Muita coisa aconteceu com essa idade.
Fiz o Tiro de Guerra que, é claro, não tinha nada a ver comigo, mas tenho que dizer que foi bom. Pouco antes do Tiro de Guerra eu tinha conseguido um emprego como past-up em uma pequena agência de propaganda em São Paulo.
A agência ficava perto do Parque do Ibirapuera, e eu tomava dois ônibus para ir até lá. O trabalho consistia em montar os originais de páginas de catálogo de produtos mas, é claro, nesta época não havia Photoshop, e tudo era feito à mão. Os textos eram mandados a uma gráfica que os imprimia conforme o tamanho e na família de letras indicada.
Os glacês eram recortados com estilete (numa dessas operações perdi a ponta do dedo, portanto nunca exponha nenhuma parte do seu corpo à frente de um objeto cortante) e colados com cola-borracha sobre um papel de alta qualidade e resistência. As fotos dos produtos eram também posicionadas conforme o layout e tínhamos no mesmo prédio um fotógrafo profissional que produzia as imagens que nós precisávamos.
O Sr. Júlio Bahr era um judeu, muito simpático e inteligente, que me deu grandes exemplos de organização e mesmo de vida, além de me ensinar tudo sobre a criação e produção de peças publicitárias, todo o processo desde a criação até a veiculação da propaganda.
Como sempre, o trabalho tinha seus desafios, principalmente os ligados à precisão e limpeza. Os originais tinham que ser perfeitos, todos em tamanho padronizados com uma proteção de papel vegetal que cobria cada original. Na época do Tiro eu podia chegar mais tarde, pois a saída de São Caetano do Sul era depois das oito da noite.
Mesmo assim era uma agenda apertada, mas à noite, como eu não estudava, ficava andando pelas ruas de São Caetano do Sul com os amigos e amigas, indo a lanchonetes da moda e cinema ou bailinhos de garagens, que eram os melhores.
Esta também foi a época em que eu fugi para Bahia, assim, à toa, com um amigo chamado Alemão.
Roubamos algum dinheiro de nossos pais e tomamos um ônibus para Salvador. No meio do caminho já não tínhamos mais dinheiro, e quando descemos em Feira de Santana, que era até onde o dinheiro deu para chegar, fomos presos por pedir carona às duas da manhã. Foi um deus nos acuda até explicar que não éramos nem ladrões nem terroristas, e depois de dois dias detidos na prisão da cidade fomos transferidos para o 35º Batalhão de Infantaria, suspeitos de terrorismo.
Como eu tinha saído do Tiro de Guerra e nossa história era muito besta, o tenente que nos “entrevistou” resolveu nos soltar na estrada novamente e aí estávamos já famintos, e sujos, perambulando pelas ruas de Salvador.
Para encurtar, só saímos dali porque o pai do meu amigo acabou nos localizando na rodoviária de Salvador, e de São Paulo pagou nossas passagens e enviou algum dinheiro que recebemos lá, compramos as passagens de volta e voltamos para encararmos os estragos deixados para nossas famílias.
Foi nesta época também que eu conheci a mulher que me acompanharia durante toda
minha vida, a Nanci, minha esposa. Aos dezoito anos meus pais finalmente se mudaram da Rua Piauí para Rua Votorantim, na Vila Barcelona, em São Caetano do Sul.
Na mudança para o novo apartamento já avistei um grupo de garotas e entre elas estava a Nanci, que teve um papel muito importante na minha vida, pois nunca reclamou da minha ausência pelo trabalho, só me incentivou, equilibrou e domesticou minha loucura de artista e praticamente sozinha criou e educou meus três filhos.
Um dia, meu pai conseguiu uma entrevista na área de ilustração técnica, que pertencia à Engenharia de Produto da General Motors. A GM era uma fábrica majestosa, com seu portão principal no final da Avenida Goiás. Na realidade ela, junto com a Volkswagen e a Ford, trouxe o desenvolvimento na região do ABC que indiretamente foi responsável por tornar São Paulo uma das maiores cidades do mundo.
Entrando pelo portão principal você tinha dois enormes blocos de escritórios. À direita ficava toda área de Engenharia de Produto, inclusive Protótipo. À esquerda, eram os escritórios administrativos. Seguindo à esquerda paralelamente à Avenida Goiás se estendiam por muitas centenas de metros as áreas de planejamento de fábrica, ferramentaria, linha de prensas e ao final da área, já, chegando próximo ao centro de São Caetano do Sul, a linha de montagem e pátio de desembarque dos carros produzidos.
A área de ilustração técnica era um anexo à sala principal de projetos da Engenharia e tinha como função principal fornecer desenhos em perspectiva para o manual de instrução de montagem dos carros produzidos pela companhia.
Eram aproximadamente 20 ilustradores, sentados em formato sala de aula, com o Sr. Leandro como professor, quero dizer, chefe, em nível de supervisão.
Havia também três líderes de turma, que eram os responsáveis por prover as informações sobre montagem, desenhos e fotos que serviriam de referência para cada operação ilustrada.
Somente para explicar, uma página sobre a montagem do eixo dianteiro direito continha todas peças deste conjunto, explodidas em várias direções e na sequência correta de montagem.
Os desenhos eram esboçados por ilustradores seniores, ou layout men, que organizavam as informações necessárias para que os ilustradores pudessem finalizar os desenhos que eram feitos com canetas a nanquim, com pontas de 0,2, 0,4 e 0,8 mm. Os desenhos eram feitos sobre papel vegetal de alta densidade, e já com margem e etiqueta de controle de número de peças e informações diversas como data de edição e responsável pela informação.
O grande drama para o iniciante era lidar com os as elipses e esquadros para não borrar com a tinta líquida, observar as leis de perspectiva, o alinhamentos e detalhes precisos das peças, muitas vezes bem complexas, como, por exemplo, a vista explodida de uma caixa de câmbio, com dezenas de engrenagens e componentes de forma complexa.
No dia do teste eu realmente não estava preparado para o desafio, pois nunca tinha feito desenhos complexos naquela técnica, a mesma que meu pai usava nos seus desenhos arquitetônicos, perspectivas e planta baixa. Portanto, eu sabia como usar uma caneta nanquim, mas nunca tinha usado aos gabaritos de elipses.
Porém, a experiência com meu pai, somada às aulas da Belas Artes, me davam segurança para topar o teste prático, que terminei com relativa facilidade em algumas horas.
Este foi um dos desenhos mais importantes de minha vida pessoal, pois ele abriu as portas a um mundo de conhecimentos e aventuras que eu nunca poderia ter sonhado, nem nos meus maiores delírios.
Finalmente, antes dos vinte anos de idade eu tinha conseguido uma profissão, que tinha muito a ver com o que eu gostava de fazer e que me garantia um bom salário mensal. Eu nunca poderia imaginar que este seria somente o começo de uma grande aventura de vida.
LV