O AUTOentusiastas é um espaço eclético: falamos de carros, aviões, costumes, tendências, mercados, e cada um dos editores acaba se dedicando a uma área de interesse.
Pessoalmente sempre fui um apaixonado pela aviação, desde que me entendo por gente. E uma das coisas que acho mais fascinante na aviação consiste na evolução dos motores, em especial das turbinas a gás, que num período de 80 anos, desde o primeiro voo do Heinkel He 178, propulsionado por motor Heinkel HeS 3b de ínfimas 1.100 libras-força (lbf) de empuxo e vida útil, quando excessiva, de uma centena de horas, para o novíssimo GE 9X, que neste último ano de 2019 entrou para o Guinness Book como o motor a jato de maior empuxo, produzindo 134.300 lbf e aptas para funcionarem milhares de horas sem qualquer tipo de problema maior!
Naturalmente que os leitores concordarão ou não com os “meus eleitos” e as razões pelas quais os escolhi. Trata-se de um texto que embora aborde aspectos técnicos, envolve a questão “escolha” de quem escreve, dessa maneira, quem quiser opinar nos comentários, podemos discutir e comentar motores que não estão na lista.
Neste texto, empreguei as medidas imperiais empregadas aviação. Dessa forma, para conversão de medidas, basta multiplicar os seguintes valores
Empuxo: 1 lbf=0,454 kgf
Potência: 1 hp=1,014 cv
Em matérias anteriores (dividido em Parte 1 e Parte 2), já discutimos diversos conceitos envolvendo turbinas a gás, por essa razão não esmiuçaremos nos detalhes técnicos e noa concentraremos diretamente dos motores.
5) Rolls-Royce Conway
Primeiro motor a reação com derivação, considerado por alguns como o primeiro turbofan (vide artigo sobre turbinas e motores a reação) produzido no mundo.
Trata-se de um conceito errôneo, pois embora o Conway possuísse uma razão de derivação de 0,3:1 (0,3 parte de ar passando externo ao núcleo do motor para cada parte que seguia para a câmara de combustão e turbinas) essa derivação era feita através na saída do último estágio de compressão, e não por um fan girando em um duto, como é o conceito preciso. Por isso, muitos chamam o Rolls-Royce Conway como sendo um “turbojato com derivação” (by-pass turbojet).
Explicado essa diferença, vale a colocação do Conway como um motor de destaque, pois foi o primeiro motor a jato a usar o conceito de by-pass, melhorando o desempenho e reduzindo o consumo de combustível se comparado aos turbojatos convencionais.
O Rolls-Royce Conway funcionou pela primeira vez em 1950 e primeira aeronave a empregá-lo foi o Handley Page Victor e depois, no quadrirreator Vickers VC-10, mas ganhou notoriedade ao ser escolhido para equipar a chamada Série 400 do Boeing 707 e a série 40 do Douglas DC-8.
Naqueles anos da segunda metade da década de 1950, a evolução das aeronaves e motores se deu de forma bastante acelerada e o RR-Conway, mesmo com essa insignificante razão de derivação, representou uma melhora nos valores de desempenho e consumo em relação aos motores RR-Avon (DeHavllland Comet 4) e Pratt & Whitney JT3C e JT4, turbojatos que empregavam (e necessitavam, para decolagem) da injeção de água na admissão, como forma de incremento de empuxo, e com a contrapartida, incrementando ruído e a fumaça negra emitida.
Foi um DC-8-43, equipado com esses motores, a primeira aeronave comercial de passageiros a romper a barreira do som, ultrapassando Mach 1 em um voo de mergulho controlado.
A Varig, nessa época de aquisições dos primeiros jatos comerciais, optou pelo Boeing 707 (relembrando – A Panair escolheu o Douglas DC-8-33 e a Real, pelo Convair CV-880, posteriormente modificada para o 990). Naquela época, o 707-320 era equipado com turbojatos Pratt&Whitney JT4A – idêntico aos dos DC-8 da Panair do Brasil – e o Rolls Royce Conway despontava como alternativa aos turbojatos.
Entretanto o sucesso do Conway foi relativo pois embora tenha sido o primeiro motor com derivação, foi logo suplantado pelo Pratt & Whitney JT3D, que além de ser mais econômico que o Conway, apresentava a vantagem de, através de simples modificações, transformar o turbojato JT3C das versões iniciais do 707 em turbofans JT3D.
O Conway, na versão que equipou o DC-8 e o 707 era a versão -12 (algumas fontes falam Conway 509) produzia empuxo de 17.500 lbf, sendo composto por dois eixos-carretéis, o primeiro com 7 compressores axiais de baixa pressão, e o segundo, 9 compressores de alta pressão. 10 combustores tubulares e 1 turbina de alta pressão (movimentando o carretel de compressores de alta pressão) e 2 turbinas de baixa pressão (movimentando o eixo-carretel de compressores de baixa pressão).
4) General Electric / Snecma CFM-56
O projeto CFM-56 nasceu do consórcio formado pela General Electric (50%) com a Snecma francesa (os outros 50%), para a produção de um motor turbofan de alta razão de derivação, da classe de 20.000 lbf de empuxo.
Coube a General Electric o desenvolvimento dos compressores de alta pressão, combustores e turbinas de alta pressão, ficando a Snecma, encarregada de desenvolver o fan, compressores e turbinas de baixa pressão, bem como a caixa de acessórios do motor.
Dessa maneira surgiu um turbofan de alta razão de derivação (para a época), extremamente eficiente em termos de economia de combustível e emissão de ruído, que funcionou pela primeira vez em 1974. Mas toda essa eficiência não foi o suficiente para atrair clientes e até 1979, a única manifestação concreta foi a remotorização de 11 KC-135 franceses, número insuficiente para garantir a sobrevida do Consórcio.
Faltando apenas duas semanas para a dissolução do consórcio e o abandono do projeto, a United Airlines decidiu por remotorizar 30 Douglas DC-8 61, com motores CFM-56, decisão essa sucedida por pedidos da Delta Airlines e Flying Tigers, salvando dessa maneira o consórcio franco-americano e transformando o Douglas DC-8, de uma das aeronaves mais ruidosas em operação, no quadrirreator mais silencioso, título este que manteve por muitos anos!
Em 1980, além da remotorização de centenas de Boeings KC-135 da Força Aérea Americana, o consórcio foi escolhido pela Boeing para ser o motor exclusivo da nova versão do Boeing 737. Para permitir a instalação do motor, foi necessário reduzir o diâmetro do motor (de 1,73 m de fan do motor dos DC-8/KC-135 e A320 para 1,52 m) e deslocar a caixa de acessórios do motor, da parte inferior do motor para a lateral, dando a forma ovalada que caracteriza o Boeing 737 até hoje.
Daí para frente o resto é história: O CFM-56 é o motor a reação aeronáutico mais produzido na história, com mais de 30 mil exemplares fabricados, equipando o Boeing 737 desde a série 300 (motor exclusivo), os Airbus A319/320/321, além de alguns quadrirreatores A340!
O CFM-56-7B que equipa o Boeing 737 NG (-600/-700/-800/-900) possui fan de 1,55 m e produz de 24.500 a 32.900 lbf de empuxo. Contém um fan e 3 compressores axiais de baixa pressão, impulsionado por 4 turbinas de baixa pressão e 9 compressores axiais de alta pressão, tocada por uma única turbina de alta pressão, todo esse conjunto pesando cerca de 2.400 kg.
No primeiro vídeo abaixo, é possível ver um Douglas DC-8 da série 60, com motores JT3D enquanto o segundo, um série 70 com motores CFM-56, significativamente mais silenciosos. Vale a pena pôr alto e ouvir.
3) Rolls-Royce Dart
A Rolls-Royce, que desde o período da Segunda Guerra Mundial vinha trabalhando com o desenvolvimento de motores turbo-hélice, em 1946 começou o desenvolvimento de um dos primeiros e mais longevos motores: o Dart.
Iniciado em 1946, o RR-Dart funcionou pela primeira vez em 1947, montado no nariz de um bombardeio Avro Lancaster, produzindo 890 shp (shaft horsepower/potência no eixo, não contando a conversão do empuxo residual convertido para potência equivalente) e já em 1948 voou equipando aquele que viria a ser talvez, um dos mais famosos turbo-hélices já produzidos: O Vickers Viscount, aqui no AE conhecido como “O avião do AE em Araçariguama”, próximo à Estrada dos Romeiros.
Aliás, nesse mesmo ano de 1948 foi o primeiro voo ligando a Inglaterra à França, num voo com passageiros, realizado por um turbo-hélice.
Diversas aeronaves foram equipadas com o motor Rolls-Royce Dart e aqui no Brasil, teve participação no desenvolvimento da aviação comercial regional, equipando os Viscount (operados pela Vasp e Força Aérea Brasileira — era o “avião do Juscelino”), o nipônico NAMC YS-11 “Samurai” (Cruzeiro e Vasp — olha aí outro apelido que esqueci de anexar na matéria das aeronaves e seus apelidos), Hawker Siddeley HS-748 (Varig e Força Aérea Brasileira), os Handley Page “Dart” Herald (Sadia Transportes Aéreos — precursora da Transbrasil), e os Fokkers F-27 (Rio Sul, TAM e Votec) e Fairchild-Hiller FH-227 (Taba).
Houve também uma pequena série de Convair 240/340/440, originalmente equipado com motores Pratt & Whitney R-2800 de 18 cilindros e 45,8-L remotorizados com motores RR-Dart, rebatizados de Convair 600 (240) e 640 (340/440).
O Rolls-Royce Dart é um motor atípico: tem dois compressores centrífugos (no lugar de pelo menos um axial — inspirado nos compressores empregados nos motores a pistão Griffon), 7 combustores cilíndricos (comum naquela época) e 3 turbinas para movimentação do conjunto. Por conta dessa disposição, a admissão de ar podia ser anular, facilmente reconhecíveis na montagem dos motores nas aeronaves equipadas com o Dart.
Ponha o volume no máximo e escute…se for capaz!
2) Pratt & Whitney Canada PT6
Se pudesse ser comparado com algum motor de emprego veicular, o PT6 faz jus a uma analogia como um motor Mercedes diesel OM 352 dos céus!
Concebido na década de 1950, o PT6 (lê-se “PT-Meia”) é, sem dúvida, o turbo-hélice mais usado e conhecido no mercado.
Com versões partindo de 550 shp até 1.700 shp e chegando a 1.940 shp nos modelos para helicópteros.
O Pratt & Whitney PT6 nasceu na divisão canadense da empresa, situada na Grande Montreal, no ano de 1956. Com um pequeno orçamento, a equipe de desenvolvimento foi incumbida de projetar uma pequena turbina a gás para ser um sucessor natural dos motores radiais, Wasp, arrefecidos a ar, plenamente substituíveis por turbo-hélices (lembrando que as aeronaves com motores Double-Wasp – DC-6 – e Wasp Major de 28 cilindros foram substituídos inicialmente por turbojatos. E com sucesso).
O motor completo funcionou pela primeira vez em 1960 e de lá para cá sofreu diversas evoluções, todavia o projeto básico permanece o mesmo.
Basicamente o PT6 se divide em duas partes – o gerador de gás composto de 3 a 4 compressores axiais, 1 compressor centrífugo, a câmara de combustão anular, de fluxo reverso, e uma turbina para o conjunto. Separado desse conjunto, há a(s) turbina(s) – pode ser uma ou duas, dependendo da potência do motor, que efetivamente converterá a energia térmica dos gases quentes em energia mecânica, num eixo separado dos carretéis do gerador de gases.
Por conta disso, o fluxo de ar desse motor é do tipo reverso, onde o ar é conduzido, através da admissão, para a parte de trás do motor e a saída dos gases se dá na parte da frente da nacele. Essa característica permite a inspeção e a manutenção de parte dos componentes sem necessitar a remoção dos motor.
Toda essa simplicidade faz com que, o quase sexagenário PT6 e seus derivados permaneçam até hoje como o principal motor turbo-hélice do mercado, sendo usado nos Cessna Caravan, Tucano, Super Tucano (e seu arquirrival AT-6 Texan II), Beech King Air, Air Tractor, Bell 212, 412, UH-1Y Venon e tantos outros.
E por que o PT6 pode ser comparado, por analogia, a um Mercedes OM 352? Porque além da ampla variedade de aplicações, o PT6 também remotorizou e remotoriza muitas aeronaves originalmente equipadas com motores a pistão. Para essa lista, encaixa-se o DC-3 (o Bastler BT-67), Beech 18, Piper Navajo, Beech Bonanza série 36, Cessna 421, isso apenas para citar algumas!
Uma outra aplicação do PT6 consiste na geração de energia elétrica, propulsão marítima, além de uma versão de 550 hp empregada no STP Paxton Turbo Car que competiu na 500 Milhas de Indianápolis em 1967, bem como o Lotus 56 na mesma corrida em 1968 e na Fórmula 1 em 1971.
1) BMW 003 (BMW 109-003)
Embora o Junkers Jumo 004 tenha sido o primeiro motor turbojato a entrar em produção e ser produzido em quantidades expressivas, coube ao BMW 003 deixar o seu legado na história da aviação, sendo base para cópias soviéticas e aperfeiçoamentos franceses.
Trata-se de um turbojato, ambicombustível (sim! Podia funcionar com óleo diesel ou gasolina), dotado de 7 compressores axiais, combustor anular (como nos modernos turbofans) e uma turbina axial.
Funcionou pela primeira vez em agosto de 1940, embora apenas em dezembro tenha funcionado a versão 003A, a primeira versão que efetivamente pode ser colocado numa aeronave concebida para o emprego de motores a reação — O Me-262. Produzia, naquela época, cerca de 1.200 lbf de empuxo.
Sucessivas evoluções do 003A elevaram o empuxo máximo do motor para 1.760 lbf a um peso de pouco mais de 620 kg, era um motor barato (quase ¼ de um BMW 801 radial, que equipava o Focke-Wulf FW-190), e acabou escolhido para equipar o Heinkel He-162 Spats, o Volksjäger caça popular, como ficou mundialmente conhecido. Cerca de 3.500 motores foram produzidos (número bem abaixo do Jumo 004), entretanto o BMW 003 deixou alguns clones e descendentes.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os soviéticos capturaram projetos e dois destes motores completos, que foram empregados no protótipo do primeiro jato soviético produzido, o MiG-9, sendo que um dos protótipos voou com um BMW 003 capturado e os modelos de série, com os RD20 reactivnyi dvigatel ou motor a jato, produzidos pela equipe de Nikolai Dmitriyevich Kuznetsov, que se notabilizou pelo famoso NK-12 que já tratamos em outras ocasiões.
Os franceses, por sua vez, adquiriram os projetos do BMW 003 e com a participação direta de Hermann Oestrich, outrora chefe da divisão de engenharia da BMW e atuado diretamente no motor 003, fundou o escritório Atar (Atelier Technique Aéronautique de Rickenbach) e em parceria com a estatal francesa Snecma, criaram os famosos motores Snecma-Atar que equiparam toda uma família de aeronaves Dassault, com destaque para o Mirage III (modelo operado inclusive pelo Brasil), IV, V e F1.
À guisa de curiosidade, o motor de partida das turbinas a jato BMW 003 era nada menos que um motor de 2 cilindros, 2 tempos contrapostos acoplado à árvore!
Vídeo do Mirage III: (uma vez aberta a imagem é preciso clicar no link)
DA