do papel a ideia de Chapman e construíram diversos protótipos em escala para testar em túnel de vento, até que encontraram a melhor forma para o novo carro.
O 78 tinha um assoalho desenhado para aproveitar o espaço entre o carro e o solo de forma a criar um venturi, que é o elemento do princípio de Bernoulli, que a mudança de velocidade do fluxo de ar gera diferença de pressão. Usando esta teoria de forma inversa à de uma asa de avião, o corpo do 78 interagia com o solo e gerava um valor considerável de downforce. Como o ar acelerava sob o carro, a pressão diminuía, e a maior pressão externa sobre o carro forçava-o para baixo. Este era o tal do efeito solo. A grande vantagem deste conceito sobre o uso de aerofólios é que, com o uso do efeito solo, pouco arrasto é gerado se comparado com o que uma asa geraria para o mesmo tanto de downforce.
Para garantir que a pressão sob o carro fosse mais estável, a Lotus instalou placas laterais na carroceria do carro, que depois foram chamadas de saias, para tentar vedar toda a parte de baixo do carro, assim, o ar não escaparia pelas laterais. Por anos este seguintes recurso foi muito usado, com sistemas móveis que praticamente copiavam a superfície do solo, isolando o fluxo de ar sob o carro.
No mesmo ano de seu lançamento, Mario Andretti ficou em segundo lugar no campeonato, vencendo quatro corridas. Seu companheiro, o sueco Gunnar Nilsson, venceu uma. Mario só não foi campeão por o Lotus não completar diversas corridas da temporada. Era a certificação que o conceito do efeito solo era válido e o carro era vencedor. O modelo seguinte, o 79, foi uma versão melhorada do 78, bem similar, e que deu a Mario o título de 1978 e o vice-campeonato para seu companheiro, Ronnie Peterson.
Daí para frente, as outras equipes haviam descoberto o segredo da Lotus e começaram a fazer carros com o mesmo princípio. A evolução dos designs era rápida, e uma vez iniciada, não seria interrompida tão cedo. Chegou um ponto em que o downforce gerado pelo efeito solo era tão grande que os projetistas simplesmente eliminaram a asa dianteira dos carros, que acabavam sendo menos eficientes e geravam mais arrasto que o carro todo com efeito solo.
A própria Lotus teve uma grande contribuição para esse caso, com o Lotus 80 em 1979, que seria o primeiro carro da marca criado para ser uma grande asa invertida, dispensando o uso de aerofólio. A ideia era genial, mas de difícil execução. O fato do carro todo se comportar como uma grande asa fazia com que o efeito fosse muito sensível. Qualquer variação de altura do carro, imperfeições e ondulações no piso, moviam o centro de pressão do carro e o resultado era um comportamento muito irregular de aderência com o solo. Depois de algumas tentativas, a Lotus instalou aerofólios para deixar o carro mais estável e previsível.
A Arrows criou um dos designs mais arrojados de 1979 com o modelo A2, claramente inspirado na aviação. Tony Southgate, o projetista que trabalhou no Lotus 78 e também na Shadow F1 e Can-Am, cuja história contamos aqui no AE, foi o responsável pelo projeto do carro, que, assim como o Lotus, utilizava o corpo todo do carro como um grande dispositivo para gerar downforce por efeito solo. Nos testes de túnel de vento, a proposta de Tony gerava até quatro vezes mais downforce do que as tentativas anteriores.
Todos os aspectos de redução de arrasto foram pensados no carros, com os braços superiores da suspensão dianteira cobertos por um perfil de asa, o motor bem carenado, e direcionadores de ar que reduziam o efeito do arrasto das grandes rodas traseiras.
O A2 foi uma proposta tão radical que modificaram até a posição de montagem do motor, inclinando-o quatro graus (o final da transmissão mais alto que a frente do motor) para que o fundo do carro fosse melhor aproveitado para a aerodinâmica. Este recurso, entretanto, elevava o centro de gravidade do motor, o que prejudicava o equilíbrio e a dirigibilidade. O chassi teve que ser reforçado para suportar os grandes esforços vindos da aerodinâmica, e resultou em um aumento de peso no carro, também prejudicial para o desempenho.
Aliado a estes contrapontos, o pior de todos era o efeito da instabilidade aerodinâmica, que qualquer variação na pressão sob o carro acabava por reduzir drasticamente o downforce, movendo o centro de pressão para frente e para trás sem o menor controle, e o piloto não tinha como prever isso. Este mal assombrou todos os carros que abusaram do efeito solo com o uso da carroceria toda atuando como asa. Este efeito só ficou conhecido pelos projetistas depois que os carros estavam prontos e andando. Foi uma novidade para todos, mas faz parte de toda grande mudança, lidar com o inesperado.
Depois de algumas tentativas na segunda metade da temporada de 1979 com Riccardo Patrese e Jochen Mass, este que conseguiu apenas dois sextos lugares com o A2, Southgate abandonou o projeto do A2 e seguiu com o modelo A3, mais convencional e com aerofólios dianteiros e traseiros.
A Brabham teve seu investimento nos carros de efeito solo, também eliminando a asa dianteira, como no caso do BT49 projetado por Gordon Murray. Como uma forma de aproveitar o conceito do BT46 com a famosa turbina que sugava o ar debaixo do carro, a ideia de gerar pressão negativa sob o carro, resultando em downforce, foi adaptada para o momento em que a moda era o efeito solo.
As tentativas de conseguir um efeito similar ao do BT46 apenas com o uso do efeito do venturi sob o carro foram bem-sucedidas, porém, assim como o Arrows, muito arrojo no design trouxe problemas para o carro com o efeito negativo de grande instabilidade, totalmente imprevisível para o piloto, pois a cada movimento da suspensão, o carro poderia se comportar cada hora de um jeito diferente.
Não demorou muito e Murray logo voltou ao uso da asa dianteira no carro para estabilizar o carro e ter melhor controle do centro de pressão. Era a solução para melhorar a dirigibilidade e a previsibilidade para o piloto.
Em 1981, a FIA baniu as saias laterais móveis e estabeleceu uma altura mínima do fundo do carro para o solo (6 cm) para tentar reduzir a velocidade dos carros por conta do efeito solo, que estava cada vez mais eficiente e, ao mesmo tempo, mais perigoso.
Muitas equipes criaram recursos para driblar esse novo regulamento, como a Brabham fez um sistema de suspensão hidropneumático que rebaixava o BT49C em velocidade e com o carro parado, não funcionava, o que fazia com que este se enquadrasse no regulamento dos 6 cm de vão livre para o solo quando medido pelos fiscais. A Lotus novamente veio com novidade referente ao efeito solo, pois não iria largar facilmente esse recurso.
O modelo 88 era uma tentativa radical de transpassar o regulamento da FIA. Chapman bolou um sistema que, já que o fundo do carro não poderia ficar a menos de 6 cm do solo, as laterais onde era criado o efeito solo, seriam móveis e com a pressão aerodinâmica, abaixariam em direção ao solo para aumentar a eficiência do conjunto.
Para isso, criou um carro com chassi duplo: um chassi convencional, onde motor, transmissão, cockpit e suspensão eram fixados, e outro chassi que cobria o primeiro, onde toda a parte inferior do carro era fixada, gerando o efeito solo. Este segundo chassi era fixado ao primeiro por meio de uma pequena suspensão que podia trabalhar verticalmente, aproximando do solo conforme a velocidade aumentava.
Obviamente, as outras equipes ficaram revoltadas com tamanha criatividade e alegaram que era uma quebra de regulamento, e pedir que o Lotus 88 fosse banido da F-1, o que ocorreu rapidamente. Este e outros casos de carros muito avançados para seu tempo nós contamos aqui e aqui no Ae anteriormente.
Em 1983, a FIA regulamentou que o fundo dos carros tinha que ser plano entre o centro do eixo dianteiro e traseiro. Era a forma de acabar com os carros projetados para depender do efeito solo, que cada vez mais estavam velozes e mais perigosos. Com o fundo plano, praticamente não se conseguia gerar downforce por conta do desenho do carro, apenas com o uso das asas dianteiras e traseiras, e o extrator que ficava para trás do centro do eixo traseiro no final do carro.
Com esta mudança, os carros tiveram que ser reprojetados para se adequar a esta nova regra e utilizar outros recursos que não o assoalho do carro para a geração de downforce. Foi mais um ponto de mudança na F-1, onde a aerodinâmica mais refinada era a nova onda de desenvolvimento, com aerofólios mais eficientes e maior exploração do recurso do extrator, que ficou sendo o único elemento que restou da era do efeito asa.
MB