Ypsilanti é uma cidade pequena, de 21 mil habitantes, próxima a Ann Arbor e Detroit, no Estado de Michigan, região Norte-Nordeste dos Estados Unidos. Detroit dispensa apresentação para quem tem suas antenas sintonizadas no mundo do automóvel. Ann Arbor é bem menor, e casa da EPA, a Agência de Proteção Ambiental americana, além de ser a sede da Universidade de Michigan.
Ypsilanti tem nome em homenagem a Demetrios Ypsilantis, um herói da guerra grega para escapar do domínio otomano, e já foi comentada aqui no AE como município onde está o Aeroporto Willow Run, palco de uma grande história. Se você ainda não a viu, veja-a aqui.
Foi nessa mesma cidade em que morou Preston Tucker desde 1939, antes da criação de sua empresa e seu carro, cheios de dramas, confusões e quase certamente, sabotagens. A casa onde ele morava não é mais da família, mas existe ainda hoje, no número 110 da North Park Street.
A não mais de 500 metros da antiga casa de Tucker, bem no centro da cidade, há um museu pequeno porém muito rico, o Ypsilanti Heritage Automotive Museum. Heritage significa herança cultural, e a exposição desperta bastante interesse.
O museu tem um dos verdadeiros Hudson Hornet de corrida, pilotado por Herb Thomas. É “um dos” porque a equipe de fábrica teve vários pilotos e carros, e esse número 92 foi o campeão da Nascar em 1953, número de chassis 185596. O carro foi vendido depois desse campeonato e ficou perdido pelo país, até ser localizado e restaurado em 1998. Hoje está na mesma cidade em que foi fabricado, depois de ser comprado por um colecionador por 1,27 milhão de dólares no ano passado. Inacreditavelmente, o local é tão sossegado que o senhor que tomava conta do museu no dia que visitei me convidou a sentar no banco do motorista. Nunca havia entrado em um carro de valor nem próximo de um milhão de qualquer moeda, e foi notável. Coisas de lugares tranquilos.
Quem, como eu, é ligado na Sétima Arte — sem fanatismos— ao ver esse Hornet ficará emocionado como fiquei: é o segundo “personagem” em importância do filme-desenho “Carros” (Cars, de 2006, produção da Pixar Animation Studios e distribuído pela Disney). O Hornet é “Doc Hudson”, ex-campeão da Nascar e agora o juiz da pequena cidade Radiator Springs. O personagem conquista o espectador, ainda mais sabendo que a voz do mesmo foi feita por Paul Newman (1925-2008), ator e piloto de corridas, com carreira vitoriosa em ambas atividades.
O motivo do carro estar no local é simples e belo. Há uma área do museu que é uma oficina — de verdade, pois o endereço é o do último concessionário Hudson dos Estados Unidos — inclusive com um pequeno estoque de peças, que são sim vendidas, mas apenas mediante uma boa conversa de que será usada em carros de coleção, não para especulação. Coisa apenas para pessoas indicadas, amigos e conhecidos dos administradores do museu. Isto não está escrito em lugar algum, descobri apenas porque perguntei sobre as peças nas caixas antigas e surradas.
O Hornet está lá há vários meses para alguns pequenos consertos, feitos sem pressa alguma por antigos mecânicos e outros conhecedores dos Hudson que trabalharam na fábrica e de vez em quando passam por lá para conversar e manter o acervo em boas condições. Um ponto de encontro e de congraçamento do autoentusiasmo.
A oficina é como a cidade: tranquila, com um charme especial, e devagar. Há alguns equipamentos que são usados tanto para os carros expostos quanto para outros antigos que por lá aparecem para algum serviço, e por isso tive a alegria de encontrar no local um Pontiac GTO 1964 — o primeiro GTO, o mais puro, o mais raro, o mais tudo! De capô destravado para algum serviço que iria ser feito, não pestanejei para levantá-lo e fotografar o motor, com seus três carburadores duplos, que davam o nome de Tri-Power ao conjunto de opcionais que incluía o câmbio de quatro marchas com alavanca no assoalho entre outras melhorias para andar mais rápido que o Tempest de que o GTO derivava. Uma galeria apenas com fotos dessa maravilha está a seguir.
Outro GTO faz parte do acervo do museu, e é importante por ser o último da linhagem de uma década de produção, apesar de ser apenas uma versão esportivada do Ventura, carro comum e pouco entusiástico. O modelo 1974 exposto rodou pouco mais de 24 mil milhas e está perfeito, sem nunca ter sido sequer retocado em sua pintura.
Mas o foco do museu é nas marcas com produção em Ypsilanti, e Essex e Hudson estão presentes. Depois da Segunda Guerra Mundial também foram lá fabricados os Kaiser-Frazer, os Chevrolet Corvair e outros menos lembrados da marca Chevrolet e Oldsmobile além de alguns Pontiac. A cidade abrigou também a fabricação de câmbios automáticos da General Motors, pela sua divisão Hydra-Matic.
O Essex do museu é um quatro-portas conversível de 1920, em estado muito bom, e sem ser fruto de restaurações “fake”, aquelas que deixam carros de 100 anos com pinturas brilhantes como carros novos, algo impossível em épocas passadas. É um dos 22.338 carros iguais a esse fabricados, e tem motor de 4 cilindros.
Um Hudson de nome um pouco menos famoso que o Hornet é o Terraplane, com um exemplar presente, duas-portas, de 1933, também longe da perfeição e muito realista, parecendo ser apenas um carro antigo bem cuidado que poderia estar estacionado do lado de fora do museu.
Outro mais antigo é de 1909, um roadster Model 20 que é quase um carro de corrida, no mesmo estilo dos Mercer Raceabout e Stutz Bearcat da época. Todo aberto e com apenas dois lugares, é de grande valor monetário pela raridade, sendo um dos poucos que sobraram dos 4.556 fabricados. A importância do modelo é enorme, pois ele é o primeiro modelo da marca, e foi feito exatamente no ano da fundação da Hudson Motor Car Company.
A união desses produtos no local é muito bem-feita, apesar de faltar um pouco de espaço para tudo que se pode mostrar. Há uma sala grande onde estão muitas caixas automáticas em displays próprios para exibição, que ficavam na fábrica até esta ser fechada em 2008/9, na época da falência da GM.
Na mesma sala há o chassi de um Oldsmobile 1940, com suspensões, direção, freios, tanque, motor, câmbio e escapamento, muito bem conservado e pintado, com a indicação de se tratar do primeiro carro com um câmbio totalmente automático.
Quietinho em um canto está um motor rotativo, ou Wankel, de fabricação da General Motors, que foi por algum tempo testado e desenvolvido visando a produção. Houve inclusive Corvettes conceituais com motores rotativos, mas depois de muito trabalho o programa foi extinto pela GM. Esse é mais um exemplo das preciosidades que esse pequeno museu possui.
Há carros fabricados depois da Segunda Guerra Mundial que eram idênticos aos do período pré-guerra. Isso foi natural, já que não se desperdiçava matéria-prima e tempo construindo carros, quando era necessário fabricar armamento de todos os tipos. Mostrando isso está um Hudson 1946, idêntico ao 1942.
Um didático mostruário exibe o disco de embreagem com material de atrito de cortiça, uma criação da Hudson. É incrível imaginar que algo tão fácil de ser danificado por uma unha, por exemplo, pode ter sido usado entre a força de um motor e uma caixa de câmbio, mas isso era possível por ser uma embreagem úmida, com óleo em seu interior.
Há muito material sobre a marca Hudson, de todo tipo. Cartões de visita, cartazes e placas, peças, miniaturas de carros, uniformes de funcionários, um carrinho infantil movido a pedal, dezenas de brindes de concessionários como caixas de fósforos, chaveiros, broches de lapela, canetas, lápis, adesivos, e os muito interessantes e importantes para colecionadores, cartazes e pôsteres com explicações de sistemas dos carros.
Um motor Hudson Invader náutico de seis cilindros em linha de 16.350 cm³ e potência de pouco mais de 250 cv é bem chamativo, e desperta um certo espanto pelo peso e tamanho, que se acentua ao saber que vários componentes são feitos de liga de alumínio. Mesmo assim ele pesa 1.125 kg! O Invader teve mais de 4 mil unidades fabricadas, e foi usado em lanchas de desembarque e pequenos barcos de salvamento durante a Segunda Guerra Mundial.
Um Jet Liner é difícil de se ver, e o museu tem um dos 35 mil fabricados, sendo que conversível existe apenas esse protótipo, feito experimentalmente em outubro de 1953. Foi restaurado há pouco mais de uma década, e é um dos grandes valores da coleção do museu. Tem também grande importância histórica, pois foi a materialização da última tentativa de trazer a Hudson de volta à rentabilidade, algo que nunca aconteceu, sendo a marca absorvida em 1954 pela formação da American Motors, juntando-se à Nash-Kelvinator. Existiram modelos Hudson até 1957, mas aí nada mais restava de esperança.
O Ypsilanti Automobile Museum faz parte da organização Motorcities (motorcities.org), que reúne vários museus e locais relativos à história do automóvel em Michigan, e tem como parceiras a Ford, GM, FCA e o sindicato dos trabalhadores da indústria automobilística dos EUA, o UAW. Além deles, o serviço nacional americano de parques também colabora com a organização.
O museu funciona de terça a domingo entre 1 e 4 horas da tarde, e fica bem no centro da cidade, número 100 da East Cross Street. O ingresso custa 5 dólares, e há um site com as informações básicas para quem for visitar, além de boas informações sobre a história do local.
Há um evento anual em homenagem a marcas americanas órfãs, aquelas cujas fábricas não mais existem ou modelos que deixaram de ser fabricados. Chama-se Orphan Car Show e se realiza no parque da cidade, ao longo do Rio Huron, a menos de 100 metros do museu. Este ano ocorrerá em 15 de setembro, e o carro homenageado será o Chevrolet Corvair. Há mais informações sobre esse evento também no site do YAHM.


JJ