Juro que tenho tentado não ser aquela pessoa ranheta que todos abominam, mas está difícil. Deve ser por causa da idade: ontem (7) completei mais uma volta em torno do sol. Adoro fazer aniversário. Não fico deprimida nem nada, mesmo quando não faço propriamente uma festa ou uma reunião de amigos, o que parece ser o caso deste ano. Sou normalmente muito, mas muito bem humorada — exceto, é claro, naquela primeira meia hora quando acordo mas, afinal, por que conversar com alguém que acaba de levantar da cama? Devia ser algo proibido e passível de severas sanções. Convenhamos que a culpa não é minha. É de quem quer papo a essa hora, não?
Mas voltando à vaca fria (gelada, neste caso, depois de tanta disgressão), meu mau humor é dirigido especialmente à imprensa. Sempre quis ser jornalista e adoro minha profissão, mas ver o que estão fazendo com ela me entristece muito.
Segunda-feira vi num noticiário da emissora líder de audiência os números de 2018 sobre acidentes de trânsito em São Paulo, algo que costumo acompanhar. Pois é, levaram uns 2 minutos, no mínimo, para dizer que os acidentes no trânsito em 2018 haviam caído 10% em relação a 2017 e mesmo assim, meio escondido, envergonhadamente eu diria. Antes disso, números absolutos e dados sobre faixa etária das vítimas.
Nem vou entrar no mérito de boa ou má vontade com o governante de plantão, pois isso se aplica a todos os âmbitos do poder público. Pessoalmente, acho que a imprensa tem de ser sempre crítica e fiscalizadora, nunca amiguinha, mas isso não quer dizer néscia. Refiro-me (olha a ênclise da semana aí) àquilo que é notícia. Na faculdade de Jornalismo aprendemos que a notícia deve ser dada na forma de uma pirâmide invertida: primeiro o mais importante (quê, quando, onde, como e por quê) e depois outros dados relevantes, mas não fundamentais, e as explicações e consequências. Quem aplicar essa regra aos meus textos vai ver que nem sempre faço isso, mas crônica não é notícia e posso me dar certas liberdades.
O motivo para o uso da tal pirâmide é óbvio: se o leitor não tiver interesse no restante, ele se informou minimamente ao ler o(s) primeiro(s) parágrafo(s). Segue adiante se quiser, mas o mínimo de informação já está garantido. Em termos práticos, também facilita para quem edita a notícia. A regra geral é “cortar pelo pé”. Na teoria, você deveria poder fazer isso sem nem olhar uma segunda vez o texto. Se faltar espaço, apagam-se as coisas do final para o começo. Falo aqui de imprensa escrita, mas isso também se aplica a meios que têm limitação de caracteres ou para quem apenas ao terminar acha que o texto ficou longo demais. Mesmo que seja uma postagem no Feicibúqui.
O problema é que a mídia virou uma trincheira de defesa de ideais e as notícias devem se acomodar de forma a confirmar esses ideais. Assim, se o editor acha que dizer que o número de acidentes de trânsito caiu favoreceria o governante do momento, essa informação vai para o meio ou mesmo o fim da notícia. Os menos desonestos não deixam de informar isso, mas há os que simplesmente suprimem isto. Assim, a vítima é o telespectador. Triste, muito triste. Quando João Dória assumiu a prefeitura e elevou os limites de velocidade em trechos das duas marginais, esses mesmos jornalistas fizeram plantão durante semanas e noticiavam o menor acidente — sem falar nas mortes, é claro. Agora que depois de mais de dois anos disso, quando se constata que as mortes caíram nas duas vias mesmo com velocidades máximas mais altas, a notícia vai para o meio ou o fim da reportagem. E não há mais plantonistas nas duas vias.
Bom, críticas à imprensa à parte, vamos aos números. Evidentemente falar em 5.000 mortes ao ano no trânsito de todo o Estado de São Paulo é um horror, mas também tenho horror a números absolutos. Acho que eles devem ser sempre contextualizados, seja no trânsito ou em outros assuntos. Imaginem se o o Uruguai, com seus 3 milhões de habitantes, tivesse 5.000 mortos no trânsito? Seria um massacre e, potencialmente, em alguns anos não haveria mais uruguaios no País. Mas o que esse número representaria na Índia, com seu 1,4 bilhão de habitantes? Virtualmente, nada. Seria comemorado como um dos trânsitos mais seguros do mundo.
Por favor, entendam que para mim toda e qualquer vida vale. Mas estatística deve ser em relação ao universo analisado. Sem isso não há como estabelecer políticas públicas. Como no caso do DPVAT, incluem-se indenizações a pedestres e ciclistas além de motoristas (independentemente de culpa) e podemos comparar por habitantes. Senão, deveríamos fazê-lo (2ª ênclise do dia…) por número de veículos também.
Voltemos, então aos números, que são bastante auspiciosos. Segundo dados do DPVAT, que desembolsa as indenizações obrigatórias, em 2018 foram pagas 5.462 indenizações por acidentes de trânsito ante 6.103 de todo 2017. Ou seja, uma diferença de 10% ou, para usar os números absolutos que alguns tanto gostam, 641 vidas poupadas. Nada mau, não?
Outro exemplo de mau jornalismo é usar a mesma planilha que o DPVAT utiliza para mostrar o número de mortes por faixa etária. Todos os coleguinhas que divulgaram os números caíram na mesma armadilha. Vejam os dados:
Mortes no trânsito
Idade | Número de mortes em 2018 |
0 a 7 anos | 85 |
8 a 17 anos | 176 |
18 a 24 anos | 996 |
25 a 34 anos | 1181 |
35 a 44 anos | 967 |
45 a 64 anos | 1381 |
mais de 65 anos | 676 |
Fonte: DPVAT
A imprensa saiu repetindo que as vítimas mais frequentes estão entre os 45 e 64 anos de idade. Faz sentido comparar como se fossem a mesma coisa números de faixas com uma amplitude de 21 anos (de 45 a 64) com outra de, por exemplo, 7 anos (18 a 24)?. Ao ler corretamente as estatísticas, morrem mais indivíduos de 18 a 24 anos do que de 45 a 64 – proporcionalmente, que é o cálculo que deveria ser feito. Confesso que não entendi o critério do DPVAT. Vinha tudo muito bem, com intervalos de 7 a 10 anos e aí, do nada, pula para intervalos muito maiores, como de 45 a 64 e depois “mais de 65”. Isso para não mencionar o que seria o mais correto, usando a proporção de habitantes por faixa etária. Affe, quanta preguiça de jornalista fazer conta!
Não por nada, semana passada vários meios de comunicação publicaram que, segundo a OCDE, o investimento que o Brasil faz em alunos universitários está “abaixo de todos os países da OCDE”. Estranhei, pois sempre foi elevado o desembolso por estudante universitário brasileiro — novamente, acho Educação fundamental — mas me pareceu estranha essa queda tão acentuada já que lembrava que cerca de um ano atrás havia lido que a OCDE tinha dito que esse valor era “nível europeu”. Peraí, em um ano caímos para abaixo do que 39 países aplicam, em valores absolutos? Algo estranho no ar.
Nem digo o que alguns feiciamigos (ou feicinimigos) me disseram quando questionei os dados nessa rede (anti)social. Teria havido mudança de metodologia? Pois é, nada como um dia depois do outro. No dia seguinte, a OCDE divulgou que houve um engano e que os investimentos do Brasil em estudantes universitários eram muito similares aos dos países europeus e aos do ano anterior. O que me irritou não foi o valor em si, mas ver que ninguém da imprensa checou dados anteriores. Se tivessem feito isso, teriam questionado essa discrepância e perguntado os motivos. Mas não. Temos repetidores de press releases (as informações que empresas, entidades e governos divulgam aos meios de comunicação) e porta-vozes em vez de jornalistas. Ufa!
No caso do trânsito em São Paulo, não houve nenhuma menção à velocidade máxima. Como os números caíram, ninguém disse que velocidade tem algo a ver com letalidade no trânsito. Novamente, amnésia ou conveniência, pois ao menor aumento de zerovírgulazeroalgumacoisa, atribuem à velocidade o número de mortes. Alguns jornalistas, seguindo um comportamento de manada já que todos fizeram o mesmo, compararam o número de mortes no trânsito com o de mortes violentas. Tudo para dizer que trânsito mata mais do que algo. Ufa, cansei.
Mudando de assunto: Como já disse neste espaço, maio para mim é um mês muito especial. Além do meu aniversário (eba! Parabéns para mim, nesta data querida…) é o mês que marca acidentes horríveis de grandes pilotos da Fórmula 1. No dia 1, em 1994, morreu o excelente Ayrton Senna. No dia 8, em 1982 na Bélgica, num treino e fruto de um acidente estúpido, morreu meu ídolo Gilles Villeneuve. E no dia do meu aniversário, 7 de maio, Nelson Piquet bateu fortíssimo treinando em Indianápolis com severas sequelas para sua vida profissional. Xô, uruca!